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EuPTCVHe0871-97212013000400005

EuPTCVHe0871-97212013000400005

variedadeEu
Country of publicationPT
colégioLife Sciences
Great areaHealth Sciences
ISSN0871-9721
ano2013
Issue0004
Article number00005

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Doença do soro-like associada à administração de fármacos em idade pediátrica

INTRODUÇÃO A doença do soro, descrita pela primeira vez em humanos em 1905 por Pirquet e Schick, é uma reacção sistémica que ocorre após a administração de soro heterólogo, habitualmente de origem animal1.

Consiste numa reacção de hipersensibilidade (HS) do tipo III, mediada por imunocomplexos (IC) que se depositam na parede de pequenos vasos, levando à activação do sistema do complemento, com a consequente libertação de mediadores inflamatórios e lesão tecidular2. Clinicamente caracteriza-se por febre, lesões cutâneas, artralgias/artrite, linfadenopatia, nefrite com albuminúria e hematúria e, mais raramente, hepatoesplenomegalia. O prognóstico é favorável, com evolução para a cura, sem sequelas, em dias a semanas3. A incidência da doença do soro tem vindo a diminuir em consequência do menor uso de soro heterólogo de origem animal, sendo actualmente rara4. No entanto, existe uma outra entidade, clinicamente semelhante, que se designa por doença do soro - like(DSL). Esta é mais frequente em idade pediátrica e surge, muitas vezes, associada à administração de fármacos. O mecanismo patofisiológico subjacente ainda não está esclarecido, mas, na maioria dos casos, não é possível detectar IC. Assim, a DSL não cursa, habitualmente, com hipocomplementemia, vasculite ou nefrite5.

As manifestações clínicas mais comuns são febre, artralgias e lesões cutâneas (urticária, angioedema)6. O fármaco mais vezes implicado é o cefaclor7, mas muitos outros têm sido descritos: penicilina8, amoxicilina9, cefazolina10, cefuroxima11,12, ceftriaxona12, meropenem13, sulfonamidas14, macrólidos15, ciprofl oxacina16, tetraciclinas17,18, rifampicina19, griseofulvina20, itraconazol21, bupropiom22,fluoxetina23, omalizumab24, rituximab25, fenilbutazona26, clopidogrel27, entre outros.

Não existem alterações laboratoriais características da doença4. O hemograma é frequentemente normal, ou, por vezes, revela leucocitose ou leucopenia transitórias.

A velocidade de sedimentação pode estar normal, elevada ou diminuída. Dado que não ocorre formação de IC, estes não são detectados e o doseamento das fracções do complemento é, habitualmente, normal. O exame sumário de urina não revela albuminúria, hematúria ou outras alterações. As enzimas de citólise hepática (aspartato aminotransferase ' AST ' e alanina aminotransferase ' ALT) estão, habitualmente, dentro dos valores de referência, assim como os índices de função renal. O diagnóstico é essencialmente clínico, sendo determinado pela relação temporal entre a ingestão do fármaco e o aparecimento da sintomatologia (1 -3 semanas)5. O diagnóstico diferencial em crianças faz -se com patologias que cursem com febre, lesões cutâneas e atingimento articular: infecções víricas (tais como, por parvovírus B19, rubéola ou mononucleose infecciosa) e bacterianas (por exemplo, doença de Lyme ou endocardite bacteriana), doença de Kawasaky, púrpura de Henoch-Schönlein, artrite idiopática juvenil, vasculite urticariforme, lúpus eritematoso sistémico e, embora mais rara, doença neoplásica28.

O tratamento consiste na suspensão do fármaco suspeito e, se necessário, corticoterapia, anti-inflamatórios não esteróides, anti -histamínicos ou gamaglobulina endovenosa.

A necessidade de hospitalização está, frequentemente associada a sintomatologia incapacitante, nomeadamente, pelo atingimento articular, com consequente dificuldade da marcha. Apesar disso, o prognóstico é habitualmente favorável, tratando-se de uma patologia auto-limitada, com resolução completa em 7 a 21 dias20.

A DSL é uma patologia rara e pouco estudada. Este trabalho pretendeu descrever uma série de casos de DSL em crianças observadas na consulta específica de Alergia a Fármacos do Serviço de Imunoalergologia dum Hospital Pediátrico, nomeadamente, os seus aspectos clínicos e resultados do estudo efectuado.

MATERIAL E MÉTODOS Estudo retrospectivo dos processos clínicos dos casos pediátricos de DSL avaliados numa consulta especializada de Alergia a Fármacos no Serviço de Imunoalergologia do Hospital Maria Pia entre 2006 e 2012.

