Registo anual de anafilaxia em idade pediátrica num centro de Imunoalergologia
INTRODUÇÃO
A anafilaxia é definida, segundo a nomenclatura da World Allergy Organisation
(WAO)1, como uma reacção de hipersensibilidade sistémica grave e potencialmente
fatal que pode ser desencadeada por mecanismos imunológicos (anafilaxia
alérgica), mediados por imunoglobulina E (IgE) (anafilaxia alérgica
IgE‑mediada) ou por outros mecanismos imunológicos (anafilaxia alérgica não
IgE‑mediada), ou por mecanismos não imunológicos (anafilaxia não alérgica).
A procura de uma definição prática e baseada apenas em critérios clínicos,
independentemente dos mecanismos subjacentes, permitindo facilitar o
reconhecimento quer a nível de medicina hospitalar, quer a nível de
ambulatório, foi um dos principais objectivos de um simpósio multidisciplinar
que pretendeu uniformizar a abordagem diagnóstica e terapêutica desta
entidade2,3. Em 2006, foram revistos e publicados os critérios para o
diagnóstico de anafilaxia, por Sampson et al.4 que incluíram, para além de
sintomas mucocutâneos, respiratórios e cardiovasculares, a ocorrência de
sintomas gastrintestinais aquando da exposição ao agente causal, permitindo a
uniformização da definição de anafilaxia. Estes critérios inicialmente
propostos pela American Academy of Allergy, Asthma & Immunology(AAAAI),
foram posteriormente aceites pela European Academy of Allergy and Clinical
Immunology(EAACI)5 e pela WAO6.
A prevalência de anafilaxia durante a vida é de 0,05% a 2%7, apontando uma
revisão recente de estudos europeus para uma prevalência estimada de 0,3%, ou
seja 1 em cada 300 indivíduos sofre um episódio de anafilaxia durante a sua
vida8.
A incidência de anafilaxia foi estimada em estudos populacionais entre 8,4 por
100 000 indivíduos/ano no Reino Unido9 a 50 por 100 000 indivíduos/ano nos
Estados Unidos da América10, com uma mortalidade de 1 a 3 casos por cada milhão
por ano11.
Tem‑se verificado um aumento da prevalência de anafilaxia ao longo do tempo,
sobretudo em idade pediátrica8,11,12e um aumento do número de internamentos por
anafilaxia em crianças em idade pré‑escolar8,12‑15, sendo os alimentos a causa
de anafilaxia mais frequentemente implicada nesta faixa etária8,11,15,16.
Em Portugal não são conhecidas até à data taxas de prevalência ou incidência de
anafilaxia na população em geral. Num estudo realizado em 2006, Morais‑Almeida
et al.reportaram uma prevalência de anafilaxia de 1,34% em doentes que
recorreram durante um ano ao ambulatório de um serviço de Imunoalergologia,
sendo metade dos doentes em idade pediátrica17.
OBJECTIVO
Com este trabalho prospectivo de investigação casuística pretendeu‑se
contribuir para o melhor conhecimento epidemiológico da anafilaxia no nosso
país, focalizado na notificação voluntária por clínicos com diferenciação em
patologia imunoalérgica de quadros de anafilaxia observados no período de um
ano, baseado na aplicação de um questionário, com critérios de diagnóstico
normalizados, permitindo adicionalmente estimar a prevalência destes quadros em
idade pediátrica numa consulta especializada de Imunoalergologia e identificar
as principais manifestações clínicas e agentes causais associados.
MÉTODOS
População
Foi implementado um sistema de notificação sistemática de anafilaxia no Centro
de Imunoalergologia do Hospital CUF Descobertas de Janeiro a Dezembro de 2011.
Para o efeito todos os médicos do centro foram convidados a participar no
estudo, tendo sido promovida uma reunião para dinamização e promoção da
notificação voluntária de todos os casos observados. Foram reportados os
episódios de anafilaxia ocorridos em crianças e adolescentes com menos de 18
anos observados no centro ou descritos pelo doente ou prestadores de cuidados
no âmbito da consulta externa.
Durante o período de um ano foram observados 3646 doentes com menos de 18 anos,
tendo sido incluídas todas as crianças com episódios cumprindo critérios de
anafilaxia. O diagnóstico de anafilaxia foi efectuado quando ocorre pelo menos
um episódio de reacção sistémicagrave, conforme definido pelos consensos,
quando na presença de pelo menos 1 dos 3 critérios clínicos descritos no Anexo
14. Foi preenchido um questionário com dados demográficos e clínicos. A
investigação etiológica foi realizada pelo imunoalergologista assistente, com
recurso a testes diagnósticos apropriados caso a caso, desde a realização de
testes cutâneos com o agente etiológico suspeito e/ou doseamento sérico de IgE
específica, ou outros métodos, como o teste do cubo de gelo, quando apropriado.
