Doença do soro-like associada à administração de fármacos em idade pediátrica
INTRODUÇÃO
A doença do soro, descrita pela primeira vez em humanos em 1905 por Pirquet e
Schick, é uma reacção sistémica que ocorre após a administração de soro
heterólogo, habitualmente de origem animal1.
Consiste numa reacção de hipersensibilidade (HS) do tipo III, mediada por
imunocomplexos (IC) que se depositam na parede de pequenos vasos, levando à
activação do sistema do complemento, com a consequente libertação de mediadores
inflamatórios e lesão tecidular2. Clinicamente caracteriza-se por febre, lesões
cutâneas, artralgias/artrite, linfadenopatia, nefrite com albuminúria e
hematúria e, mais raramente, hepatoesplenomegalia. O prognóstico é favorável,
com evolução para a cura, sem sequelas, em dias a semanas3. A incidência da
doença do soro tem vindo a diminuir em consequência do menor uso de soro
heterólogo de origem animal, sendo actualmente rara4. No entanto, existe uma
outra entidade, clinicamente semelhante, que se designa por doença do soro -
like(DSL). Esta é mais frequente em idade pediátrica e surge, muitas vezes,
associada à administração de fármacos. O mecanismo patofisiológico subjacente
ainda não está esclarecido, mas, na maioria dos casos, não é possível detectar
IC. Assim, a DSL não cursa, habitualmente, com hipocomplementemia, vasculite ou
nefrite5.
As manifestações clínicas mais comuns são febre, artralgias e lesões cutâneas
(urticária, angioedema)6. O fármaco mais vezes implicado é o cefaclor7, mas
muitos outros têm sido descritos: penicilina8, amoxicilina9, cefazolina10,
cefuroxima11,12, ceftriaxona12, meropenem13, sulfonamidas14, macrólidos15,
ciprofl oxacina16, tetraciclinas17,18, rifampicina19, griseofulvina20,
itraconazol21, bupropiom22,fluoxetina23, omalizumab24, rituximab25,
fenilbutazona26, clopidogrel27, entre outros.
Não existem alterações laboratoriais características da doença4. O hemograma é
frequentemente normal, ou, por vezes, revela leucocitose ou leucopenia
transitórias.
A velocidade de sedimentação pode estar normal, elevada ou diminuída. Dado que
não ocorre formação de IC, estes não são detectados e o doseamento das fracções
do complemento é, habitualmente, normal. O exame sumário de urina não revela
albuminúria, hematúria ou outras alterações. As enzimas de citólise hepática
(aspartato aminotransferase ' AST ' e alanina aminotransferase ' ALT) estão,
habitualmente, dentro dos valores de referência, assim como os índices de
função renal. O diagnóstico é essencialmente clínico, sendo determinado pela
relação temporal entre a ingestão do fármaco e o aparecimento da sintomatologia
(1 -3 semanas)5. O diagnóstico diferencial em crianças faz -se com patologias
que cursem com febre, lesões cutâneas e atingimento articular: infecções
víricas (tais como, por parvovírus B19, rubéola ou mononucleose infecciosa) e
bacterianas (por exemplo, doença de Lyme ou endocardite bacteriana), doença de
Kawasaky, púrpura de Henoch-Schönlein, artrite idiopática juvenil, vasculite
urticariforme, lúpus eritematoso sistémico e, embora mais rara, doença
neoplásica28.
O tratamento consiste na suspensão do fármaco suspeito e, se necessário,
corticoterapia, anti-inflamatórios não esteróides, anti -histamínicos ou
gamaglobulina endovenosa.
A necessidade de hospitalização está, frequentemente associada a sintomatologia
incapacitante, nomeadamente, pelo atingimento articular, com consequente
dificuldade da marcha. Apesar disso, o prognóstico é habitualmente favorável,
tratando-se de uma patologia auto-limitada, com resolução completa em 7 a 21
dias20.
A DSL é uma patologia rara e pouco estudada. Este trabalho pretendeu descrever
uma série de casos de DSL em crianças observadas na consulta específica de
Alergia a Fármacos do Serviço de Imunoalergologia dum Hospital Pediátrico,
nomeadamente, os seus aspectos clínicos e resultados do estudo efectuado.
MATERIAL E MÉTODOS
Estudo retrospectivo dos processos clínicos dos casos pediátricos de DSL
avaliados numa consulta especializada de Alergia a Fármacos no Serviço de
Imunoalergologia do Hospital Maria Pia entre 2006 e 2012.
