Avaliação da função respiratória: Comparação entre valores de referência
percentuais fixos e o 5.º percentil para diagnóstico de obstrução das vias
aéreas
INTRODUÇÃO
As provas de função respiratória são instrumentos essenciais na avaliação de
diversas patologias, nomeadamente na asma e na doença pulmonar obstrutiva
crónica (DPOC), para confi rmação diagnóstica, monitorização da evolução
natural, ou após intervenção terapêutica1,2. A sua correcta interpretação
baseia-se na avaliação dos resultados obtidos em função de equações de
referência publicadas internacionalmente, que estabelecem os valores previstos
de normalidade para cada parâmetro funcional respiratório, obtidos em estudos
de controlos saudáveis da população em geral. Os valores previstos variam em
função da idade, altura, género e etnia, sendo os valores medidos classicamente
comparados com um valor previsto expresso em valor percentual. Esta avaliação
pressupõe uma constância do coeficiente de variabilidade entre diferentes
indivíduos, o que não se verifica de facto, estando comprovado que a
variabilidade dos valores medidos não é proporcional ao valor previsto1-3.
A demonstração de uma relação FEV1/VC (volume expiratório máximo no 1.º segundo
/ capacidade vital) ou FEV1/FVC (capacidade vital forçada) diminuída permanece
como o critério universalmente aceite para o diagnóstico de obstrução das vias
aéreas na prática clínica. Efectivamente, tem sido uma prática comum a
utilização de um valor fixo de cut -offpara esta finalidade, geralmente
inferior a 0,70, com base sobretudo nos critérios apontados pelas recomendações
Global Initiative for Asthma(GINA)4 e Global Initiative for Chronic Obstructive
Lung Disease(GOLD)5.
Embora não havendo base epidemiológica, fisiológica ou estatística para a
escolha de 0,70 (ou, na verdade, para qualquer outra proporção que pudesse ser
arbitrariamente definida como um ponto de cut-offcom esta finalidade), esta
prática permanece implementada em muitos laboratórios de função respiratória,
tal como na rotina clínica, um pouco por todo o mundo6.
As mais recentes orientações internacionais, consensualmente propostas pela
American Thoracic Society(ATS) e pela European Respiratory Society(ERS),
desencorajam a definição do limite de normalidade com base em valores
percentuais fixos, recomendando a utilização do 5.º percentil7-9. A utilização
do 5.º percentil traduz-se na avaliação com base em 90% do limite de confiança
do valor previsto, isto é, considerando 5% de erro para os limites inferior e
superior da normalidade7,10. O seu cálculo resulta do produto de 1,645 pelo
desvio-padrão residual (RSD)11. Para parâmetros cujo valor seja igualmente
valorizável como baixo ou como elevado (como ocorre, por exemplo, na
determinação pletismográfica da capacidade pulmonar total ' TLC, do volume de
gás intratorácico ' ITGV ou do volume residual ' RV), efectua-se o mesmo
raciocínio para o cálculo de limite superior da normalidade (ULN). Na
espirometria não é relevante, do ponto de vista clínico, a utilização de
limites superiores da normalidade, pelo que, neste contexto, apenas se utiliza
a referência do limite inferior da normalidade2.
Vários estudos populacionais têm documentado a existência de uma discrepância
na utilização dos valores fixos de percentagem do previsto em comparação com a
utilização do limite inferior de 90% do intervalo de confiança (5.º
percentil)2,11 -15.
Foi objectivo deste trabalho comparar os resultados de função respiratória
obtidos na prática clinica, utilizando os valores percentuais fixos versusos
valores do 5.º percentil, como limite da normalidade (método de referência),
para diagnóstico funcional de obstrução das vias aéreas.
MATERIAL E MÉTODOS
Desenho do estudo
Foram analisadas retrospectivamente todas as provas de função respiratória
(espirometria e pletismografia corporal) em regime basal, efectuadas pelos
autores no Laboratório de Exploração Funcional Respiratória, de Janeiro a
Dezembro de 2011. Foram incluídos os exames de todos os indivíduos com idade
igual ou superior a 6 anos, a quem foi solicitado um estudo funcional
respiratório pelo médico assistente do ambulatório de Imunoalergologia.
Excluíram-se deste estudo todas as provas de função respiratória em que estavam
dados omissos. Foram registados os dados antropométricos, bem como a idade e o
género.
Não foram considerados para efeitos desta análise os motivos pelos quais foi
solicitado o estudo funcional respiratório ou outros detalhes clínicos,
incluindo o tabagismo e o diagnóstico.
