Para além da bula: Prescrição off-label na patologia alergológica em idade
pré-escolar
INTRODUÇÃO
Vários fármacos utilizados no tratamento de patologia alergológica não estão
estudados para a população pediátrica, principalmente nas crianças mais jovens
e, em especial, nos lactentes. No entanto, a sua utilização off-label, isto
é, fora das indicações autorizadas pelas autoridades reguladoras, seja por
grupo etário, por dosagem ou pela indicação clínica1, é frequente em patologia
pediátrica muito prevalente como é o caso da asma, da rinite alérgica ou do
eczema atópico. Esta situação relaciona-se com a difi culdade na realização de
ensaios clínicos nesta população devido a considerações práticas e a
implicações éticas2. A prescrição off-label é estimadaentre 11 a 37% em
crianças tratadas em ambulatório e chega a 62% em internamento3. O principal
problema com esta utilização é o aumento do risco da ocorrência de reacções
adversas4. Além disso, em crianças muito jovens e lactentes, o risco de erros
na prescrição, particularmente de dosagem, está consideravelmente aumentado5.
Porém, a administração de fármacos off-label não é necessariamente
incorrecta6 podendo ser apropriada em certas situações clínicas quando não
existe alternativa terapêutica e os benefícios superam os potenciais riscos,
tal como acontece quando os tratamentos convencionais não permitem alcançar o
controlo das manifestações clínicas e/ou funcionais7. Fornece ainda novos dados
sobre a eficácia e segurança da sua utilização8.
Diversos estudos têm demonstrado consistentemente que esta utilização em
crianças é habitual. Um estudo de coorte, realizado em cuidados de saúde
primários na Holanda, avaliou as prescrições de fármacos respiratórios em 2502
crianças concluindo que quase 37% eram off-label e, deste grupo, 39% eram
prescrições de fármacos para tratamento de asma9. O estudo TEDDY que comparou o
uso de fármacos anti-asmáticos em crianças na Holanda, Itália e Reino Unido,
verificou que o uso off-label de β2 agonistas e de corticóides inalados é
frequente, alcançando 80% das prescrições da budesonida inalada em Itália10.
Em Portugal existem poucos estudos referentes à utilização off -label de
fármacos em idade pediátrica e nenhum relacionado especificamente com fármacos
para tratamento de patologia alergológica.
OBJECTIVOS
Para contribuir para o conhecimento sobre esta relevante problemática, os
autores pretenderam caracterizar a prescrição off -label de fármacos
utilizados no controlo da asma, da rinite alérgica e do eczema atópico em
crianças em idade pré-escolar seguidas num ambulatório diferenciado de
Imunoalergologia.
MÉTODOS
Procedeu-se à revisão de processos clínicos de crianças com idade igual ou
inferior a 6 anos seguidas na consulta de Imunoalergologia, após referenciação,
com fenótipos de asma, rinite alérgica e eczema atópico, com predomínio de
apresentações clínicas moderadas a graves. Foram analisadas consecutivamente as
consultas efectuadas pelos autores, desde o início de Janeiro de 2012, até se
obter uma amostra de 500 doentes (Junho 2012).
Os dados colhidos incluíam género, idade, diagnóstico e fármacos de controlo
prescritos na consulta considerada e por um período mínimo de 2 semanas, bem
como as respectivas doses. Não foram considerados os fármacos utilizados apenas
como tratamentos de agudização. Os fármacos incluídos foram classificados da
seguinte forma: 1) corticóides inalados (CI); 2) corticóides tópicos nasais
(CN); 3) β2 agonista de longa acção (BL); 4) anti-histamínicos orais (AH); 5)
anti-leucotrienos orais (AL); 6) imunomoduladores tópicos (IT).
As indicações autorizadas para cada um dos fármacos estão disponibilizadas pelo
Infarmed ' Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P.
(Infarmed)11, tendo sido as mesmas confirmadas pelos laboratórios responsáveis
pela produção e distribuição dos fármacos estudados, os quais foram
sistematicamente inquiridos pelos autores, não se tendo verificando
discrepâncias (Quadro_1).