Os parâmetros avaliados foram os seguintes: género, idade do doente à data da
reacção, antecedentes pessoais e familiares de atopia, motivo de referenciação,
fármaco(s) suspeito(s) e motivo da sua prescrição, manifestações clínicas,
timingda reacção, meios complementares de diagnóstico realizados durante e/ou
após a reacção, tempo para resolução total do quadro clínico, necessidade de
recorrer ao serviço de urgência (SU) ou equivalente, tratamento da reacção
(suspensão do fármaco suspeito e/ou outras terapêuticas), resultado do estudo
na consulta de Alergia a Fármacos e orientação do doente.
Não havendo na literatura consenso sobre a orientação a dar a doentes com
suspeita de DSL associada à administração de fármacos, optou'se por fazer um
estudo com base nos meios auxiliares de diagnóstico disponíveis para a
suspeita de hipersensibilidade a beta-lactâmicos. O doseamento de
imunoglobulinas (Ig) E específicas para beta -lactâmicos foi proposto e aceite
por todos os doentes. Uma vez que todas as reacções foram tardias, não seria de
esperar encontrar valores de IgE específicas positivas e, assim, nos doentes em
que tal aconteceu, foram propostos testes cutâneos (TC). Aos restantes doentes
foi proposta prova de provocação oral (PPO) com o fármaco suspeito ou com
alternativo dentro do grupo dos beta -lactâmicos. As PPO realizadas foram
abertas, não controladas por placebo, e contemplaram um dia de administração em
regime de Hospital de Dia (doses crescentes do fármaco até atingir dose
cumulativa indicada para a idade e peso do doente). Dado que todas as reacções
foram não imediatas e surgiram, em média, ao 8.º dia de tratamento, os doentes
fizeram ainda administração continuada no domicílio, até perfazer ciclo de 8
dias nas doses e frequência habitual para cada fármaco testado.
O doseamento de IgE específicas para beta'lactâmicos (penicilina G, penicilina
V, amoxicilina, ampicilina e cefaclor) foi realizado através do sistema
ImmunoCAP®, Phadia ' Thermo Fisher Scientific, Uppsala, Suécia, sendo o
resultado apresentado em kU/L. O valor de cut-offconsiderado como resultado
positivo foi de 0,35 kU/L. Os TC (por picada e intradémicos) foram efectuados
respeitando os períodos de evicção estipulados para os medicamentos relevantes
e utilizando a metodologia recomendada pelo grupo de interesse de Alergia a
Fármacos da Academia Europeia de Alergologia e Imunologia Clínica (European
Network for Drug Allergy'ENDA) para o diagnóstico das reacções não imediatas a
beta- actâmicos29,30. As PPO foram realizadas seguindo as recomendações do
mesmo grupo31.
RESULTADOS
Foram incluídos 23 doentes, 13 do sexo feminino. A maioria não apresentava
antecedentes de atopia (87,5%) e nenhum tinha história pessoal ou familiar de
alergia medicamentosa prévia.
A idade na altura da reacção variou entre 1 e 7 anos (mediana de 3 anos).
O motivo de referenciação à consulta de Imunoalergologia foi, para todos os
doentes, suspeita de HS a fármacos. Os antibióticos beta -lactâmicos foram os
fármacos suspeitos em todos os casos: a amoxicilina/ácido clavulânico em 55%, a
amoxicilina em 32% e as cefalosporinas em 3 doentes (de 1.ª, 2.ª e 3.ª
gerações: cefatrizina, cefaclor, cefixima, respectivamente). Um doente
apresentava, após rever a história medicamentosa completa do episódio, mais do
que um fármaco suspeito: amoxicilina/ácido clavulânico, paracetamol e
ibuprofeno.
Os principais motivos de prescrição do antibiótico foram a amigdalite (41%) e a
otite média aguda (32%).
Todas as reacções foram não imediatas e surgiram, em média, ao 8.º dia de
tratamento (± 3 dias).
As lesões cutâneas e o atingimento articular (artralgias/artrite) verificaram -
se em todos os doentes, estando a febre presente em dois deles. De referir que
a febre foi considerada como manifestação da DSL nos casos em que os doentes já
estariam apiréticos e reiniciaram hipertermia.
Nos restantes casos, a febre foi integrada no contexto do quadro infeccioso
subjacente. Em nenhum dos casos havia referência a linfadenopatia ou
hepatoesplenomegalia na altura da reacção. As manifestações cutâneas mais
frequentemente descritas foram a urticária (55%) e o exantema maculopapular
(35%). Apenas um doente apresentou angioedema (labial e periorbitário).
A maioria dos doentes (n=21) realizou estudo analítico durante a fase aguda,
que incluía hemograma, velocidade de sedimentação, doseamento de fracções do
complemento e serologias víricas e para bactérias atípicas.