O estudo foi aprovado pela comissão de ética da instituição.
Parâmetros funcionais respiratórios
Foi utilizado o equipamento Jaeger MasterScope Spirometer (v.4.65, CareFusion
Ltd, San Diego, Estados Unidos da América) por um técnico especializado. Para
cada indivíduo, foram registados os melhores valores dos parâmetros funcionais
respiratórios, de entre pelo menos três manobras reprodutíveis tecnicamente
aceitáveis. Inicialmente foi avaliado o grau de concordância entre os dois
métodos de avaliação da função respiratória (limites da normalidade e valor
percentual fixo) para diagnóstico de obstrução brônquica em todos os exames
funcionais respiratórios incluídos no presente estudo. Após distribuição por
faixas etárias, foi avaliada em cada uma destas a proporção de exames
classificados como tendo obstrução por cada um dos métodos.
Considerando os doentes que apresentaram critérios de obstrução para a razão
FEV1/VC de acordo com o método de referência, LLN, foram analisados os
parâmetros razão FEV1/VC, FEV1, e FVC, considerando os limites da normalidade e
as percentagens do previsto (FEV1/VC >70%, FEV1 e FVC >80%), sendo efectuada a
avaliação após distribuição por faixa etária.
De igual modo, nos doentes com obstrução, foram avaliados a TLC e o RV pelo ULN
e pela percentagem superior do previsto (superior a 120% para TLC e superior a
140% do previsto para RV) para determinar hiperinsuflação, bem como o LLN e
valor fixo percentual (TLC inferior a 80%) para diagnóstico de síndrome
ventilatória mista.
Análise estatística
A análise estatística dos dados foi realizada com recurso ao SPSS versão 20.0
para Windows (SPSS, Chicago, IL, Estados Unidos da América).
Utilizou -se a definição FEV1/VC inferior ao LLN como padrão de referência para
identificar e valorizar as verdadeiras obstruções funcionais das vias aéreas.
Calculou-se grau de concordância com o diagnóstico de obstrução na amostra
global usando o cut -off0,70 com recurso ao teste de concordância Kappade
Cohen.
Para todo os parâmetros funcionais respiratórios foi estimada a proporção de
resultados mal classificados como tendo, ou não, obstrução brônquica utilizando
o método percentual fixo. Também foram calculadas sensibilidade, especificidade
e valores preditivos positivo e negativo do método percentual fixo, em relação
ao LLN, bem como o grau de concordância de cada parâmetro entre os dois métodos
utilizados, pelo teste de concordância Kappade Cohen.
RESULTADOS
Durante o ano de 2011 foram efectuados 1358 estudos de função respiratória, que
corresponderam aos critérios de inclusão. Destes, foram excluídos 8 em que
estavam omissos dados. A amostra final incluiu 1350 indivíduos, com idades
compreendidas entre os 6 e os 90 anos.
Destes, 175 (13%) apresentavam obstrução com base na relação FEV1/VC pelos dois
métodos (percentagem do previsto e limite inferior da normalidade), 1092 tinham
um estudo funcional respiratório normal e 83 apresentavam resultados
discordantes. Globalmente, o grau de concordância entre os dois critérios foi
apenas razoável (Kappa= 0,655 ± 0,035).
Entre os 124 doentes que apresentavam obstrução utilizando a definição do LLN,
32 (26%) teriam tido um estudo funcional considerado normal se utilizado o
cut'off0,70. Este subdiagnóstico funcional verificou-se sobretudo nas classes
etárias mais jovens (Figura_1 e Figura_2).
Pelo contrário, quando utilizado o valor percentual fixo de 0,70 para
diagnóstico de obstrução das vias aéreas, identificaram-se 143 casos. Entre
estes, apenas 92 (64%) apresentavam uma verdadeira obstrução usando o método de
referência (LLN).
A utilização do cut-off0,70 conduziria a um sobrediagnóstico, errado em 36% dos
casos. Tal verificou-se sobretudo nas classes etárias de idades mais elevadas,
nomeadamente dos 46 aos 55, dos 56 aos 65 e dos 66 aos 75 anos (Figura_1 e
Figura_2).
A utilização do método percentual fixo para diagnóstico de obstrução das vias
aéreas, comparativamente à utilização do percentil 5, apresentou nesta amostra
uma sensibilidade de 74%, especificidade de 96%, valor preditivo positivo de
64% e valor preditivo negativo de 97%.