Quadro_1
A divisão por grupo etário foi baseada nas definições fornecidas pela
EuropeanMedicines Agency(EMA)12. Como tal, a amostra foi dividida em 2 grupos:
1) menos de 2 anos; 2) 2 aos 6 anos. Apesar da EMA considerar um grupo de
recém-nascidos (menos de 1 mês de idade), este não foi considerado pela
inexistência de doentes neste grupo etário.
Análise estatística
Comparações estatísticas foram realizadas com recurso ao programa estatístico
IBM SPSS Statisticsversão 19.0 (2010, Chicago, Estados Unidos) sendo
considerado significativos intervalos de confiança de 95% com p<0,05.
RESULTADOS
Foram verificados os processos de 500 doentes (Quadro_2) correspondendo a um
total de 1224 prescrições de tratamentos de controlo. Os fármacos mais
prescritos foram os anti -histamínicos orais (34,6%) seguidos dos anti-
leucotrienos (22,6%), dos corticóides tópicos nasais (20,3%), dos corticóides
inalados (17,7%), da associação corticóide inalado com β2 agonista de longa
acção (4,6%) e, por fim, dos imunomoduladores tópicos (0,2%). Os fármacos mais
utilizados foram o montelucaste (22,6%), a levocetirizina (17,1%), a mometasona
(17,1%) e a fluticasona (17,0%) (Quadro_3).
Quadro_3
Do total de prescrições, 802 (65,5%) estavam autorizadas para uso em crianças e
foram utilizadas de acordo com as indicações formais aprovadas. As restantes
422 (34,5%) foram consideradas off-label, quer para a idade (62,6%), quer
para a dose (31,7%) ou pela indicação clínica (5,7%), sendo a mometasona, a
fluticasona e a levocetirizina os fármacos mais prescritos nesta condição
(Quadro_3). A mometasona está autorizada apenas em crianças com mais de 6 anos
sendo por isso usada frequentemente em off-label. O mesmo se passa com a
levocetirizina cuja autorização abrange apenas crianças com mais de 2 anos.
Em relação à fluticasona, a sua utilização off-label está associada à
prescrição superior à dosagem aprovada. Apenas o montelucaste foi prescrito
fora da sua indicação clínica visto que antes dos 2 anos apenas pode ser usado
como terapêutica adjuvante no tratamento preventivo de asma, não tendo
indicação autorizada em monoterapia11.
Avaliando os fármacos por categorias, destaca-se a utilização off-label dos
corticóides tópicos nasais com mais de 75% das prescrições efectuadas nesta
condição (Quadro_4) e sempre por limitação de idade. Salienta-se ainda que a
utilização do pimecrolimus (imunomodulador tópico) em casos de eczema atópico
grave, sempre em off-label pela idade, apesar da sua prescrição ter sido
reduzida, isto é, apenas foi efectuada em 3 doentes de 8, 10 e 12 meses de
idade.
Quadro_4
Apesar da prescrição nas crianças com menos de 2 anos ser inferior à das
crianças do grupo etário imediatamente superior, a utilização off -label foi
muito mais frequente neste grupo (figura_1). Até 73,5% da prescrição nesta
idade foi off-label enquanto que no grupo de maior idade alcançou 27,7%
(Quadro_4), sendo esta diferença estatisticamente significativa (p<0,05). De
salientar que, exceptuando uma, todas as crianças com menos de 2 anos receberam
pelo menos uma prescrição off-label.
DISCUSSÃO
Este estudo, efectuado numa consulta de referência, fornece informação original
e detalhada sobre a prescrição nacional off-label em patologia muito
prevalente na população pediátrica, nomeadamente na asma, na rinite alérgica e
no eczema atópico. Verificou-se uma utilização frequente de fármacos nesta
condição (34,5%), particularmente em crianças com menos de 2 anos, com mais de
73% do total de prescrições neste grupo. Isto deve-se ao facto de dados sobre
segurança e eficácia dos fármacos nesta idade serem escassos por falta de
ensaios clínicos.
A falta de investigação clínica na população pediátrica, principalmente na
primeira infância, deve-se a um conjunto variado de factores e tem de ser
avaliada por vária perspectivas2,13. A indústria farmacêutica vê a aprovação da
extensão das indicações a esta população como de baixo interesse financeiro,
com apenas alguns fármacos a constituírem um mercado suficientemente alargado
para suscitar interesse, pelo que não surpreende que os mais adequadamente
estudados sejam as vacinas anti-infecciosas e alguns medicamentos antibióticos
de largo espectro de acção. São necessárias técnicas médicas específicas e
equipamentos apropriados para investigação clínica em idade pediátrica.
