O uso de anestésico local não afecta o resultado dos testes intradérmicos
INTRODUÇÃO
Dentro das reacções adversas a medicamentos estão incluídas as de natureza
alérgica, que pelas suas caraterísticas podem implicar um desafio diagnóstico.
A abordagem destas reacções baseia-se na história clínica, mas esta, de forma
isolada, frequentemente não é sufi ciente para identificar o agente, pois não
raras vezes diferentes fármacos são administrados simultaneamente.
Por outro lado, o quadro clínico de hipersensibilidade a fármacos é muito
heterogéneo. Deve proceder-se sempre à identifi cação da relação entre a
administração do medicamento e os sintomas, bem como a clarificação do
mecanismo patofisiológico subjacente à reacção. Desta forma, reduzem-se
evicções desnecessárias pela possibilidade de uma reacção alérgica e contribui-
se para o esclarecimento da epidemiologia e da fisiopatologia da alergia a
fármacos1. O gold-standardpara o diagnóstico é a prova de provocação ao fármaco
suspeito, mas a sua utilização é frequentemente limitada pela possibilidade de
ocorrência de reacções graves. Os testes cutâneos, incluindo os testes
intradérmicos (TID), embora validados apenas para alguns grupos de fármacos,
são largamente utilizados por serem métodos convenientes de avaliação de
sensibilização, além da capacidade adicional de promoverem uma perspectiva
sobre o mecanismo imunológico1,2. Quanto à alergia a veneno de himenópteros
(VH), a realização de testes cutâneos é recomendada para esclarecimento
diagnóstico3.
O diagnóstico implica a realização de testes cutâneos por picada (TCP),
prosseguindo-se para TID se os primeiros forem negativos, sendo que a
sensibilidade diagnóstica destes é de 90% ou mesmo superior4-8.
É, portanto, consensual e reconhecida a importância dos TID no processo
diagnóstico de alergia a fármacos e VH. Porém, os TID são dolorosos, o que por
vezes limita o seu uso1. Nos últimos anos, a medicina evoluiu e tem sido dada
particular atenção à prevenção da dor iatrogénica.
Assim, os actos diagnósticos ou terapêuticos, como punções venosas, punções
lombares, cateterização de artéria radial, vacinação, remoção de drenos
pleurais, são muitas vezes precedidos, tanto em crianças como em adultos, da
aplicação de anestésico tópico EMLA® (Eutectic Mixture of Local Anesthetics),
um creme que contém lidocaína e prilocaína (AstraZeneca, Rueil-Malmaison,
França)9-19. Em estudos prévios, esta formulação de anestésico tópico já
demonstrou reduzir significativamente a dor associada a testes cutâneos de
alergia20-22.
No entanto, porque os anestésicos locais actuam sobre a pele alterando a
perfusão basal cutânea e a sua regulação23, especulou-se que a utilização de
EMLA® para aliviar a dor causada pelos TID podia alterar a resposta da pápula
e/ou eritema, por modificar o recrutamento de células sensibilizadas ao local.
Portanto, a sua utilização no contexto do diagnóstico de alergia a fármacos ou
VH foi abandonada. No entanto, esta questão nunca foi investigada, e esta
prática tem assentado apenas em especulações.
O objectivo do presente trabalho foi determinar, em doentes com suspeita de
alergia a fármacos ou VH, os efeitos de um patchde anestésico tópico contendo
prilocaína e lidocaína sobre a pápula dos TID realizados com fármacos e VH, bem
como a pápula dos controlos positivo e negativo.
MÉTODOS
Desenho do estudo e características dos doentes
Estudo transversal controlado, efectuado no Serviço de Imunoalergologia do
Centro Hospitalar São João, entre Maio de 2010 e Maio de 2012. Foram incluídos
doentes referenciados para realizar testes cutâneos por suspeita de reacções de
hipersensibilidade imediata a fármacos ou VH, com idade superior a 8 anos de
idade (TID em crianças mais jovens não são normalmente realizados no nosso
Serviço, devido à dor associada ao procedimento).
Aqueles que apresentaram resultados positivos nos TID foram convidados a
participar, tendo sido fornecida informação escrita sobre o estudo, assinado
consentimento informado e recolhidos os dados clínicos. Os doentes foram
controlos de si mesmos e os TID repetidos no próprio dia no braço
contralateral, após colocação do patchEMLA®. Consideraram -se critérios de
exclusão: reacções de hipersensibilidade tardia, gravidez ou amamentação,
reacções de hipersensibilidade anteriores aos anestésicos locais, reacções
prévias graves durante realização de TID, doentes com meta -hemoglobinemia,
reacções de hipersensibilidade conhecida a outros componentes do patchEMLA®
(carboxipolimetileno, hidróxido de sódio, óleo de rícino de polietilenoglicol
35 e água purificada) e todos sob qualquer terapêutica sistémica com potencial
de interferir com o resultado dos TID1.
