Sibilância em crianças de idade pré-escolar em Portugal: Prevalência,
caracterização e associação com rinite
INTRODUÇÃO
A sibilância é um sintoma respiratório comum em crianças, com uma prevalência
cumulativa de quase 50% aos seis anos de idade1. Pode ter vários mecanismos
subjacentes1,2e a relação entre sibilância e asma não está completamente
esclarecida1. No entanto, independentemente da causa, a sibilância representa
uma das principais causas de morbilidade e de consumo de cuidados de saúde no
grupo etário pre‑escolar3.
A sibilância na infância tem sido associada a vários factores pessoais e
ambientais, como história familiar de doença alérgica, sexo masculino,
exposição ao fumo do tabaco e peso ao nascer4‑7.
A presença concomitante de doenças alérgicas, como a rinite alérgica, o eczema
atópico ou a alergia alimentar, também foi associado com a ocorrência de
sibilância e com a persistência dos sintomas na idade escolar1,8; a rinite,
especialmente, tem uma importante associação com a sibilância, embora, tanto
quanto é do nosso conhecimento, nesta faixa etária não existam estudos que
avaliem a relação entre o tipo e a gravidade da rinite e a sibilância. Além
disso, a maioria dos estudos não são de base populacional e frequentemente
apenas relatam dados de crianças com alto risco para asma.
Os objectivos deste estudo foram: i) estimar a prevalência de sibilância actual
(SA) em crianças pre‑escolares de idades compreendidas entre os 3 e os 5 anos;
ii) descrever as características sociodemográficas e pessoais associados à
sibilância nesta faixa etária; e iii) estudar a associação entre SA e rinite,
considerando o seu tipo e gravidade de acordo com as recomendações da
iniciativa ARIA ' Allergic rhinitis and its impact on asthma9.
MATERIAL E MÉTODOS
Este estudo foi realizado de acordo com os princípios da Declaração de
Helsínquia. O consentimento informado verbal foi obtido a partir dos
prestadores de cuidados das crianças que participaram no inquérito. Este
procedimento foi aprovado pela comissão de ética de uma unidade hospitalar
nacional.
Desenho do estudo
Estudo transversal de âmbito nacional, descritivo, tendo como alvo crianças
portuguesas com idades compreendidas entre os 3 e os 5 anos. Um questionário
estruturado foi aplicado aos prestadores de cuidados para recolher dados sobre
a prevalência de sibilância, factores de risco habituais e comorbilidades. Uma
descrição detalhada do desenho do estudo, incluindo da recolha de dados, foi
previamente discutida e publicada10.
Participantes e recolha de dados
Para obter uma amostra representativa da população alvo, foi utilizada uma
estratégia de selecção de multi‑step.
Resumidamente, numa primeira fase, estimou‑se o número de participantes,
crianças de 3 a 5 anos, necessário de cada uma das cinco regiões de Portugal
continental, considerando os dados do Censo Nacional de 200111. Em segundo
lugar, municípios portugueses, dentro de cada região, foram selecionados
aleatoriamente até se atingir o número predeterminado de crianças, sendo que em
cada um dos municípios deveriam ser incluídos 50 a 70 indivíduos. Finalmente,
jardins‑de‑infância e centros paroquiais, dentro dos municípios seleccionados,
foram escolhidos para a recolha de dados, sendo esta escolha baseada na
distribuição das crianças12, no conforto, na privacidade e na baixa
interferência com as actividades habituais dos participantes. Algumas crianças
adicionais, num número inferior a 5% do total da amostra, foram recrutadas nos
municípios seleccionados fora dos locais previamente referidos.
O questionário do estudo foi administrado por meio de entrevistas face a face
aos cuidadores. O trabalho de campo foi realizado entre Fevereiro e Março de
2007, com recurso a entrevistadores experientes e treinados na aplicação
específica deste questionário.
Variáveis e definições
O questionário utilizado10 foi maioritariamente adaptado da versão portuguesa
do questionário usado no InternationalStudy of Asthma and Allergies in Chilhood
(ISAAC) para crianças com 6‑7 anos de idade13.
As definições usadas neste estudo são as apresentadas no Quadro_1. As
definições de sibilância e de rinite actual foram idênticas às utilizadas no
estudo ISAAC13. A rinite actual (RA) foi classificada, de acordo com as
recomendações do ARIA9, em doença intermitente versus persistente e ligeira
versus moderada a grave (Quadro_1).