Os parâmetros FEV1, FVC e TLC nos doentes com obstrução brônquica encontram-se
no Quadro_1, considerando ambos os critérios, os LLN e as percentagens fixas. O
grau de concordância entre os valores de FVC e TLC pelos dois critérios é
elevada (Kappa=0,845 e Kappa=1, respectivamente), o que permite inferir que a
taxa de sobrediagnóstico de defeitos ventilatórios mistos não será elevada se
usado indiferentemente qualquer um dos critérios. Entre os doentes com
obstrução, cerca de metade (n=61) apresentava redução do FEV1 quando usado o
LLN e, em 59 desses, houve concordância na diminuição deste parâmetro se usado
o cut -off80% do previsto (Kappa= 0,807 ± 0,053).
Relativamente à hiperinsuflação, os parâmetros TLC e RV nos doentes com uma
verdadeira obstrução brônquica encontram-se no Quadro_2, considerando-se ambos
os critérios, os ULN e as percentagens fixas. Observou-se hiperinsuflação
diagnosticada por um valor de RV acima do ULN em 86 doentes, dos quais 11
seriam erradamente classificados se usado o critério de RV acima de 140% do
previsto (Kappa=0,807±0,055). Já no que diz respeito à utilização da TLC para o
mesmo fim, a taxa de concordância foi muito baixa (Kappa= 0,243 ± 0,053),
observando-se uma elevada taxa de subdiagnóstico quando utilizado o valor
percentual fixo (Quadro_2).
DISCUSSÃO
O presente estudo demonstra que a utilização de valores percentuais fixos para
diagnóstico de obstrução das vias aéreas conduziria a uma elevada taxa de
indivíduos erradamente classificados. O resultado do estudo funcional
respiratório apoia muitas vezes a decisão clínica de step-upou step-
downterapêutico em doentes com asma ou DPOC, pelo que a sua correcta
interpretação e classificação são fundamentais. O subdiagnóstico afectaria
sobretudo classes etárias mais jovens e o sobrediagnóstico as classes etárias
mais elevadas. Algumas pessoas saudáveis têm um ratio FEV1/VC inferior a 0,70,
e a proporção de indivíduos nessas circunstâncias aumenta com o avançar da
idade16, o que se encontra de acordo com os resultados observados no presente
estudo. A utilização do método percentual fixo para diagnóstico funcional de
obstrução das vias aéreas apresentou nesta amostra uma sensibilidade e valor
preditivo positivo baixos, comparativamente ao método de referência, apesar de
apresentar uma boa especificidade e valor preditivo negativo. Além disso,
observou -se que, quando seleccionados os doentes com uma obstrução brônquica
efectivamente diagnosticada pelo critério valorizado como gold-standard, a
posterior utilização de um critério percentual fixo para identificar alteração
dos restantes parâmetros funcionais não resultou em prejuízo ou erro de
classificação significativos, nomeadamente no que diz respeito a síndromes
ventilatórias mistas.
Já relativamente à hiperinsuflação, muitas vezes a primeira demonstração de
asma ou DPOC, a utilização do valor percentual fixo deu origem a uma elevada
taxa de subdiagnóstico.
Apesar da recomendação das normas GINA e GOLD para a importância da valorização
do valor fixo da relação FEV/FVC, bem como da classificação da gravidade da
obstrução com base no FEV1 4,5, a utilização de um cut-offfixo não tem em
consideração as alterações nos valores previstos em relação à idade, altura,
etnia e género. A utilização de uma percentagem fixa do previsto poderia
justificar-se apenas se os parâmetros respiratórios fossem razoavelmente
constantes durante a vida e se os dados absolutos, a partir dos quais deriva a
equação de regressão, tivessem uma distribuição heterocedástica, de tal modo
que a dispersão de dados variasse em proporção com a mudança de uma variável de
previsão15,17. Stanojevic et al., num grande estudo populacional, comprovaram
que a utilização de valores fixos em espirometria conduz a erros de
classificação quanto à normalidade da mesma3.
São vários os estudos que têm documentado a existência de uma significativa
divergência para os valores dos estudos funcionais respiratórios com a
utilização dos valores fixos de percentagem do previsto em comparação com a
utilização do limite inferior de 90% do intervalo de confiança (5.º
percentil)2,11-15. Embora os dois critérios se possam aproximar em algumas
situações, tal ocorrência é muitas vezes casual e acontece ao longo de uma
faixa muito estreita de valores15.