Foi incluída secundariamente uma amostra de doentes com história de reacções de
hipersensibilidade imediata a fármacos, mas TID negativos, para avaliar a
possível ocorrência de resultados falsos positivos com a utilização de
anestésico tópico.
O estudo foi realizado em conformidade com a Declaração de Helsínquia de
investigação médica envolvendo Seres Humanos.
Procedimentos e avaliação
O patché um disco de celulose absorvente, saturado com 1 g de emulsão EMLA® a
5% e consiste num sistema de emulsão de óleo -água, no qual a fase com óleo é
composta por uma mistura eutéctica das formas de base de lidocaína (25 mg/g) e
prilocaína (25 mg/g); como excipientes contém carboxipolimetileno, hidróxido de
sódio, 19 mg/g de óleo de rícino de polietilenoglicol 35 e água purificada.
Antes da realização do TID, o patch<foi aplicado de acordo com as recomendações
do fabricante durante 1 hora na face anterior do antebraço.
Os TID foram efectuados de acordo com as recomendações internacionais da
Academia Europeia de Alergologia e Imunologia Clínica (EAACI)1, tendo também
sido realizadas injecções intradérmicas de controlo salino (controlo negativo).
Vinte minutos depois, era observado o local e considerada uma reacção positiva
se tivesse ocorrido um aumento da pápula inicial, igual ou superior a 3 mm,
associado a eritema1. O resultado era demarcado com caneta e decalcado com fita
transparente, sendo arquivado em papel. Posteriormente calculou-se o diâmetro
médio das pápulas inicial e final, medindo o maior diâmetro e o seu
perpendicular com uma régua milimétrica1. Foram realizados exactamente os
mesmos passos na área anestesiada, após remoção do EMLA®.
O controlo positivo foi realizado com recurso à técnica de TCP, utilizando
histamina (10mg/mL, Leti® Laboratórios, Madrid, Espanha) na face anterior do
antebraço.
Quinze minutos depois, o resultado era delineado com caneta e decalcado com
fita transparente, sendo também arquivado em papel. Posteriormente calculou-se
o diâmetro médio da pápula final, medindo o maior diâmetro e o seu
perpendicular com uma régua milimétrica. Foram realizados exactamente os mesmos
passos na área anestesiada, após remoção do EMLA®.
Registaram-se os efeitos adversos (que incluem palidez no local de aplicação do
anestésico, eritema, discreto edema ou dermatite de contacto).
Análise estatística
Na análise estatística foi utilizado o SPSS ' statisticalpackage version20.0
for Windows (IBM SPSS, Chicago, Estados Unidos da América). As variáveis
contínuas são apresentadas como médias e intervalo de confiança (IC) a 95%, ou
desvio -padrão no caso específico da variável idade. Foi aplicada transformação
logarítmica quando se verificou a não -normalidade da amostra, e apresentada a
mediana.
No caso dos testes cutâneos por picada com histamina e dos TID com controlo
salino, usou-se para fins estatísticos a pápula final (medida após 15 e 20
minutos, respectivamente).
No caso dos TID com fármacos e VH, utilizou-se o aumento da pápula ao fim de 20
minutos, tendo-se calculado da seguinte forma: diâmetro médio da pápula final '
diâmetro médio da pápula inicial. Para comparar o aumento das pápulas com e sem
EMLA®, utilizou-se o teste t de Studentpara amostras emparelhadas, ou o teste
de Wilcoxon no caso de variáveis sem distribuição normal (p<0,05).
O tamanho da amostra foi calculado assumindo uma diferença entre os TID dos
casos e controlos, e utilizando teste t de Studentpara amostras emparelhadas,
de 0,5 mm, um desvio-padrão de 120 e um poder (1 ' β) de 90% e um nível de
significância de 0,05, tendo-se obtido um número de TID necessários de 44.
RESULTADOS
Foram incluídos 44 doentes (idade média 44±19 anos, todos caucasianos, 30 do
sexo feminino), tendo sido realizados 53 TID. Destes, 37 apresentavam TID
positivos com fármacos (14 com antibióticos, 10 com anestésicos gerais, 6 com
anti-inflamatórios não esteróides, 3 com contrastes iodados e 4 com anti-
histamínicos (anti -H) ' 3 anti -H1 e 1 anti -H2) e 8 com VH (7 com extracto de
abelha e 1 com extracto de vespa). Os restantes 8 TID foram realizados em
doentes com TID previamente negativos (1 com piridoxina e os restantes com
antibióticos). No Quadro_1 encontram-se representados os fármacos utilizados.
p>Não foram observadas diferenças nos testes cutâneos com e sem anestésico
tópico no que diz respeito a TID com fármacos, VH, controlo salino ou TCP com
histamina (Quadro_2). Em nenhum dos doentes se observou negativação dos TID
previamente positivos.
De igual forma, nenhum dos oito doentes com TID negativos apresentou
positividade nos TID realizados na área anestesiada.