Os parâmetros avaliados foram os seguintes: género, idade do doente à data da reacção, antecedentes pessoais e familiares de atopia, motivo de referenciação, fármaco(s) suspeito(s) e motivo da sua prescrição, manifestações clínicas, timingda reacção, meios complementares de diagnóstico realizados durante e/ou após a reacção, tempo para resolução total do quadro clínico, necessidade de recorrer ao serviço de urgência (SU) ou equivalente, tratamento da reacção (suspensão do fármaco suspeito e/ou outras terapêuticas), resultado do estudo na consulta de Alergia a Fármacos e orientação do doente.

Não havendo na literatura consenso sobre a orientação a dar a doentes com suspeita de DSL associada à administração de fármacos, optou'se por fazer um estudo  com base nos meios auxiliares de diagnóstico disponíveis para a suspeita de hipersensibilidade a beta-lactâmicos. O doseamento de imunoglobulinas (Ig) E específicas para beta -lactâmicos foi proposto e aceite por todos os doentes. Uma vez que todas as reacções foram tardias, não seria de esperar encontrar valores de IgE específicas positivas e, assim, nos doentes em que tal aconteceu, foram propostos testes cutâneos (TC). Aos restantes doentes foi proposta prova de provocação oral (PPO) com o fármaco suspeito ou com alternativo dentro do grupo dos beta -lactâmicos. As PPO realizadas foram abertas, não controladas por placebo, e contemplaram um dia de administração em regime de Hospital de Dia (doses crescentes do fármaco até atingir dose cumulativa indicada para a idade e peso do doente). Dado que todas as reacções foram não imediatas e surgiram, em média, ao 8.º dia de tratamento, os doentes fizeram ainda administração continuada no domicílio, até perfazer ciclo de 8 dias nas doses e frequência habitual para cada fármaco testado.

O doseamento de IgE específicas para beta'lactâmicos (penicilina G, penicilina V, amoxicilina, ampicilina e cefaclor) foi realizado através do sistema ImmunoCAP®, Phadia ' Thermo Fisher Scientific, Uppsala, Suécia, sendo o resultado apresentado em kU/L. O valor de cut-offconsiderado como resultado positivo foi de 0,35 kU/L. Os TC (por picada e intradémicos) foram efectuados respeitando os períodos de evicção estipulados para os medicamentos relevantes e utilizando a metodologia recomendada pelo grupo de interesse de Alergia a Fármacos da Academia Europeia de Alergologia e Imunologia Clínica (European Network for Drug Allergy'ENDA) para o diagnóstico das reacções não imediatas a beta- actâmicos29,30. As PPO foram realizadas seguindo as recomendações do mesmo grupo31.

RESULTADOS Foram incluídos 23 doentes, 13 do sexo feminino. A maioria não apresentava antecedentes de atopia (87,5%) e nenhum tinha história pessoal ou familiar de alergia medicamentosa prévia.

A idade na altura da reacção variou entre 1 e 7 anos (mediana de 3 anos).

O motivo de referenciação à consulta de Imunoalergologia foi, para todos os doentes, suspeita de HS a fármacos. Os antibióticos beta -lactâmicos foram os fármacos suspeitos em todos os casos: a amoxicilina/ácido clavulânico em 55%, a amoxicilina em 32% e as cefalosporinas em 3 doentes (de 1.ª, 2.ª e 3.ª gerações: cefatrizina, cefaclor, cefixima, respectivamente). Um doente apresentava, após rever a história medicamentosa completa do episódio, mais do que um fármaco suspeito: amoxicilina/ácido clavulânico, paracetamol e ibuprofeno.

Os principais motivos de prescrição do antibiótico foram a amigdalite (41%) e a otite média aguda (32%).

Todas as reacções foram não imediatas e surgiram, em média, ao 8.º dia de tratamento (± 3 dias).

As lesões cutâneas e o atingimento articular (artralgias/artrite) verificaram - se em todos os doentes, estando a febre presente em dois deles. De referir que a febre foi considerada como manifestação da DSL nos casos em que os doentes estariam apiréticos e reiniciaram hipertermia.

Nos restantes casos, a febre foi integrada no contexto do quadro infeccioso subjacente. Em nenhum dos casos havia referência a linfadenopatia ou hepatoesplenomegalia na altura da reacção. As manifestações cutâneas mais frequentemente descritas foram a urticária (55%) e o exantema maculopapular (35%). Apenas um doente apresentou angioedema (labial e periorbitário).