Procedimentos simples em adultos, como colheitas sanguíneas, entre outras
intervenções minimamente invasivas, podem não ser tão fáceis de executar ou de
autorizar "em crianças. Por fim, a existência de implicações éticas ainda mais
complexas, como os potenciais riscos da intervenção terapêutica, dificulta
imenso a realização de ensaios clínicos nestas idades14. A investigação clínica
de medicamentos na população pediátrica é regulada por normas internacionais
(ICH E11), nomeadamente europeias (EC n.º 1902/2006), que estabelecem os
requisitos específicos para a protecção das crianças nos ensaios clínicos15,16.
No entanto o regulamento actual da EMA visa incentivar a investigação e
desenvolvimento de medicamentos na idade pediátrica e a melhoria da informação
disponível sobre estes, através da atribuição de benefícios para a indústria
farmacêutica tais como extensão do período de exclusividade de patente17,18. No
entanto a maioria dos fármacos disponíveis no mercado continua a não ser
testada especificamente em crianças, particularmente nas mais novas. Em
Portugal, o Infarmed dispõe de comissões especializadas, nomeadamente da
Comissão de Avaliação de Medicamentos, à qual compete a emissão de pareceres
sobre a qualidade, segurança e eficácia dos medicamentos no âmbito das
autorizações de introdução no mercado (AIM). É da sua responsabilidade a
apreciação e aprovação dos Resumos de Características dos Medicamentos (RCM).
Contudo, não compete ao Infarmed pronunciar-se sobre a utilização dos
medicamentos fora do que consta nos respectivos RCM, sendo esta utilização da
exclusiva responsabilidade do médico prescritor19.
Neste estudo demonstrou-se um grande número de prescrições off-label; no
entanto estes valores têm de ser interpretados com precaução por poderem
sugerir que se trata de prescrições inadequadas. A administração de fármacos
off-label não é necessariamente incorrecta6e está inclusive contemplada em
várias recomendações terapêuticas nacionais e internacionais que incluem a
idade pediátrica, não existindo qualquer referência à utilização off-label
dos diferentes fármacos20. Este facto, no entanto, não autoriza clínica ou
legalmente a sua utilização, apesar de a suportar. Esta utilização é
frequentemente necessária e apropriada devendo ser avaliada de acordo com as
indicações, as alternativas terapêuticas e as considerações de risco-benefício
(Figura_2). Claro que a sua utilização deverá implicar sempre a obtenção de
consentimento informado. Mas se o uso de fármacos off-label não carece de
consentimento informado assinado pelo doente ou representante legal, será então
o consentimento verbal suficiente? Nas prescrições estudadas pelos autores, foi
sistematicamente indicada e justificada, aos pais ou aos seus prestadores de
cuidados, a utilização off-label do medicamento bem como a necessidade
clínica para a sua administração, a qual foi invariavelmente autorizada após os
esclarecimentos solicitados. Este tipo de informação é fulcral para a adesão do
doente, da sua família e de outros prestadores de cuidados, mas é
frequentemente omitida.
Figura_2
Um questionário realizado no Reino Unido revelou que a maioria dos pediatras
não obtinha um consentimento informado nem avisavam os pais da prescrição off-
label, o que pode configurar uma má prática clínica21.
Das prescrições efectuadas, salienta-se a utilização off-label muito
frequente de um dos corticóides tópicos nasais, a mometasona. O motivo deve-se
na totalidade à utilização por grupo etário, já que se encontra autorizada
apenas em crianças com mais de 6 anos. Esta imposição é feita pela EMA ao mesmo
tempo que a U.S. Food and Drug
Administration(FDA) já autoriza a uso deste corticóide em crianças mais novas,
isto é, acima dos 2 anos22. Apesar da discrepância de indicações, o facto de
uma instituição como a FDA, responsável pela regulamentação de fármacos nos
Estados Unidos, ter já autorizado uma utilização mais abrangente deste
medicamento, confere uma segurança adicional à prescrição off-label na
Europa. Se as indicações fossem idênticas, a percentagem de prescrição off-
label da mometasona seria de apenas 4,3%.