Questionário
A todos os doentes foi efectuado, pelo imunoalergologista assistente um
questionário para caracterização clínica da situação, avaliando os seguintes
parâmetros:
' dados demográficos, incluindo idade, género e concelho de residência;
' antecedentes familiares de patologia alérgica;
' antecedentes pessoais de asma ou outra patologia alérgica;
' data da primeira reacção anafiláctica e descrição pormenorizada das
manifestações clínicas, mucocutâneas, respiratórias, gastrintestinais e
cardiovasculares; tempo decorrido entre o factor causal e o aparecimento dos
sintomas; local onde ocorreu a reacção anafiláctica; descrição da terapêutica
efectuada, incluindo informação sobre o uso de adrenalina, necessidade de
recurso a urgência hospitalar ou internamento hospitalar;
' prescrição e utilização de dispositivo auto‑injector de adrenalina;
' número de episódios de anafilaxia, reprodutibilidade e razões para a
recorrência;
' caracterização do factor causal implicado e data do diagnóstico da referida
patologia associada; se diagnóstico prévio, avaliação de contacto acidental ou
em contexto de prova de provocação.
Investigação etiológica
Os testes cutâneos por picada com o alergénio suspeito (alergénios alimentares,
látex, antibióticos beta‑lactamicos ou veneno de himenópteros) foram realizados
na face anterior do antebraço, respeitando uma distância mínima de 2 cm entre
cada extracto alergénico e utilizando lancetas metálicas de aplicação
perpendicular na pele com 1mm de penetração (Prick Lancet®, Stallergènes,
Antony, França), considerando os períodos de evicção recomendados para os
medicamentos relevantes e utilizando metodologia normalizada18,19. Como
referência positiva foi utilizado o cloridrato de histamina a 10 mg/mL e como
referência negativa uma solução de fenol a 0,5%.
A leitura foi realizada aos 15 minutos, sendo considerados positivos os testes
com diâmetro médio da pápula ≥ 3 mm.
Em doentes com suspeita de alergia alimentar foram realizados testes cutâneos
por picada com o alimento em natureza sempre que o teste com o extracto
alergénico fosse negativo ou estivesse indisponível. Para as suspeitas de
alergia a antibióticos e a veneno de himenópteros foram realizados testes
intradérmicos segundo os consensos internacionais20,21.
Quando apropriado, realizou‑se o doseamento de IgE específica (sIgE) para o
agente etiológico suspeito. As sIgE foram determinadas pelo método UniCAP®
(Thermo Fisher Scientific, Uppsala, Suécia). Foram considerados positivos
resultados com sIgE ≥ 0,35 kU/L.
O teste do cubo de gelo foi realizado através da aplicação de um estímulo frio
(0 a 4ºC) na face anterior do antebraço por um tempo sequencial de 3, 5, 10 e
20 minutos até obtenção de resposta positiva (pápula). Foi considerado negativo
um teste sem aparecimento de pápula após os 20 minutos de exposição22.
Atopia
A atopia foi definida pela presença de positividade a pelo menos um alergénio
de entre um painel de aeroalergénios (extractos Bial‑Aristegui®, Bilbau,
Espanha) adaptado segundo a idade: ácaros (Dermatophagoides pteronyssinus,
Dermatophagoides farinae, Blomia tropicalise Lepidoglyphus destructor), pólenes
(mistura de gramíneas, Parietaria judaica, Artemisia vulgaris, Plantago
lanceolata, Olea europaea, Cupressus spp, Platanus spp), fungos (Alternaria
alternata), cão e gato.
Análise estatística
Os resultados são apresentados na forma de frequências e percentagens.
Variáveis quantitativas de distribuição normal são expressas em média ±
desvio‑padrão.
Variáveis não normalmente distribuídas são expressas como mediana (limite
mínimo e máximo). Foi utilizado o teste de qui‑quadrado e o cálculo do odds
ratiocom intervalo de confiança a 95% para testar associação entre variáveis
qualitativas e considerado significativo um p<0,05.
RESULTADOS
Durante o ano de 2011 foram reportados 64 doentes com história de anafilaxia
(prevalência de 1,8%), com idade média de 8,1 ± 5,5 anos e mediana de 7 anos (5
meses a 17 anos) à data da observação, entre os quais 45 crianças e 19
adolescentes (idade igual ou superior a 12 anos), 39 (61%) do género masculino.
