Atopia e sarcoidose: Que relação entre as duas entidades?
INTRODUÇÃO
Estudos epidemiológicos têm demonstrado que a atopia, resposta mediada por
linfócitos T helper (Th) 2, infl uencia a actividade e prognóstico de algumas
doenças Th1 mediadas, por mecanismos imunológicos de contra-regulação1. O
estado de atopia na sarcoidose, doença Th1 mediada, encontra-se por esclarecer,
não havendo evidência clínica sufi ciente que sustente o tipo de relação entre
estas duas entidades.
CASO CLÍNICO
Os autores descrevem o caso de uma doente, 30 anos, caucasiana, não fumadora,
referenciada à Consulta de Imunoalergologia do Hospital de São João, em 2005,
por quadro clínico com 5 anos de evolução, de sintomas nasais (rinorreia
serosa, esternutos, obstrução e prurido), oculares (prurido e hiperemia) e
otorrinolaringológicos (prurido orofaríngeo e otológico), de predomínio na
Primavera/Verão. Negava sintomas respiratórios, nomeadamente dispneia, tosse ou
toracalgia. Apresentava história familiar de asma e como antecedentes pessoais
relevantes lesões cutâneas sugestivas de eritema nodoso em 2002 (efectuada
corticoterapia oral, com posologia e duração não especificadas).
Actualmente funcionária numa padaria; trabalhou previamente numa confecção. As
queixas nasais e oculares são se relacionavam com a actividade laboral actual
ou prévia, tendo sido notado agravamento apenas nos meses de Primavera/Verão.
Ao exame objectivo inicial, de destacar na rinoscopia anterior hipertrofia dos
cornetos inferiores e desvio dextro-convexo do septo nasal. A investigação
diagnóstica realizada revelou positividade para pólenes (gramíneas e árvores)
nos testes cutâneos com extractos de aeroalergénios e no doseamento sérico de
IgE específicas de gramíneas - 12,50, Betula verrucosa-0,47 e Olea europeae-
0,53 (negativa<0,35kU/L). A espirometria basal sugeria síndrome restritiva e a
prova de broncodilatação foi negativa. O valor da fracção de óxido nítrico
exalado foi de 6,5 ppb. A pletismografia revelou síndrome ventilatória
restritiva ligeira, com os restantes parâmetros sem alterações. Considerando a
ausência de queixas respiratórias (dispneia, pieira, tosse, intolerância ao
exercício), não foram realizados outros exames para avaliar a síndrome
restritiva. Foi efectuado o diagnóstico de rinoconjuntivite alérgica
persistente moderada-grave e instituída terapêutica: evicção alergénica,
tratamento farmacológico com corticosteroide tópico nasal, anti-histamínico
ocular e oral, e posteriormente imunoterapia específica (IT) por via subcutânea
' polimerizado, extracto 100% gramíneas (durante 4 anos, sem evidência de
reacções adversas). Apesar da evolução clínica favorável relativamente à
maioria da sintomatologia, a doente mantinha obstrução nasal persistente e
incapacitante que motivou septoplastia e turbinectomia, em Abril de 2009. Em
Junho de 2010, ocorreu agravamento clínico (fadiga, pieira e dispneia para
médios esforços) e funcional (Quadro 1). Após observação de telerradiografia
torácica alterada, realizou tomografia computorizada torácica que revelou
múltiplas adenomegalias hilomediastínicas e nódulos pulmonares parenquimatosos
infracentimétricos (Figura 1). Na avaliação analítica verificou-se eosinofilia
periférica (640 mm3) e elevação da enzima de conversão de angiotensina (72,
normal <52). Bioquímica, marcadores víricos (VHB, VHC, VIH) e electroforese de
proteínas sem alterações. Foram realizados lavado broncoalveolar (LBA) e punção
aspirativa de adenomegalias por agulha fina guiada por ecoendoscopia
(endobronchial ultrasound with real-time guided transbronchial needle
aspiration, EBUS-TBNA). As análises microbiológica (bacteriológico, micológico,
micobacteriologico directo e cultural) e citológica do LBA e biopsia foram
negativas. A contagem celular total do LBA foi normal e a diferencial revelou
linfocitose intensa (celularidade 0,8x105/mL; macrófagos 50,4%; linfócitos
42,6%; neutrófilos 4,6%; eosinófilos 0%; mastócitos 0,2%), com predomínio de
linfócitos T CD4+, associado a relação CD4/CD8 elevada (3,8).