A maioria dos doentes (n=21) realizou estudo analítico durante a fase aguda, que incluía hemograma, velocidade de sedimentação, doseamento de fracções do complemento e serologias víricas e para bactérias atípicas.

As principais alterações encontradas no hemograma foram a leucocitose com neutrofilia, não se tendo verificado alterações no estudo do complemento.

Apenas um doente efectuou doseamento de IC circulantes, que foi negativo. O exame sumário de urina foi pedido a 8 doentes, sendo normal em todos (nomeadamente, sem hematúria ou albuminúria). A biópsia cutânea foi realizada a um doente, tendo revelado alterações inflamatórias inespecíficas, enquadradas no contexto de toxicodermia.

Um doente mostrou evidência de infecção activa por parvovírus B19 (IgM+/IgG -).

A maioria das reacções foi tratada no serviço de urgência com anti - histamínicos, corticosteróides ou anti-inflamatórios não esteróides. Houve necessidade de internamento em 11 doentes (48%): em 4 deles para vigilância clínica, com alta ao fim de 24 horas. Nos restantes, o internamento deveu-se a quadros mais exuberantes, com atingimento articular a condicionar incapacidade para a marcha.

Apesar disso, todos os doentes apresentaram evolução favorável, com uma mediana de 8 dias para a resolução completa (1 -45 dias). O doente que apresentou quadro clínico mais longo teve uma evolução da doença caracterizada por surtos e remissões, durante 45 dias até à cura completa.

No que diz respeito ao estudo efectuado na consulta específica de Alergia a Fármacos, o doseamento de IgE específicas para beta-lactâmicos foi pedido em todos os doentes, sendo positivo em dois casos: num dos doentes [doente 4] (cujo fármaco suspeito era a cefatrizina) verificou-se positividade para penicilina V (2,5 kU/L); no outro doente [doente 15], encontrou-se positividade para todos os alergénios testados, à excepção do cefaclor (penicilina V [1,63 kU/L], penicilina G [2,46 kU/L], ampicilina [1,09 kU/L] e amoxicilina [2,87 kU/ L]).

Os TC por picada (TCP) e intradérmicos (ID) foram realizados apenas num doente [doente 4] com positividade na leitura tardia dos ID para penicilina G. Este doente foi aconselhado a manter evicção de beta-lactâmicos. No doente 15 o fármaco envolvido na reacção era a amoxicilina.

O doente efectuou ciclo posterior de antibioterapia com amoxicilina/ácido clavulânico sem intercorrências, não se tendo confirmado a suspeita de HS a beta -lactâmicos, pelo que não foi aconselhada a sua evicção.

A PPO foi efectuada em quatro doentes, tendo sido negativa em todos eles. Nos doentes 2 e 6, os fármacos testados foram os suspeitos (paracetamol e amoxicilina, respectivamente), não se tendo confirmado a suspeita de HS, pelo que não foi aconselhada a sua evicção. Os doentes 7 e 22 realizaram PPO com um fármaco alternativo (cefixima, em doentes cujo fármaco suspeito era a amoxicilina/ácido clavulânico), pelo que tiveram alta com cefixima como antibiótico alternativo.

Em 4 doentes ocorreu contacto posterior com antibióticos beta -lactâmicos, sem qualquer intercorrência.

Os doentes 5 e 23 contactaram posteriormente os fármacos envolvidos ' cefixima e amoxicilina, respectivamente ' pelo que se excluiu a suspeita de HS a estes fármacos. Nos outros dois casos, o contacto posterior foi com o cefaclor (em doentes cujos fármacos suspeitos eram, respectivamente, a amoxicilina [doente 10] e a amoxicilina/ácido clavulânico [doente 21]). Nestes doentes não foi possível excluir HS aos fármacos implicados, mas tiveram alta com antibiótico alternativo.

Verificou-se que 13 doentes recusaram prosseguir o estudo, pelo que tiveram alta da consulta, com indicação para manter evicção de beta-lactâmicos, dado não ter sido possível confirmar ou excluir a suspeita de HS a estes fármacos.

No doente 16, cujo fármaco suspeito era a amoxicilina, foi proposta PPO com cefalosporina, aceite mas ainda não realizada.

De seguida, apresenta-se um quadro-resumo com as características e o resultado do estudo efectuado na consulta específica de Alergia a Fármacos nos doentes pediátricos com DSL, observados no Serviço de Imunoalergologia do Hospital Maria Pia.