A atopia e os antecedentes pessoais e familiares de doença alérgica são
caracterizados no Quadro_1. Apenas duas crianças não tinham história pessoal
nem familiar de doença alérgica.
A idade mediana do primeiro episódio de anafilaxia foi aos 3 anos (1 mês a 17
anos). Em 14 (22%) das crianças o primeiro episódio ocorreu no primeiro ano de
vida e em 50 (78%) até aos 5 anos. Apenas 6 (9%) tiveram o primeiro episódio na
adolescência.
Manifestações clínicas
Os sintomas reportados são apresentados na Figura_1. Em 51 (80%) ocorreram
concomitantemente sintomas cutâneos e respiratórios. Em 4 crianças de 1 a 2
anos não existiram manifestações mucocutâneas. O número de sintomas
respiratórios foi semelhante em doentes com e sem asma (84% vs.83%, p=1,000).
Em todas as crianças com queixas gastrintestinais, o agente etiológico suspeito
foi um alimento, sendo que em 25 casos (89%) ocorreram em crianças com idade
igual ou inferior a 3 anos.
Vinte e cinco doentes (39%) tiveram manifestações cardiovasculares, edema da
glote ou perda de consciência, sendo que o diagnóstico de asma não foi um
factor de risco para a ocorrência destes sintomas (p=0,114).
A maioria (86%) das reacções teve início nos primeiros 30 minutos após
exposição ao agente causal. As 5 reacções tardias tiveram início após 2 a 3
horas e incluíram 4 crianças com idade igual ou inferior a 2 anos e anafilaxia
induzida por alimentos, e um rapaz de 3 anos com anafilaxia após picada de
insecto.
Recurso a urgência e tratamento realizado
Trinta e seis (57%) dos episódios inaugurais de anafilaxia ocorreram no
domicílio, 11 (17%) em restaurantes, 11 (17%) em férias ou locais de lazer, 4
(6%) no hospital e 2 (3%) na escola.
Cinquenta e um doentes (80%) recorreram ao serviço de urgência; no entanto,
apenas 21 (33%) foram tratados com adrenalina, sendo que 13 (62% destes)
tiveram manifestações cardiovasculares, edema da glote ou perda de consciência.
Três doentes (5%) foram internados. Não foi reportada nenhuma reacção fatal.
Não houve diferenças no recurso ao serviço de urgência e administração de
adrenalina nos doentes com e sem asma (p=0,872 e p=0,331, respectivamente).
Diagnóstico prévio, recorrência e utilização de adrenalina auto‑injectavel
Dezassete doentes (27%) tinham diagnóstico prévio identificado. Em 15 crianças
a anafilaxia ocorreu após contacto acidental com o agente etiológico e em 2
durante prova de provocação oral com leite de vaca. Em 47 (73%) o diagnóstico
de alergia foi realizado após o episódio de anafilaxia. A adrenalina para auto
‑administração intramuscular foi prescrita a todas as crianças, excepto 6 com
possibilidade de evicção completa (anafilaxia a fármacos) ou por peso <7,5 kg.
Em 26 doentes (41%) houve recorrência da anafilaxia: 12 doentes com 2
episódios, 9 com 3 a 4 episódios e 5 doentes com 5 ou mais episódios. Em 3 foi
utilizado o dispositivo auto‑injector de adrenalina nas reacções subsequentes.
Estudo etiológico
Em 54 doentes (84%) a anafilaxia foi induzida por alimentos. As restantes
causas estão especificadas no Quadro_2. Dois adolescentes apresentaram mais do
que uma causa de anafilaxia, correspondendo a um total de 66 notificações de
causas de anafilaxia: anafilaxia ao camarão e ácido acetilsalicílico (AAS), e
anafilaxia ao leite de vaca com posterior anafilaxia induzida por exercício
dependente de alimentos (AIEDA).
Os alimentos implicados na anafilaxia tendo em conta a idade do primeiro
episódio estão especificados na Figura_2 e o resultado do estudo complementar
no Quadro_3. Três crianças tiveram anafilaxia a dois grupos alimentares
diferentes (peixe, amendoim ou leite associados a anafilaxia a ovo).
