Anafilaxia recorrente numa criança
INTRODUÇÃO
Anafilaxia é uma reacção alérgica grave que ocorre após o contacto com
substâncias alergénicas1.
Pode ser provocada pela ingestão, pela injecção, pela inalação ou pelo contacto
directo com alergénios2.
Sendo a anafilaxia potencialmente fatal, é fundamental identifi car a sua
etiologia, pois o seu tratamento passa pela evicção dos factores
desencadeantes. A anafilaxia idiopática é um diagnóstico de exclusão, pelo que
é essencial avaliar uma possível associação com alimentos, fármacos, picada de
insecto, látex, meios de contraste radiológico e exercício físico, isolado ou
na presença de ingestão alimentar2,3.
Os alimentos são a causa mais comum de anafilaxia em ambulatório, sendo
responsáveis por 30% das fatalidades por anafilaxia. Seguem-se os fármacos, a
segunda causa mais frequente. Os antibióticos (principalmente os beta-
lactâmicos) são os principais responsáveis por anafilaxia medicamentosa,
seguindo-se os anti-inflamatórios não esteróides (AINEs)3.
Neste artigo reportamos o caso de uma criança com múltiplos episódios de
anafilaxia, realçando as dificuldades da anamnese e a importância da prova de
provocação na identificação da sua etiologia.
CASO CLÍNICO
Menino de 8 anos, seguido desde os dois em consulta de Imunoalergologia por
asma ligeira e rinite persistente não atópica, sem história de
hipersensibilidade medicamentosa ou alimentar conhecida. Refere primeiro
episódio de anafilaxia aos 6 anos, descrito como quadro de urticária
generalizada, dificuldade respiratória e vómitos, sem factor desencadeante
identificado, que motivou recurso ao serviço de urgência (SU), onde foi
medicado com broncodilatadores inalados e anti-histamínico oral, com melhoria
em poucas horas. Nesta altura fazia medicação diária com antagonista dos
leucotrienos, anti-histamínico oral e corticóide nasal. No mês seguinte teve
dois episódios semelhantes, um deles com perda de consciência, também sem
etiologia identificada, tendo sido prescrito dispositivo de adrenalina auto-
injectável. Posteriormente, voltou a ter novos episódios de anafilaxia, num
total de cinco num intervalo de 10 meses, todos com necessidade de recorrer ao
SU, sem factor desencadeante identificado, com resolução em poucas horas após
terapêutica com adrenalina intramuscular, sem internamento.
A mãe negava sistematicamente uma possível associação dos episódios de
anafilaxia com ingestão alimentar ou medicamentosa, com picada de insecto, com
exposição ao látex ou com exercício físico. Os episódios eram precedidos de
cefaleias, habitualmente medicadas com paracetamol ou ibuprofeno, tendo-se
constatado que a criança era medicada com estes fármacos cerca de 30 a 45
minutos antes do início dos sintomas. A mãe negava, no entanto,
qualquerassociação dos episódios de anafilaxia com a ingestão deparacetamol ou
ibuprofeno, afirmando que a criança os ingeria noutras situações sem reacção.
Analiticamente destacava-se eosinofilia de 920/μL, IgE sérica total de 99,4 kU/
L e triptase sérica de 3,6 μg/L (normal). Assumindo-se o ibuprofeno como a
causa maisprovável dos episódios, programou-se uma prova de provocação oral
(PPO) com paracetamol para exclusão deste fármaco como possível causa dos
episódios.
No dia da PPO a mãe referiu que, desde o último episódio de anafilaxia,
administrara ibuprofeno por duas ocasiões, não se tendo verificado qualquer
reacção. Cerca de 10 minutos após a terceira toma de paracetamol (dose
acumulada: 290mg ' 50% da dose recomendada por toma), iniciou urticária do
tronco e membros, seguida de tosse seca e broncospasmo, pelo que se administrou
adrenalina intramuscular, anti-histamínico e corticóide endovenosos.
Após 45 minutos administrou-se novamente adrenalinapor angioedema da face e
agravamento da urticária, com resolução completa do quadro clínico em 3 horas.
Após a PPO o doente passou a fazer evicção rigorosa de paracetamol e quando
necessário faz medicação com ibuprofeno, sem que tenha voltado a ter episódios
de anafilaxia. Actualmente, nega queixas brônquicas, tem exame funcional
respiratório normal e refere apenas queixas intermitentes de rinite, que
resolve com anti-histamínico oral.
Posteriormente à PPO, com a finalidade de procurar clarificar o mecanismo
subjacente à reacção e após consentimento informado, foram realizados testes
cutâneos, doseamento de IgE específica sérica e teste de activação de basófilos
com paracetamol. Os testes cutâneos por picada (TCP) foram efectuados com
paracetamol injectável (solução a 10 mg/mL) não diluído e os testes
intradérmicos (TID) com as diluições de 1/1000, 1/100 e 1/10 da mesma solução
em cloreto de sódio 0,9%, tendo sido todos negativos. Com a colaboração do
Laboratório de Imunologia Clínica do Instituto de Medicina Molecular, realizou-
se o doseamento de IgE sérica específica para o paracetamol pelo método
ImmunoCAP® (Phadia ' Thermo Fisher Scientific, Uppsala, Suécia) e o teste de
activação de basófilos Basotest® (ORPEGEN Pharma, Heidelberg, Alemanha) com uma
solução diluída de paracetamol (1mg/mL), que foram ambos também negativos.