Não foram reportados quaisquer efeitos laterais, imediatos ou tardios.
DISCUSSÃO
Este estudo mostra que a leitura dos TID não é significativamente afectada pelo
uso de um patchanestésico contendo lidocaína e prilocaína, apesar da
especulação teórica do seu papel em potencialmente reduzir o afluxo de células
sensibilizadas24. Estudos anteriores tinham já evidenciado que a utilização de
EMLA® diminuía de forma significativa a dor associada aos testes cutâneos20-22.
No entanto, nesses estudos, os TID foram realizados com aeroalergénios20 ou
apenas com histamina e controlo negativo21,22. Esta é a primeira vez que se
investiga a interferência do EMLA® na leitura de TID com fármacos e VH, tendo -
se demonstrado que a sua utilização não influencia significativamente os
resultados. Não foram identificados casos de resultados falsos negativos, nem
ocorreu negativação de nenhum TID previamente positivo. Algumas limitações
devem ser tidas em linha de conta. Como se tratou de um trabalho em ambiente
real, que incluiu doentes referenciados à Unidade de Alergia a Fármacos, não
foi possível seleccionar os fármacos ou VH a incluir. Por outro lado, apenas
foi testada a mistura de lidocaína e prilocaína em patch, pelo que os
resultados não podem ser generalizados a formulações em creme ou a outros
anestésicos tópicos. Mais ainda, poder-se-ia ter utilizado uma escala visual
analógica para quantificar a dor sem e com EMLA®, e nesse caso dever-se'ia ter
procedido a um estudo em ocultação e controlado com placebo, mas a avaliação da
dor não fazia parte do objectivo do trabalho por ter sido já demonstrado em
literatura prévia20-22. Por esse motivo, foi realizado um estudo aberto.
Neste estudo destaca-se o facto de ser pioneiro e de carácter inovador, dado
que é a primeira vez que se avalia a utilização de EMLA® nos resultados dos TID
com fármacos e VH. Foi utilizada uma amostra de tamanho apropriado para
determinar os efeitos da hipótese de estudo levantada. Por outro lado, a
aplicação de um patchsempre com a mesma concentração dos anestésicos, garante a
estandardização da quantidade de anestésico aplicada em cada doente. Mais
ainda, os TID com e sem EMLA® foram realizados no próprio dia no mesmo doente;
como os próprios doentes serviram de controlos de si mesmos, foi possível
controlar eventuais efeitos confundidores que poderiam ocorrer se se tratasse
de diferentes doentes ou distintas alturas. Foram incluídos apenas doentes
caucasianos, de forma a evitar enviesamento dos resultados, uma vez que tem
sido reportado que outras etnias, por exemplo a afro-americana, têm menor
magnitude e duração dos efeitos anestésicos do EMLA®25. Não obstante o facto de
não se terem incluído todas as classes de fármacos, nem um número adequado de
fármacos em algumas das classes, ou de extractos de vespa, foi possível
analisar um número considerável de TID. Serão naturalmente necessários, no
futuro, estudos com amostras de maiores dimensões e multicêntricos para
corroborar estes resultados, e generalizar a outras classes de fármacos, bem
como corroborar a ausência de falsos negativos com a utilização de EMLA®.
Os estudos anteriores versando esta temática foram consensuais quanto à
diminuição significativa da dor20-22, tendo no entanto divergido relativamente
à leitura dos testes. Tal ocorreu nas situações em que era utilizada histamina
na concentração de 0,1mg/mL e apenas com o eritema, não com o tamanho da
pápula. Não se verificou, em nenhum desses trabalhos, diminuição da pápula dos
TID com aeroalergénios, com controlo salino ou com histamina na concentração de
10mg/mL, utilizada e recomendada como controlo positivo. No entanto, estes
trabalhos marcaram uma tendência de actuação desde então.
Com o nosso estudo demonstramos que a possibilidade de utilizar EMLA® deverá
ser reconsiderada. Serão necessários mais estudos com amostras de maiores
dimensões, até que possa ser considerada uma prática clínica generalizada,
nomeadamente tendo em atenção o custo associado ao anestésico e o tempo
necessário para a sua actuação e o reduzido número de doentes com alergia a VH
incluído, mas em situações pontuais poderá ser considerado.
CONCLUSÕES
A utilização do penso impregnado EMLA® não afecta significativamente o tamanho
da pápula nos testes intradérmicos com fármacos. De igual forma, não parece
afectar o tamanho da pápula nos testes com veneno de himenópteros, embora neste
caso a amostra seja pequena para inferir resultados definitivos. A aplicação de
anestesia tópica parece ser, portanto, uma opção válida a considerar para a
realização de testes intradérmicos. De
futuro, serão necessários mais estudos, com amostras de maiores dimensões e
contemplando mais classes de fármacos, bem como mais extractos de veneno de
himenópteros, para permitir generalizar esta opção, que se revelou segura e
fidedigna, à prática clínica.