O leite foi o alimento mais implicado como causa de anafilaxia, com maior
incidência em crianças com idade inferior a 2 anos. Oito das 10 crianças com
anafilaxia ao leite no primeiro ano de vida não tinham diagnóstico prévio de
alergia ao leite, enquanto 11 das 12 crianças com idade superior a um ano
tinham diagnóstico prévio de alergia às proteínas do leite de vaca (APLV),
ocorrendo a maioria (82%) dos episódios inaugurais de anafilaxia nesta faixa
etária em contexto de ingestão acidental. Uma criança de 5 anos com diagnóstico
de APLV teve anafilaxia após ingestão de leite de cabra no domicílio por
recomendação de médico não imunoalergologista.
À data do estudo as crianças tinham uma idade mediana de 8 anos (5 meses a 17
anos). Treze das 22 crianças com APLV (59%) iniciaram protocolo de indução de
tolerância oral, eficaz em todos os casos, com tolerância actual de 200 mL por
dia e possibilidade de dieta livre.
Das crianças com anafilaxia ao ovo, apenas uma tinha diagnóstico prévio de
alergia. Das 7 crianças, 3 (43%) adquiriram tolerância natural para o ovo
inteiro, 2 crianças de 4 e 6 anos estão em evicção absoluta de ovo e 2 de 2 e 6
anos fazem evicção de clara de ovo, com tolerância para a gema.
Do total de doentes investigados, em 53 (83%) concluiu‑se tratar‑se de reacção
IgE mediada, correspondendo a 51 (94%) dos doentes com anafilaxia de causa
alimentar.
DISCUSSÃO
Este estudo, realizado numa consulta especializada de Imunoalergologia,
confirma a alergia alimentar IgE mediada como a principal causa de anafilaxia
em idade pediátrica em mais de três quartos dos casos. Outras causas
identificadas foram os fármacos, anti‑inflamatorios não esteróides e
antibióticos beta‑lactâmicos, o frio, o exercício, o látex e a picada de
insecto.
Comparativamente ao estudo de Morais‑Almeida et al.17, realizado com
metodologia semelhante, verifica‑se um aumento na prevalência de anafilaxia de
1,3% para 1,8%, durante um intervalo de 5 anos.
Relativamente às causas de anafilaxia, os resultados são coincidentes com
estudos anteriores realizados quer em Portugal, no âmbito da consulta de
Imunoalergologia17,23, quer numa urgência pediátrica na Austrália16.
Nestes estudos, as principais causas de anafilaxia foram os alimentos em 71 a
85%, fármacos em 6 a 11%, e insectos em 3 a 6%. Em crianças internadas por
anafilaxia em Israel24 os alimentos foram também a causa mais frequente (43%),
embora com maior frequência de alergia a fármacos (22%) e a veneno de
himenópteros (14%). No levantamento dos casos de anafilaxia efectuado pela
Sociedade Latino‑Americana de Asma, Alergia e Imunologia (SLAAI), pela
aplicação do inquérito OLASA (Online Latin American Survey of Anaphylaxis), em
idade pediátrica, os alimentos foram igualmente a causa mais frequente, com
incremento da alergia a fármacos (28%) e a picada de insectos (26%)25.
De entre os alimentos, o leite é o mais frequentemente implicado como causa de
anafilaxia, tal como reportado em estudos anteriores (43 a 53%)16,17,23, sendo
mais frequente nos primeiros anos de vida24. Segundo Silva et al.23, o leite
foi o alimento causal em 47% das crianças com anafilaxia alimentar, seguido do
peixe, crustáceos e moluscos (23%), dos frutos secos (14%) e do ovo (9%).
Segundo Morais‑Almeida et al.17, os alimentos implicados foram o leite em 53%
das crianças com idade inferior a 15 anos, peixe em 19%, ovo em 14%, crustáceos
em 14%, amendoim em 6%, frutos frescos em 6% e frutos secos em 3%. Observa‑se
no presente estudo um aumento da frequência de anafilaxia a amendoim e a frutos
secos para 11%, em ambos os casos, com aproximação aos valores observados por
de Silva et al.(18% para o amendoim e 17% para os frutos secos)16.
Salienta‑se o facto de, no presente estudo, ter sido possível concluir da causa
da anafilaxia em todos os doentes, contrariamente a estudos anteriores, onde
foi reportada uma frequência de anafilaxia idiopática em 5 a 7% das
crianças16,24. Tal facto dever‑se ‑a provavelmente à avaliação dos doentes numa
consulta de especialidade de Imunoalergologia e à melhor abordagem e maior
disponibilidade de meios de diagnóstico diferenciados.
Reporta‑se ainda a ausência de anafilaxia por imunoterapia específica,
confirmando a boa segurança actual deste tratamento26.
Vários estudos sugerem que o diagnóstico de asma é um factor de risco para a
ocorrência de reacções anafilácticas mais graves, potencialmente fatais, a
alimentos5.