Tamanho da amostra
O endpointprimário do estudo foi a prevalência da rinite10. Considerando‑se que
a prevalência de sibilância actual está estimada como próxima da de rinite
actual, ou seja, cerca de 20%1, 14, e admitindo que 50% das crianças com
sibilância actual também teriam rinite actual, das quais cerca de 10% teriam
formas mais graves e persistentes, a inclusão de 5000 crianças (calculado com
base nos endpointsda rinite) dá a este estudo um poder superior a 99% para
avaliar a prevalência de sibilância em crianças pré‑escolares nas diferentes
classes ARIA da rinite.
Análise estatística
As variáveis categóricas foram descritas através de frequências absolutas e
proporções, com intervalo de confiança de 95% (IC 95%), e as comparações feitas
com o teste de Qui‑quadrado.
Quando necessário, as variáveis contínuas foram categorizadas para realizar a
análise estatística (por exemplo: peso ao nascer). Um valor de p<0,05 foi
considerado estatisticamente significativo.
Análises de regressão logística univariada e múltipla foram realizadas mas não
serão discutidos neste trabalho. Todas as análises de dados foram realizadas
utilizando o programa SPSS® versão 19.0 para Windows (IBM SPSS, Chicago,
Estados Unidos da América).
RESULTADOS
Participantes
Foram contactados 5500 indivíduos, dos quais 5030 participaram no estudo;
questionários com informação insuficiente na maioria das perguntas (n=12) ou
com dados em falta sobre sibilância actual (n = 15) foram excluídos da
análise (Figura_1).
As características das 5003 crianças incluídas são apresentadas no Quadro_2; a
informação sobre os dados em falta está disponível na Figura_1.
Principais resultados
Sibilância actual ' Prevalência e caracterização geralA prevalência de
sibilância actual (SA) foi de 24,5% [IC 95% (23,3‑25,7)], n=1228 (Quadro_3).
A maioria das crianças com SA (61,4%) tinha entre 1 e 3 episódios de sibilância
no ano anterior; 91 dos prestadores de cuidados das crianças (7,5%) relataram
mais do que 12 episódios de sibilância. Menos de metade dos sibilantes (n=523,
42,6%) recebeu, nos últimos 12 meses, tratamento por causa da sibilância
(Quadro_4). A proporção de crianças que receberam tratamento aumentou com o
número de episódios de sibilância: 29,8% com 1 a 3 episódios de sibilância
recebeu tratamento contra 55,7% daqueles com 4‑12 e 90,1% daqueles com mais de
12 episódios (p <0,001).
Características pessoais e demográficas associadas com sibilância actualA
prevalência da SA foi significativamente maior em crianças com história
familiar de doença alérgica (31,2 vs. 22,6% em crianças sem história familiar
de doença alérgica, p<0,001); as crianças que vivem nas regiões rurais tiveram
uma prevalência de SA significativamente menor (19,1 vs. 26,3% em residentes de
áreas urbanas, p <0,001). Não foram encontradas diferenças estatisticamente
significativas para o sexo, idade, peso ao nascer e exposição ao fumo de tabaco
no domicílio (Quadro_3). Associações semelhantes foram encontradas na análise
multivariada para o risco de sibilância actual (resultados não apresentados).
Diagnóstico médico de asma (DMA) ' prevalência e características pessoais
associadasA prevalência na população de DMA foi de 4,6% [IC 95% (4,0‑5,2)],
sendo superior em crianças com história familiar de doença alérgica (8,4% vs.
3,3% naqueles sem história familiar, p<0,001) e mais elevada nas crianças com
maior número de episódios de sibilância (6,1% em crianças com 1 a 3 episódios
no último ano vs. 24,5% naqueles com 4‑12 e 73% nos casos com mais de 12
episódios, p <0,001, Quadro_3).
Mais de 70% das crianças com DMA fez tratamento para a sibilância no ano
anterior (n=162; Quadro_4).
Relação entre sibilância actual e diagnóstico médico de asma (DMA)
Duzentas e três crianças com SA (16,7%) tinham diagnóstico médico de asma (vs.