DISCUSSÃO
O paracetamol é um fármaco antipirético e analgésico largamente consumido. Está
disponível para a população em geral, sem necessidade de prescrição médica. Num
estudo de avaliação de segurança dos analgésicos não narcóticos em doses
terapêuticas, o paracetamol foi classificado como o mais seguro. Tendo em conta
o seu perfil de segurança, na investigação da causa de um episódio de
anafilaxia a maioria dos doentes não menciona ou não é questionada sobre a
ingestão de paracetamol4.
Enquanto a hepatotoxicidade associada ao paracetamol está bem descrita, existem
poucas publicações que reportem reacções adversas após a ingestão de
paracetamol nas doses recomendadas. Desta forma, verifica-se um número reduzido
de reacções de hipersensibilidade ao paracetamol descritas na literatura,
particularmente em idade pediátrica, tendo sido alvo de revisões anteriores5,6.
As reacções de hipersensibilidade ao paracetamol incluem rinoconjuntivite,
urticária/angioedema, síndrome de Stevens -Johnson, eritema fixo e anafilaxia7.
A anafilaxia ao paracetamol é rara, tendo sido descritos apenas 7 casos em
crianças6. A sua patogénese, contrariamente à hepatotoxicidade associada ao
paracetamol, não está devidamente esclarecida.
Para além do seu efeito analgésico e antipirético, o paracetamol é um fraco
inibidor da ciclooxigenase. Desta forma, à semelhança do que se verifica com o
ácido acetilsalicílico (AAS) e com outros AINEs, a inibição da síntese de
prostaglandinas poderá ser o mecanismo responsável pela hipersensibilidade ao
paracetamol8. No entanto, o paracetamol é geralmente bem tolerado em cerca de
94% dos doentes com hipersensibilidade ao AAS e a outros AINEs5,6,8, e alguns
doentes com anafilaxia ao paracetamol, incluindo o doente reportado, toleram
outros AINEs6. Estes dados sugerem a existência de outro mecanismo,
nomeadamente mediado pela IgE8.
Na maioria dos estudos publicados, os testes cutâneos com paracetamol têm sido
negativos6,9, tendo sido descritos apenas um número reduzido de casos com
resposta imediata positiva nos testes cutâneos e/ou com IgE específica
detectável5-7. Salienta-se que nunca foi comprovado na literatura um caso de
hipersensibilidade ao paracetamol com um mecanismo mediado por IgE em idade
pediátrica6.
De igual forma, nesta criança, apesar do início agudo e do tipo das
manifestações clínicas sugerirem um mecanismo mediado por IgE, não foi possível
demonstrá-lo, pois os testes in vivoe in vitro foram negativos.
É importante realçar que os testes cutâneos de leitura imediata e os testes in
vitro(determinação de IgE específica, testes de libertação de histamina e de
leucotrienos, teste de activação dos basófilos) não estão normalizados e os
seus valores preditivos são controversos10.
Alguns autores reportam doentes com IgE específica sérica negativa, apesar de
ter sido provado o mecanismo mediado por IgE5, o que indica a baixa
sensibilidade deste método. Apesar de terem sido descritos 9 casos de
hipersensibilidade ao paracetamol com testes cutâneos positivos em adultos5-7,
estes testes têm habitualmente utilidade reduzida para compostos de baixo peso
molecular como é o paracetamol. Assim sendo, o diagnóstico de
hipersensibilidade ao paracetamol é estabelecido, na maioria dos casos, através
de uma história clínica detalhada e pela prova de provocação oral ou
sintomatologia reprodutível após ingestão acidental6.
Recentemente, Rutkowski etalpublicaram uma série de 32 doentes com suspeita de
hipersensibilidade ao paracetamol7.
Através da prova de provocação oral, comprovou-se a hipersensibilidade ao
paracetamol em 50% dos casos, verificando-se a positividade dos testes cutâneos
em apenas 3/16 doentes (18,8%). Não foi realizado o doseamento de IgE
específica sérica em nenhum doente, mas nestes 3 doentes (2 com TCP positivos e
1 com TID positivos) foi possível demonstrar o mecanismo IgE mediado. A maioria
dos doentes alérgicos ao paracetamol tolerava outros AINEs, sendo que apenas
25% tinha hipersensibilidade a outros AINEs. Tendo em conta que apenas 3
doentes tiveram testes cutâneos positivos e que a maioria dos doentes tolerava
outros AINEs, o mecanismo responsável pela reacção ao paracetamol poderá ser
outro ainda não conhecido. Os autores sugerem a realização de testes cutâneos
antes da prova de provocação tendo em conta que a IgE específica para o
paracetamol pode ser a responsável pela reacção.
CONCLUSÃO
Este caso ilustra as dificuldades da anamnese na determinação da etiologia de
um episódio de anafilaxia e alerta para a importância da exclusão da etiologia
medicamentosa na anafilaxia recorrente, nomeadamente no que concerne ao
paracetamol e aos AINEs, mesmo em idade pediátrica.
Este doente deverá ter em sua posse dispositivo de adrenalina injectável, tendo
em conta que existem inúmeros fármacos de venda livre com paracetamol na sua
composição, podendo contribuir para a ocorrência acidental de um novo episódio.
Sendo raros os casos de hipersensibilidade ao paracetamol, a descrição deste
caso clínico pretende alertar para a potencial gravidade das reacções que podem
ocorrer com doses terapêuticas deste fármaco largamente usado.