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DISCUSSÃO No presente estudo, verificou -se que, tal como descrito na literatura, as manifestações clínicas mais frequentes da DSL são febre, artralgias e lesões cutâneas, nomeadamente, urticária6. A ausência de alterações laboratoriais específicas da doença descrita noutros estudos4 foi também constatada neste trabalho. Assim, nenhum dos doentes apresentava hipocomplementemia, vasculite ou nefrite5. À semelhança do habitualmente documentado, o prognóstico da doença é favorável, com resolução do quadro em 7-21 dias, sem sequelas3,20. No entanto, salienta -se a presença de atingimento articular, frequentemente incapacitante, que pode levar ao internamento destas crianças, o que aconteceu em 48% dos casos estudados. Esta percentagem elevada foi também referida por outros autores32.

A mediana de idades das crianças avaliadas foi de 3 anos, o que está de acordo com outros trabalhos, que apontam para maior prevalência abaixo dos 5 anos32.

O cefaclor, fármaco mais frequentemente implicado na DSL7, surge, no presente estudo, como fármaco suspeito em apenas um doente. Os autores consideram que esta diferença nos fármacos mais frequentemente envolvidos poderá ser justificada pelas alterações no padrão de prescrição, dado que o desenvolvimento de resistências tem tornado o cefaclor num antibiótico cada fez menos utilizado nas infecções em idade pediátrica33.

A DSL é uma patologia rara e pouco estudada, desconhecendo -se a sua incidência, prevalência, mecanismos patofisiológicos e abordagem diagnóstica adequada. Na literatura, verifica-se inexistência de directrizes acerca do estudo mais adequado deste tipo de reacção (sobretudo numa fase posterior à resolução). Assim, a DSL não consta nas indicações para proceder a TC (seja por picada, intradérmicos ou epicutâneos) ou provas de provocação, mas também não é apontada como contra -indicação29 -31. As opções sobre os procedimentos diagnósticos são limitadas, pelo que restam ao clínico poucas alternativas na abordagem e orientação destes doentes. Por um lado, poderão aconselhar a evicção dos fármacos suspeitos, propondo alternativos.

Outra abordagem possível será utilizar os meios diagnósticos disponíveis, tal como foi feito neste trabalho, em que os autores fizeram pedido de IgE específicas para beta-lactâmicos a todos os doentes, visto este ser um estudo facilmente acessível e não acarretar riscos para o doente.

No entanto, dado esta não ser, reconhecidamente, uma reacção mediada pela IgE, a relevância dos resultados obtidos é muito discutível. Assim, a única forma de confirmar//excluir o diagnóstico de DSL é através de uma prova de provocação com o fármaco suspeito. Foi o que fizeram os autores de um estudo espanhol de 200934, que analisaram 39 crianças com reacções não imediatas às aminopenicilinas, 14 delas com DSL. Do estudo efectuado nos doentes com DSL, verificou -se que todos apresentavam IgE específicas e TC para beta -lactâmicos (por picada, intradérmicos e epicutâneos) negativos. Todos os doentes realizaram PPO com o fármaco suspeito, tendo sido positiva em 7 (50%), nos quais foi possível confirmar a presença de HS a beta-lactâmicos. Os autores concluem que a PPO parece ser um procedimento seguro e adequado para o diagnóstico das reacções não imediatas às aminopenicilinas, sendo o valor dos TC limitado nestas formas de apresentação.

O facto de não existirem alternativas para estudar estes doentes, para além da PPO, a idade precoce dos doentes e a existência de sintomas incapacitantes que, muitas vezes, justificam o internamento, poderá, no entender dos autores, explicar a elevada percentagem de doentes (57%) que recusou prosseguir investigação na consulta especializada de Alergia a Fármacos.

CONCLUSÕES Uma vez que as manifestações clínicas podem simular outra patologia, nomeadamente infecciosa, e surgir após o fim do tratamento com o fármaco, os autores pretendem chamar a atenção para o elevado índice de suspeição necessário para fazer o diagnóstico de DSL, determinado pela relação temporal entre a ingestão do fármaco e o aparecimento do quadro clínico.

Não existem estudos sobre a prevalência de DSL associada à ingestão da maioria dos fármacos. Para o cefaclor, os resultados têm sido divergentes de acordo com os estudos: a incidência varia entre 0,024% (2 casos em 8346) e 0,5% (1 caso em 200), com uma incidência global de 0,055%35.

Uma vez que não se conhece o mecanismo patofisiológico subjacente a este tipo de reacção, algumas questões permanecem em aberto, nomeadamente como deverá ser feita a investigação e qual a orientação que deverá ser dada aos doentes.

Mais estudos são necessários para responder a estas e outras interrogações e avançar um pouco mais no conhecimento sobre esta entidade que, sendo rara, causa importante desconforto nas crianças e significativa ansiedade familiar.


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