As principais alterações encontradas no hemograma foram a leucocitose com
neutrofilia, não se tendo verificado alterações no estudo do complemento.
Apenas um doente efectuou doseamento de IC circulantes, que foi negativo. O
exame sumário de urina foi pedido a 8 doentes, sendo normal em todos
(nomeadamente, sem hematúria ou albuminúria). A biópsia cutânea foi realizada a
um doente, tendo revelado alterações inflamatórias inespecíficas, enquadradas
no contexto de toxicodermia.
Um doente mostrou evidência de infecção activa por parvovírus B19 (IgM+/IgG -).
A maioria das reacções foi tratada no serviço de urgência com anti -
histamínicos, corticosteróides ou anti-inflamatórios não esteróides. Houve
necessidade de internamento em 11 doentes (48%): em 4 deles para vigilância
clínica, com alta ao fim de 24 horas. Nos restantes, o internamento deveu-se a
quadros mais exuberantes, com atingimento articular a condicionar incapacidade
para a marcha.
Apesar disso, todos os doentes apresentaram evolução favorável, com uma mediana
de 8 dias para a resolução completa (1 -45 dias). O doente que apresentou
quadro clínico mais longo teve uma evolução da doença caracterizada por surtos
e remissões, durante 45 dias até à cura completa.
No que diz respeito ao estudo efectuado na consulta específica de Alergia a
Fármacos, o doseamento de IgE específicas para beta-lactâmicos foi pedido em
todos os doentes, sendo positivo em dois casos: num dos doentes [doente 4]
(cujo fármaco suspeito era a cefatrizina) verificou-se positividade para
penicilina V (2,5 kU/L); no outro doente [doente 15], encontrou-se positividade
para todos os alergénios testados, à excepção do cefaclor (penicilina V [1,63
kU/L], penicilina G [2,46 kU/L], ampicilina [1,09 kU/L] e amoxicilina [2,87 kU/
L]).
Os TC por picada (TCP) e intradérmicos (ID) foram realizados apenas num doente
[doente 4] com positividade na leitura tardia dos ID para penicilina G. Este
doente foi aconselhado a manter evicção de beta-lactâmicos. No doente 15 o
fármaco envolvido na reacção era a amoxicilina.
O doente efectuou ciclo posterior de antibioterapia com amoxicilina/ácido
clavulânico sem intercorrências, não se tendo confirmado a suspeita de HS a
beta -lactâmicos, pelo que não foi aconselhada a sua evicção.
A PPO foi efectuada em quatro doentes, tendo sido negativa em todos eles. Nos
doentes 2 e 6, os fármacos testados foram os suspeitos (paracetamol e
amoxicilina, respectivamente), não se tendo confirmado a suspeita de HS, pelo
que não foi aconselhada a sua evicção. Os doentes 7 e 22 realizaram PPO com um
fármaco alternativo (cefixima, em doentes cujo fármaco suspeito era a
amoxicilina/ácido clavulânico), pelo que tiveram alta com cefixima como
antibiótico alternativo.
Em 4 doentes ocorreu contacto posterior com antibióticos beta -lactâmicos, sem
qualquer intercorrência.
Os doentes 5 e 23 contactaram posteriormente os fármacos envolvidos ' cefixima
e amoxicilina, respectivamente ' pelo que se excluiu a suspeita de HS a estes
fármacos. Nos outros dois casos, o contacto posterior foi com o cefaclor (em
doentes cujos fármacos suspeitos eram, respectivamente, a amoxicilina [doente
10] e a amoxicilina/ácido clavulânico [doente 21]). Nestes doentes não foi
possível excluir HS aos fármacos implicados, mas tiveram alta com antibiótico
alternativo.
Verificou-se que 13 doentes recusaram prosseguir o estudo, pelo que tiveram
alta da consulta, com indicação para manter evicção de beta-lactâmicos, dado
não ter sido possível confirmar ou excluir a suspeita de HS a estes fármacos.
No doente 16, cujo fármaco suspeito era a amoxicilina, foi proposta PPO com
cefalosporina, aceite mas ainda não realizada.
De seguida, apresenta-se um quadro-resumo com as características e o resultado
do estudo efectuado na consulta específica de Alergia a Fármacos nos doentes
pediátricos com DSL, observados no Serviço de Imunoalergologia do Hospital
Maria Pia.
