Comentário ao artigo Clozapina e crises epilépticas - três casos clínicos e
revisão da literatura
Comentário ao artigo Clozapina e crises epilépticas ' três casos clínicos e
revisão da literaturaCaro editor,
Li com interesse o artigo da autoria de Correia e colaboradores, recentemente
publicado nos Arquivos de Medicina. A questão abordada é pertinente,
nomeadamente porque chama a atenção para um aspecto negativo do já
reconhecidamente oneroso perfil de segurança da clozapina1. Os casos relatados
pelos autores são interessantes e didáticos. Observei pessoalmente as 3 doentes
descritas e em todas existiam mioclonias de características clínicas que
apontam para uma origem cortical2; em dois casos surgiram crises epilépticas e
houve melhoria das mioclonias subsequentemente à redução da dose de clozapina.
Como se pode depreender pela descrição, o terceiro caso é clinicamente
diferente, bem como o desfecho, uma vez que não surgiram crises epilépticas,
mesmo mantendo o regime terapêutico. Logo, de um ponto de vista científico
rigoroso, não é linear que se deva considerar que a etiologia e a
fisiopatologia subjacentes sejam semelhantes nos 3 casos. Por outro lado, no
vídeo-EEG referido (feito apenas numa doente), o facto de ter sido registada
uma mioclonia palpebral não constitui qualquer evidência de relação entre as
mioclonias e os achados electroencefalográficos de tipo epileptiforme, até
porque não foram feitas técnicas de back-averaging. O facto de as mioclonias
serem corticais não implica uma origem epiléptica, tal como demonstrámos
recentemente em casos de LOAM (late-onset asymmetric myoclonus)3 e como tem
sido apontado na literatura2. Penso que teria sido desejável aprofundar o
estudo neurofisiológico, sobretudo no segundo e terceiro casos, no sentido de
caracterizar melhor as mioclonias e explorar uma relação com uma eventual
actividade epileptiforme, que não foi demonstrada no texto do ponto de vista
clínico nem electroencefalográfico. Em circunstâncias similares, a
caracterização clínica e neurofisiológica aprofundada é útil para guiar
eficazmente as decisões terapêuticas, particularmente complexas nos casos de
esquizofrenia refratária, sobretudo quando se pondera a prescrição de um
fármaco com um perfil de segurança como a clozapina. A revisão da literatura
disponível, a que se juntam estes casos, sugere uma relação entre clozapina e
mioclonias, mas nem sempre surgem crises epilépticas nestes casos4. Por outro
lado, as perturbações psicóticas e a administração de antipsicóticos estão
independentemente associadas a um aumento significativo do risco de crises
epilépticas, e o efeito não é específico da clozapina5. Por tudo isto, teria
sido especialmente interessante explorar em detalhe a questão das mioclonias
relacionadas com a clozapina, de uma forma independente das crises epilépticas,
não obstante a importância clínica do assunto abordado e o didatismo da
mensagem veiculada.