Uma das limitações deste estudo foi o facto de não seterem categorizado as
reacções segundo o grau de gravidade.
No entanto, observámos que os doentes com asma não tiveram maior frequência de
sintomas respiratórios nem de sintomas considerados mais graves, como edema da
glote, sintomas cardiovasculares ou perda de consciência, como não houve
diferenças no recurso a serviço de urgência ou a administração de adrenalina.
Em relação aos sintomas gastrintestinais, Rudders et al.27 descrevem que,
apesar de presentes de forma uniforme em todos os grupos etários, as náuseas e
os vómitos são mais frequentes em crianças, ocorrendo em 53% das crianças até
aos 2 anos, 34% em idade pre‑escolar, 29% das crianças em idade escolar e em
apenas 17% dos adolescentes. No presente estudo, 89% das manifestações
gastrintestinais ocorreram em crianças com idade igual ou inferior a 3 anos,
pelo que se reforça a importância da inclusão destes sintomas nos critérios de
diagnóstico de Sampson, sobretudo em idades mais jovens. Por outro lado, a
inexistência de sintomas cutâneos, como aconteceu em 4 doentes, não exclui o
diagnóstico de anafilaxia.
A elevada frequência de anafilaxia por contacto acidental em restaurantes, em
actividades de lazer e na escola, com início nos primeiros 30 minutos após o
contacto, bem como o elevado número de recorrências, enfatiza a importância da
educação de professores, profissionais de restauração e público em geral para a
identificação e rápida actuação nesta situação.
Por outro lado, é crucial a formação dos doentes e prestadores de cuidados para
a correcta valorização dos ingredientes descritos nos rótulos, sobretudo em
situações de alergia alimentar com potencial de reacções graves, mesmo quando
em quantidades vestigiais, como o leite, o amendoim e os frutos secos. A todos
os doentes / / prestadores de cuidados deve ser entregue um documento contendo
os agentes a evitar e eventuais alternativas, bem como o tratamento a realizar
em caso de contacto acidental. O reconhecimento dos sinais de anafilaxia e a
precoce e correcta utilização da adrenalina auto‑injectavel devem também ser
reforçados em cada consulta.
A adrenalina, apesar de recomendada como tratamento de primeira linha nos
consensos de anafilaxia5,6,28, e de o atraso na sua administração ou a sua não
utilização serem factor de risco para anafilaxia bifásica e para maior
gravidade da reacção e morte5,6,29, continua a ser subutilizada no serviço de
urgência. Em estudos nacionais prévios é reportada uma utilização de adrenalina
em 26% dos doentes, observando‑se um aumento na administração de adrenalina no
presente estudo (33%) semelhante ao reportado (34,6%) por Solé et al.no
levantamento da SLAAI25, mas ficando aquém de dados apresentados em outros
países (72 a 76%)16,24, pelo que se enfatiza a importância de continuar o
trabalho iniciado na formação médica pré e pos‑graduada e a incorporação de
protocolos de actuação nos serviços de urgência. Também o registo informático
de alergia, disponível de forma inter‑hospitalar, será importante para melhorar
o reconhecimento e tratamento da anafilaxia em Portugal.
Nas crianças, não existe contraindicação absoluta para a administração de
adrenalina, devendo ser pesado o risco‑beneficio em situação de patologia
cardíaca5. A adrenalina auto‑injectavel para o domicílio, actualmente
disponível nas doses de 0,15 mg e 0,30 mg, poderá ser prescrita em crianças a
partir de 7,5Kg, já que aparentemente não existe risco de administração de uma
dose superior ao recomendado numa criança saudável, e a disponibilidade de um
dispositivo auto-injector de adrenalina pode permitir salvar vidas5.
Por fim, reforca‑se a importância de uma adequada e agilizada rede de
referenciação em Imunoalergologia, de forma a melhorar o diagnóstico correcto,
adoptar medidas efectivas de prevenção como a evicção alergénica, estruturar a
actuação em caso de emergência, oferecer alternativas (alimentares,
medicamentosas) e implementar o tratamento, com imunoterapia específica (látex,
himenópteros) ou indução de tolerância (alimentos, medicamentos).
As novas redes de bases de dados promovidas por sociedades científicas, como a
Sociedade Portuguesa de Alergologia e Imunologia Clínica (SPAIC), e o
recentemente implementado Catálogo de Alergias e outras Reacções Adversas
(CPARA)30, irão permitir melhorar o conhecimento desta doença e delinear melhor
estratégias de prevenção e tratamento com âmbito nacional.