0,7% daqueles sem SA, p<0,001). Crianças sibilantes com DMA, quando comparadas
com sibilantes sem DMA, apresentaram mais episódios de sibilância (32,2% dos
sibilantes com DMA vs. 2,4% dos sibilantes sem DMA tinham mais de 12 episódios
de sibilância, p<0,001), apresentaram maior frequência de recurso a tratamento
(79,3% vs. 34,7% receberam tratamento no último ano, respectivamente, p<0,001)
e referiram mais sintomas de rinoconjuntivite (43,4% vs. 26,9%,
respectivamente, p<0,001), maior proporção de alergia alimentar auto‑relatada
(15,4% vs. 7,1%, respectivamente, p < 0,001) e de alergia a medicamentos
auto‑relatada (6,0% vs. 2,1%, respectivamente, p <0,001); a exposição ao fumo
de tabaco em casa foi menos frequente nos sibilantes com DMA do que naqueles
sem DMA (17,4% vs. 33,3%, respectivamente, p<0,001).
Relação entre sibilância actual, rinite e outras doenças alérgicasCrianças com
rinite actual (RA) apresentaram maior prevalência de SA quando comparadas com
crianças sem RA (38,6 vs. 13,7%, respectivamente, p<0,001; Quadro_3). Para além
disso, a prevalência de SA foi maior em crianças com rinite persistente
moderada a grave (64,7%[57,2‑72,2] versus 34,0% [31,6 -36,4] na ligeira
intermitente, 41,7% [33,1‑50,3] na rinite ligeira persistente e 46,2%
[41,0‑51,4] na intermitente moderada a grave (Figura_2)).
Sibilantes com RA, quando comparado com sibilantes sem RA, apresentaram mais
episódios de sibilância (43,9% das sibilantes com RA vs. 26,9% das sibilantes
sem RA teve 4 ou mais episódios de sibilância, p<0,001) e relataram mais
frequentemente o recurso a tratamento para a sibilância (44,8 % vs. 37,9%
receberam tratamento, respectivamente, p = 0,024).
A prevalência da SA foi também maior em crianças com rinoconjuntivite e
naquelas com alergia alimentar auto‑referida (Quadro_3).
DISCUSSÃO
Resultados principais
A prevalência de sibilância actual em idade pré‑escolar foi de 24,5%. Ter
história familiar ou pessoal de doença alérgica associou‑se a uma maior
prevalência de sibilância actual. A sibilância actual foi fortemente associada
à rinite nesta faixa etária, especialmente nos casos com doença persistente
moderada a grave; as crianças com sibilância e rinite actuais apresentaram mais
episódios de sibilância e precisaram de tratamento com mais frequência.
Tanto quanto é do nosso conhecimento, este estudo é o primeiro, neste grupo
etário, a apoiar uma relação entre a sibilância actual e a persistência e
gravidade da rinite.
Apenas 4,6% das crianças portuguesas em idade pré‑escolar relataram ter
diagnóstico médico de asma. Esta prevalência chegou aos 73% em crianças com
mais de 12 episódios de sibilância nos últimos 12 meses.
Pontos fortes e limitações
ste trabalho é um dos poucos estudos mundiais de base populacional realizados
em todo um país15‑17, sendo o primeiro em Portugal, que estimou a prevalência
de SA em crianças de idade pre‑escolar.
Incluiu‑se uma grande amostra representativa de crianças do grupo etário em
estudo, permitindo a caracterização da relação entre sibilância atual e as
classes de rinite, tal como propostas pela iniciativa ARIA.
Este estudo é limitado pelo uso de um desenho em corte transversal, ausência de
confirmação / avaliação médica, ausência de marcadores in vivoe/ou in vitrode
atopia, falta de informação que permita caracterizar os diferentes fenótipos de
sibilância, bem como os seus desencadeantes, e informação limitada sobre a
gravidade da sibilância (incluindo apenas número de episódios no último ano e
as necessidades globais de tratamento). No entanto, a utilização de um
questionário breve e simples facilitou a participação, minimizando a perda de
compliancedurante toda a entrevista.
O desenho do estudo limita a capacidade de estabelecer possíveis relações
causais entre sibilância e os factores que lhe estão associados, para além de
que a pesquisa retrospectiva de dados pode introduzir viés de memória,
impedindo a confirmação adequada dos dados recolhidos.
Como foi referido2,3, a percepção da sibilância varia muito entre os pais, pelo
que as crianças podem ser classificadas como tendo episódios de sibilância
quando a mesma pode não ter ocorrido. Fernandes etal.18 identificaram,
recentemente, que 34% dos pais portugueses não reconhecem o termo sibilância.
Isso destaca a importância da confirmação do diagnóstico por um profissional de
saúde2 e sugere a utilidade de medidas objectivas; no entanto, estas avaliações
não faziam parte do protocolo do estudo, tal como não foram incluídas em
relatórios anteriores15‑17, utilizando metodologias semelhantes.