Quadro 1. Evolução funcional respiratória
Figura 1. TC torácica de alta resolução: múltiplas adenomegalias mediastínicas
(A, B), a maior com 13 mm de eixo curto em topografia pré-aórtica (A); alguns
nódulos periféricos, infracentimétricos, de distribuição aleatória, alguns com
halo em vidro despolido e de limites mal definidos (C, D).
O quadro clínico e imagiológico descrito, associado a alterações da contagem
diferencial do LBA (linfocitose com CD4/CD8 > 3,5), foi enquadrado no
diagnóstico de sarcoidose. A doente foi referenciada à Consulta de Doenças
Pulmonares Difusas, encontrando-se sob monitorização clínica, funcional e
imagiológica, com periodicidade de 3 meses, sem indicação, até à data, para
iniciar tratamento dirigido à patologia sarcoidótica.
DISCUSSÃO
A sarcoidose consiste numa doença multissistémica, de causa desconhecida,
caracterizada patologicamente pela existência de granulomas não caseosos nos
órgãos atingidos2. Esta patologia apresenta uma incidência variável (1-40/100
000 casos), atinge frequentemente adultos jovens (pico de incidência: 20-29
anos) e maioritariamente o sexo feminino2. A sua etiologia permanece
desconhecida, sendo a hipótese mais provável a de resultar da exposição a
agentes ambientais em indivíduos susceptíveis3. Factores como a agregação
familiar, prevalência, clínica e gravidade variáveis com a raça e regiões e
associação a determinados polimorfismos genéticos sugerem predisposição
genética2,4. Relativamente aos agentes ambientais, questiona-se o papel de
microrganismos (vírus, bactérias como Propionibacterium acnese Mycobacterium
tuberculosis), partículas inorgânicas (alumínio, talco) e orgânicas (pólenes)2.
De destacar, no presente caso clínico, história de rinite alérgica com
sensibilização a pólenes.
Foram publicados estudos sobre a prevalência de atopia em doentes com
sarcoidose e os potenciais efeitos da primeira no espectro clínico e evolução
da segunda5-7. Kokturk et aldemonstraram que a prevalência de alergia
respiratória numa população turca de 41 doentes com sarcoidose era inferior à
da população geral (5% versus25%)5. Patogenicamente, a sarcoidose caracteriza-
se por uma resposta imunológica celular mediada por linfócitos Th1 e a atopia
por uma resposta Th2 e humoral IgE-específica2,8, mecanismos que poderão
justificar esta diferença epidemiológica. Todavia, um estudo recente põe em
causa esta dicotomia; Wilsher et aldeterminaram uma prevalência de atopia de
34% em 123 doentes com sarcoidose, semelhante à previamente reportada para a
população geral7.
A apresentação clínica da sarcoidose é variável, dependendo do(s) órgão(s)
envolvido(s) e da intensidade da inflamação granulomatosa. Pode ser
assintomática ou cursar com sintomas constitucionais e/ou específicos de órgão.
Sendo o tórax atingido em mais de 90% dos casos, cursa frequentemente com
dispneia, pieira, tosse e toracalgia, podendo associar-se a alterações
funcionais variadas (restrição, obstrução, hiperreactividade brônquica ' 20%) e
radiológicas específicas (estádio 0: normal; estádio I: adenopatias hilares;
estádio II: adenopatias hilares e alterações do parênquima pulmonar; estádio
III: alterações do parênquima pulmonar, sem adenopatias; estádio IV: fibrose)2.
Remetendo para o presente caso clínico, a idade, as manifestações clínicas
constitucionais e respiratórias e a evidência radiológica de adenopatias
levantaram algumas hipóteses diagnósticas, como sarcoidose, linfoma ou
infecção. De salientar a importância da broncoscopia na sarcoidose, por
permitir a realização de LBA e biopsias transbrônquicas, brônquicas iterativas
e aspirativas transbrônquicas, que aumentam a rentabilidade diagnóstica e
consequente diagnóstico diferencial2,8.