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DISCUSSÃO
No presente estudo, verificou -se que, tal como descrito na literatura, as
manifestações clínicas mais frequentes da DSL são febre, artralgias e lesões
cutâneas, nomeadamente, urticária6. A ausência de alterações laboratoriais
específicas da doença descrita noutros estudos4 foi também constatada neste
trabalho. Assim, nenhum dos doentes apresentava hipocomplementemia, vasculite
ou nefrite5. À semelhança do habitualmente documentado, o prognóstico da doença
é favorável, com resolução do quadro em 7-21 dias, sem sequelas3,20. No
entanto, salienta -se a presença de atingimento articular, frequentemente
incapacitante, que pode levar ao internamento destas crianças, o que aconteceu
em 48% dos casos estudados. Esta percentagem elevada foi também já referida por
outros autores32.
A mediana de idades das crianças avaliadas foi de 3 anos, o que está de acordo
com outros trabalhos, que apontam para maior prevalência abaixo dos 5 anos32.
O cefaclor, fármaco mais frequentemente implicado na DSL7, surge, no presente
estudo, como fármaco suspeito em apenas um doente. Os autores consideram que
esta diferença nos fármacos mais frequentemente envolvidos poderá ser
justificada pelas alterações no padrão de prescrição, dado que o
desenvolvimento de resistências tem tornado o cefaclor num antibiótico cada fez
menos utilizado nas infecções em idade pediátrica33.
A DSL é uma patologia rara e pouco estudada, desconhecendo -se a sua
incidência, prevalência, mecanismos patofisiológicos e abordagem diagnóstica
adequada. Na literatura, verifica-se inexistência de directrizes acerca do
estudo mais adequado deste tipo de reacção (sobretudo numa fase posterior à
resolução). Assim, a DSL não consta nas indicações para proceder a TC (seja por
picada, intradérmicos ou epicutâneos) ou provas de provocação, mas também não é
apontada como contra -indicação29 -31. As opções sobre os procedimentos
diagnósticos são limitadas, pelo que restam ao clínico poucas alternativas na
abordagem e orientação destes doentes. Por um lado, poderão aconselhar a
evicção dos fármacos suspeitos, propondo alternativos.
Outra abordagem possível será utilizar os meios diagnósticos disponíveis, tal
como foi feito neste trabalho, em que os autores fizeram pedido de IgE
específicas para beta-lactâmicos a todos os doentes, visto este ser um estudo
facilmente acessível e não acarretar riscos para o doente.
No entanto, dado esta não ser, reconhecidamente, uma reacção mediada pela IgE,
a relevância dos resultados obtidos é muito discutível. Assim, a única forma de
confirmar//excluir o diagnóstico de DSL é através de uma prova de provocação
com o fármaco suspeito. Foi o que fizeram os autores de um estudo espanhol de
200934, que analisaram 39 crianças com reacções não imediatas às
aminopenicilinas, 14 delas com DSL. Do estudo efectuado nos doentes com DSL,
verificou -se que todos apresentavam IgE específicas e TC para beta -lactâmicos
(por picada, intradérmicos e epicutâneos) negativos. Todos os doentes
realizaram PPO com o fármaco suspeito, tendo sido positiva em 7 (50%), nos
quais foi possível confirmar a presença de HS a beta-lactâmicos. Os autores
concluem que a PPO parece ser um procedimento seguro e adequado para o
diagnóstico das reacções não imediatas às aminopenicilinas, sendo o valor dos
TC limitado nestas formas de apresentação.
O facto de não existirem alternativas para estudar estes doentes, para além da
PPO, a idade precoce dos doentes e a existência de sintomas incapacitantes que,
muitas vezes, justificam o internamento, poderá, no entender dos autores,
explicar a elevada percentagem de doentes (57%) que recusou prosseguir
investigação na consulta especializada de Alergia a Fármacos.
CONCLUSÕES
Uma vez que as manifestações clínicas podem simular outra patologia,
nomeadamente infecciosa, e surgir após o fim do tratamento com o fármaco, os
autores pretendem chamar a atenção para o elevado índice de suspeição
necessário para fazer o diagnóstico de DSL, determinado pela relação temporal
entre a ingestão do fármaco e o aparecimento do quadro clínico.
Não existem estudos sobre a prevalência de DSL associada à ingestão da maioria
dos fármacos. Para o cefaclor, os resultados têm sido divergentes de acordo com
os estudos: a incidência varia entre 0,024% (2 casos em 8346) e 0,5% (1 caso em
200), com uma incidência global de 0,055%35.
Uma vez que não se conhece o mecanismo patofisiológico subjacente a este tipo
de reacção, algumas questões permanecem em aberto, nomeadamente como deverá ser
feita a investigação e qual a orientação que deverá ser dada aos doentes.
Mais estudos são necessários para responder a estas e outras interrogações e
avançar um pouco mais no conhecimento sobre esta entidade que, sendo rara,
causa importante desconforto nas crianças e significativa ansiedade familiar.