Interpretação e generalização
A prevalência de SA observada neste estudo (24,5%) está na mesma faixa dos
valores relatados em outros países ou regiões industrializadas, como por
exemplo numa região urbana do Sul do Brasil (21,1%)19 ou no Reino Unido
(26%)20, mas é maior do que os relatados na Malásia (6,2%)5 ou na Tanzânia
(14%)6. Estes resultados apoiam que o nível de industrialização é um factor a
ter em conta quando se avalia e compara a prevalência de sibilância nos
primeiros anos de vida. Como relatado por outros autores2,3, a prevalência de
asma diagnosticada por médico foi muito diferente da prevalência de sibilância
actual, especialmente em crianças com menor número de episódios de sibilância.
No entanto, quase ¾ dos casos com mais de 12 episódios de sibilância no ano
anterior tinham diagnóstico médico de asma.
A relação entre história familiar de doenças alérgicas e o aumento do risco e
da prevalência de sibilância já foi descrita em crianças pre‑escolares4‑6e os
nossos resultados estão de acordo com os desses estudos.
A exposição ao fumo do tabaco é considerada um factor de risco para sibilância
na infância7 e, além disso, tem sido associada ao aumento da gravidade dos
sintomas respiratórios7. Neste estudo, não foi encontrada associação
significativa entre a exposição passiva ao fumo de tabaco no domicílio e a SA;
no entanto, sibilantes com diagnóstico médico de asma relataram uma exposição
significativamente menor em casa. Esta aparente contradição com a literatura
existente pode ser explicada por um fenómeno de causalidade inversa, isto é, as
crianças com asma são protegidos de uma exposição conhecida como sendo
prejudicial; pode também, no entanto, ser admitido um viés de informação.
Neste estudo, em contraste com resultados anteriores, não houve diferença na
prevalência de SA entre os sexos4,21ou classes de peso ao nascer5,19, embora a
valorização de uma possível associação com o peso ao nascer seja limitada pela
falta de ajuste para a idade gestacional.
A relação com o sexo também não foi encontrada noutras publicações5,22. A
avaliação de outros factores associados previamente com sibilância,
nomeadamente exposição a fumo de tabaco durante a gravidez, idade materna, ou
infecções, entre outros, não fazia parte deste estudo.
A rinite é uma doença comum e afecta um número crescente de crianças9. Em
estudos anteriores, a prevalência de rinite em idade pre‑escolar variou entre
5,5% numa coortesueca23 e 26,1% no Manchester Asthma and Allergy Study24. A
rinite apresenta‑se fortemente associada à asma9,25, sendo um poderoso preditor
de asma na idade adulta26 e do início de sibilância em crianças em idade
escolar27. Pode surgir como a primeira manifestação de doença das vias
respiratórias, levando ao aparecimento de asma28; no entanto, é muitas vezes
desvalorizada e pouco diagnosticada na infância8,29. A relação da rinite actual
e da sua gravidade com a sibilância pre‑escolar raramente tem sido
estudada8,23,30. Neste estudo, as crianças com rinite actual apresentaram maior
prevalência de sibilância actual, reflectindo uma forte associação entre essas
patologias. Estes resultados estão de acordo com os relatados por Peroni et
al.8, Alm et al.23 e Tan et al.30.
No entanto, nenhum desses estudos relataram a prevalência de sibilância e/ou o
seu risco estratificados por gravidade da rinite de acordo com a classificação
ARIA.
Em adultos, vários estudos indicam que a rinite moderada‑grave está associada
com um risco mais elevado de aparecimento de asma/sintomas das vias aéreas
inferiores e a um fenótipo mais grave9,28. Tanto quanto é do nosso
conhecimento, o estudo presente é o primeiro a apoiar uma relação semelhante em
crianças pré‑escolares.
A constatação de que as crianças com sibilância e rinite actual, quando
comparados com aqueles apenas com sibilância actual isolada, têm mais episódios
de sibilância e necessitam de mais tratamento reforça a importância de uma
avaliação simultânea de sintomas nasais e brônquicos também na idade
pré‑escolar.
CONCLUSÕES
Um quarto das crianças portuguesas em idade pré‑escolar apresentou pelo menos
um episódio de sibilância no último ano, estando esta ocorrência fortemente
associada aos sintomas actuais de rinite, especialmente com a doença
persistente moderada a grave. Crianças pré‑escolares com clínica simultânea de
sibilância e rinite actuais parecem ter um fenótipo mais grave.