Neste caso, o estudo celular do LBA revelou uma alveolite linfocítica com CD4/
CD8 > 3,5, reflectindo o predomínio de linfócitos T CD4+, característico da
sarcoidose2,8.
De acordo com estudos previamente publicados, uma razão CD4/CD8 elevada,
associada a características clínicas e imagiológicas típicas, é altamente
sugestiva do diagnóstico de sarcoidose, com valores de especificidade de 93-
96%, obviando a necessidade de confirmação histológica em cerca de 40-60% dos
casos2. A exclusão de patologia linfoproliferativa é crucial, tendo sido
realizado estudo de adenopatias por EBUS-TBNA, técnica recente, minimamente
invasiva e segura, associada a um acréscimo na rentabilidade diagnóstica de
sarcoidose (90-96%)9. O diagnóstico de sarcoidose torácica foi assumido, não
havendo evidência de atingimento de outros órgãos (rim, fígado, coração,
uveíte).
A história natural da sarcoidose é variável, com possibilidade de remissão
espontânea (estádio I: 55-90% e II: 40-70%), evolução para cronicidade ou
recidiva após tratamento2.
Desde a sua referenciação, a doente encontra-se assintomática com estabilidade
radiológica (estádio II) e funcional, portanto com potencial para remissão
espontânea, motivo pelo qual não foi iniciado tratamento. Por outro lado, a
história prévia de eritema nodoso coloca a possibilidade de estarmos perante
um caso de recidiva de sarcoidose não diagnosticado previamente.
Hattori et al constatou que, numa população japonesa de 134 doentes com
sarcoidose, nos doentes atópicos o envolvimento torácico era menos frequente, e
em termos evolutivos a atopia estaria associada a um melhor prognóstico da
sarcoidose (associação independente do sexo, idade e presença de lesões
torácicas e/ou extratorácicas)6. Neste contexto, a atopia poderia ser
considerada um factor de bom prognóstico. Contudo, atendendo à patogenia de
ambas as entidades, questionamos esta associação. A sarcoidose tem por base uma
resposta imunológica Th1 mediada, especulando-se que a sua evolução
desfavorável tenha por base uma alteração dessa resposta para o tipo Th2, com
padrão de citocinas diferentes (interleucinas 4, 5, 6 e 10) que estimulariam a
proliferação de fibroblastos e produção de colagénio, conduzindo a fibrose3.
Assim, se a atopia tem por base uma resposta imunológica Th2 mediada, a qual
conduz à evolução para estádios avançados da sarcoidose, como poderá estar
associada a melhor prognóstico da doença?
Por outro lado, Jundi et alquestionaram o papel da IT na sarcoidose ao
descrever três casos de doentes atópicos submetidos a IT (pólenes e ácaros),
com diagnóstico posterior de sarcoidose (22, 1 e 4 anos após término da IT)10.
Estes autores especulam sobre o facto de a IT poder ter desmascarado formas
subclínicas de sarcoidose não diagnosticadas previamente, a possibilidade de a
IT constituir agente causal da sarcoidose ou de se tratar de mera coincidência
temporal10.
CONCLUSÃO
Com a descrição deste caso clínico, os autores pretendem colocar algumas
questões sobre a possível associação entre atopia e sarcoidose, para as quais a
resposta ainda permanece longínqua face aos dados da literatura científica aqui
explanados. Tratam-se maioritariamente de estudos descritivos, díspares no
tamanho populacional e áreas geográficas incluídas, o que só por si pode
influenciar a prevalência de ambas as entidades. Mais ainda, a sua patogenia
distinta torna questionável o papel prognóstico da atopia na sarcoidose. De
facto, a descrição de mais casos clínicos, séries de casos, ou a realização de
estudos prospectivos com inclusão de populações referentes a várias áreas
geográficas, díspares na prevalência de sarcoidose e atopia, mas com
metodologias semelhantes, incluindo a definição de atopia, poderia responder a
algumas das questões levantadas com a descrição deste caso clínico.