O mesmo pode ser referido em relação ao uso de alguns anti-histamínicos, em
particular a levocetirizina, cujo uso off -label foi de aproximadamente 25% e
quase na totalidade por utilização abaixo da idade autorizada. A FDA aprova,
desde 2009, a prescrição deste fármaco em crianças e lactentes a partir dos 6
meses22, após a publicação de ensaios a longo prazo que demonstraram a sua
eficácia e segurança nesta faixa etária23-25. Em Portugal, a aprovação mantém -
se apenas em crianças com mais de 2 anos11.
Em relação ao uso de imunomoduladores tópicos como o pimecrolimus, foi
prescrito em apenas 3 doentes, porém em todos foi utilizado em off -label
pela idade apesar do seu uso ser justificado pela gravidade clínica do eczema
atópico. Esta patologia surge em aproximadamente 60% dos doentes antes dos 12
meses de idade26,27, no entanto, a utilização de IT só está aprovada a partir
dos 2 anos, tanto pela FDA como pela EMA11,22,28. Esta limitação foi imposta
por não existirem actualmente estudos de segurança a longo prazo considerados
suficientes para a sua aprovação em crianças mais novas. As preocupações das
entidades reguladoras são baseadas no risco teórico de imunosupressão sistémica
que deriva da utilização oral dos inibidores da calcineurina, como o
pimecrolimus ou o tacrolimus, em doentes transplantados e da existência de
casos raros de malignidade associados a esta administração29.
No entanto, dados farmacocinéticos obtidos em ensaios clínicos realizados em
crianças com menos de 2 anos, não sugerem concentrações sistémicas
suficientemente altas para causarem imunosupressão, ao contrário da sua
administração oral, nem evidenciam correlação entre esta concentração e a
percentagem de superfície corporal tratada ou a duração de tratamento30,31. Do
mesmo modo, não se verificou interferências no desenvolvimento da resposta
imune normal à vacinação32. Além da extrema eficácia demonstrada, estes ensaios
demonstram dados de segurança dos IT no tratamento de eczema atópico a curto
prazo sendo ainda necessário uma vigilância mais extensa para se averiguar a
segurança a longo prazo. Porém, desde a introdução no mercado em 2001, não foi
estabelecida relação causal entre uso de pimecrolimus e malignidade29.
CONCLUSÃO
Com este estudo, inovador no nosso país, comprovámos que o uso off-label de
fármacos anti'alérgicos em idade pré-escolar para o tratamento da asma, da
rinite alérgica e do eczema atópico, é elevado; existindo poucos estudos de
segurança a longo prazo, as implicações inerentes a este tipo de administração
tornam-se evidentes. O Comité Pediátrico da EMA elaborou uma lista de fármacos
administrados actualmente em idade pediátrica e com necessidade urgente de
informações de farmacocinética, eficácia e segurança na qual se inclui a
fluticasona e o montelucaste, entre outros33 e onde também deverão estar
incluídos os anti-histamínicos. O método de referência são estudos controlados
randomizados, sendo estes limitados por dificuldades metodológicas, daí a
necessidade de desenvolver estudos observacionais suficientemente alargados,
após introdução no mercado, para a obtenção de dados de avaliação de segurança
e eficácia dos fármacos usados em idade pediátrica34.
A presença de registos completos e actualizados com informação detalhada dos
fármacos utilizados, as dosagens, as vias de administração e os efeitos
adversos, são importantes para a existência de dados fidedignos essenciais que
servirão de base para avaliação de segurança e eficácia dos fármacos, nos quais
estudos mais complexos em crianças são inexequíveis por limitações práticas e
éticas.
À semelhança de outras populações com características especiais, tais como as
grávidas e os idosos, a publicação e difusão desta informação pela comunidade
científica são fundamentais para a aquisição de novos dados sobre segurança
possibilitando a aprovação de novas dosagens, de novas indicações clínicas e/ou
da prescrição em crianças mais novas, diminuindo a utilização off-label de
fármacos que, apesar de frequentemente adequada, pode não ser isenta de riscos.