Os presentes resultados não se encontram de acordo com o previamente reportado
por Gaspar-Marques et al., que encontraram um elevado grau de concordância
entre os dois métodos; no entanto, no referido estudo, os autores apenas
avaliaram doentes em idade pediátrica, com um número limitado de casos
incluídos na análise18. Por outro lado, refira-se que a discrepância entre os
dois métodos de avaliação da função respiratória encontra-se bem definida como
discordante, em adultos jovens e em idosos, o que constitui a maioria dos
doentes do presente estudo.
Torna-se assim importante a utilização universal do mesmo método de avaliação
nos laboratórios de função respiratória para todas as faixas etárias
consideradas.
Estudos populacionais16 e clínicos6 têm sugerido a mais-valia da utilização de
valores de referência com base no percentil 5, de acordo com o reportado no
presente estudo.
Miller et al., que efectuaram um estudo de cariz clínico com base na avaliação
retrospectiva de provas de função respiratória (espirometria, avaliação de
volumes estáticos por pletismografia e difusão) efectuadas em diversos
laboratórios de exploração funcional respiratória, concluíram que a utilização
de valores fixos percentuais como referência, em relação à utilização dos
valores de referência do 5.º percentil, conduziu a uma errada classificação de
doença em mais de 20% dos doentes17.
Como limitações do presente estudo, devemos apontar a natureza retrospectiva da
análise que, embora incluindo um grande número de indivíduos, não permite
avaliar factores relacionados com os indivíduos, como a presença de tabagismo,
o motivo de realização do estudo funcional respiratório ou o diagnóstico
clínico. De facto, a informação clínica é de primordial importância quando se
analisam os resultados de função respiratória. Güder et al.concluíram
recentemente que, nos doentes com DPOC, a concordância tanto do critério GOLD
como LLN foi apenas razoável quando considerado como goldstandardo diagnóstico
clínico19. Mais ainda, os referidos autores demonstraram que apenas a
incorporação de outros parâmetros respiratórios (FEV1 e RV/TLC) aos critérios
GOLD ou ao percentil 5 aproximava as duas definições do diagnóstico médico de
DPOC e da prática clínica diária19.
Será também importante referir que não foram avaliados neste estudo outros
factores, como a altura ou o género, que, além da idade, podem contribuir para
as discrepâncias observadas entre os dois critérios. Não foram também
analisados outros padrões, nomeadamente restritivo ou misto, pois o objectivo
do trabalho centrou'se apenas no diagnóstico funcional de obstrução das vias
aéreas.
Por outro lado, a reversibilidade ao broncodilatador, critério que apoia também
o diagnóstico nosológico de asma versusDPOC, e cuja avaliação é defendida pelas
guidelinesinternacionais GOLD e GINA, não foi considerada nesta análise.
Não obstante, por terem sido seguidos sempre os mesmos critérios de
aceitabilidade e de reprodutibilidade, pelo facto das provas terem sido
executadas no mesmo equipamento e sempre por técnicos especializados, bem como
o grande número de casos estudados, conferem a este trabalho robustez. É o
primeiro estudo com um elevado número de doentes e incluindo todos os grupos
etários realizado em Portugal. Os resultados são sólidos e apoiados pela
literatura e por outros estudos com semelhante metodologia.
Estudos prospectivos, com amostras de maior dimensão e tendo em conta variáveis
como a altura e o género, bem como a presença de tabagismo e, sobretudo, o
diagnóstico clínico efectuado pelo médico, deverão ser levados a cabo para
suportar os resultados observados no presente estudo.
A comprovação do benefício da utilização dos valores de 5.º percentil como
referência permitirá a adopção generalizada dos mesmos nos laboratórios de
função respiratória, possibilitando uma correcta interpretação das alterações
da função respiratória e uma melhor prestação de cuidados aos doentes com
patologia respiratória.
CONCLUSÃO
A avaliação da função respiratória é um meio de confirmação diagnóstica e de
avaliação da gravidade da obstrução brônquica, fornecendo informações
complementares acerca de diferentes aspetos do controlo da doença.
Porém, a utilização de critérios percentuais fixos resulta, quer em
subdiagnóstico, quer em sobrediagnóstico de obstrução, numa percentagem
significativa de casos, resultando naturalmente em prejuízo da qualidade
assistencial desses indivíduos. A utilização dos valores de 5.º percentil como
referência deverá ser adoptada nos laboratórios de função respiratória,
possibilitando uma correcta interpretação das alterações da função respiratória
e uma melhor prestação de cuidados aos doentes com patologia respiratória
obstrutiva crónica.