Angioedema associado a ganglioneuroma: A propósito de um caso clínico
INTRODUÇÃO
Angioedema é um termo utilizado para definir uma situação de edema subcutâneo
ou submucoso de instalação súbita e caráter transitório, envolvendo áreas bem
delimitadas, com sensação de dor ou queimadura1.
Os três principais elementos do angioedema adquirido (AAE), descrito pela
primeira vez por Caldwell em 19722, são a deficiência adquirida do inibidor de
C1 (C1‑INH), hiperativação da via clássica do complemento e angioedema
recorrente. É considerada uma condição muito rara, com pouco mais de 100
doentes relatados na literatura3. Cerca de 30 a 40% dos doentes apresentam
algum tipo de neoplasia linfoide ou outras, gamopatia monoclonal de significado
indeterminado (MGUS) em mais de 40% e doenças autoimunes em 5‑10% dos casos3.
Em alguns doentes não é possível identificar, pelo menos no momento do
diagnóstico, patologia associada.
Esta patologia afeta tipicamente os tecidos subcutâneos da face e a submucosa
das vias aéreas superiores e do trato gastrointestinal. Manifesta‑se por
episódios, com duração de dois a cinco dias, de edema subcutâneo e submucosa
(afectando face, membros, órgãos genitais), dor abdominal grave por edema da
mucosa gastrointestinal e edema laríngeo que pode causar asfixia fatal. Do
ponto de vista clínico os sintomas que caracterizam AAE não podem ser
diferenciados dos condicionados pelo angioedema hereditário (HAE), em que, na
maioria dos casos, se verifica uma deficiência de C1‑INH e que se deve à
presença de mutações em um dos dois alelos que codificam esta proteína4.
A bradicinina, péptido vasoativo, desempenha um papel fundamental na
fisiopatologia do angioedema por deficiência do C1‑INH5.
O HAE decorre geralmente da produção deficiente de C1‑INH com função normal
(tipo I) ou quantidade normal de C1‑INH com função alterada (tipo II), o que
corresponde a 85% e 14% dos casos, respetivamente. No tipo I, a região do gene
rica em sequências Alu apresenta o gene defeituoso, o que explica porque
pacientes do tipo I não produzem níveis normais de C1‑INH e não há expressão de
C1‑INH.
No tipo II, o defeito é usualmente localizado próximo do sítio ativo ARG 444 ou
no exão 85. Mais recentemente, foram identificadas mutações missenseno exão 9
do gene que codifica o fator de coagulação XII (F12) ou fator de Hageman em
doentes com história familiar de angioedema e sem alteração de C1‑INH6.
Foram ainda identificadas famílias com HAE sem alteração de C1‑INH e sem
identificação de alterações genéticas no F12. Assim, para os doentes com
história familiar de angioedema e sem alterações de C1‑INH, foi proposto o
termo FXII‑HAE quando se detetam as mutações no gene do F12 e U‑HAE quando
nenhum defeito genético é identificado7.
No AAE ocorre uma diminuição do C1‑INH pelo aumento do seu catabolismo, estando
frequentemente associado a doenças linfoproliferativas, outras neoplasias,
doenças autoimunes ou à presença de anticorpos anti‑C1‑INH, sem doença de base
detetável3,8. A maioria dos doentes com AAE demonstra depleção de componentes
da via clássica do complemento, com níveis baixos de C1q (componente mensurável
do complexo C1, C1q‑rs), o que não é observado nos doentes com HAE. Por outro
lado, nem todos os doentes que apresentam diminuição de C1q têm anticorpos
anti‑C1‑INH detetáveis3.
A abordagem terapêutica no AAE deve ser orientada, em primeiro lugar, para o
tratamento da doença de base. Nas agudizações o mais preocupante é o
envolvimento das vias aéreas superiores e nesses casos o tratamento de escolha
consiste na administração de concentrado purificado de C1‑INH ou, na falta
deste, na infusão de plasma fresco congelado (PFC). Alguns doentes tornam‑se
progressivamente não respondedores a esta terapêutica9. Nestes casos o
icatibant (antagonista do receptor de bradicinina) ou o ecallantide (inibidor
de calicreína) podem ser eficazes. A entubação orotraqueal e outras medidas de
suporte de vida podem ser necessárias9‑11.
A profilaxia a longo prazo é indicada em doentes com episódios frequentes, com
um ou mais episódios graves por mês, incapacidade em mais do que 5 dias por mês
ou 1 episódio potencialmente fatal10‑12.
A profilaxia a curto prazo está indicada em procedimentos estomatológicos,
endoscópicos e cirúrgicos programados. Os androgénios sintéticos atenuados,
como o danazol ou o estanazolol, são a terapêutica de eleição, sendo
responsáveis pela diminuição na frequência e gravidade das agudizações8,9.
Também pode estar indicado a utilização de inibidores da ativação do
cininogénio e do plasminogénio como o ácido tranexâmico ou ácido
e‑aminocaproico9‑12.
O tratamento da doença associada pode resolver AAE em alguns doentes3.
Os autores apresentam um caso clínico de uma criança seguida na Consulta de
Imunoalergologia do Centro Hospitalar de São João.
CASO CLÍNICO
Criança de 8 anos, sexo feminino, caucasiana, sem antecedentes pessoais
relevantes. Relativamente aos antecedentes familiares existia história de
neoplasia mamária (avó materna) e neoplasia gástrica (tia‑avó materna).
Sem história familiar de atopia ou de angioedema. Desde os 3 anos apresentava
episódios de angioedema facial recorrente (labial e palpebral unilateral), sem
urticária ou dificuldade respiratória, sem edemas dos membros inferiores e sem
dor abdominal ou outras queixas gastrointestinais. Descritos cerca de 6 a 7
episódios de angioedema por ano, que não cediam aos corticóides orais (CO) nem
anti‑histaminicos (AH) e com resolução espontânea ao final de 48 a 72 horas. A
mãe associava estes episódios à ingestão de ibuprofeno e à ingestão de
corantes. Negava sistematicamente uma possível associação destes episódios a
picadas de insetos, exposição ao latex ou ao exercício físico.
Na sequência de múltiplos recursos ao serviço de urgência, motivadas pelas
queixas descritas, foram pedidos exames analíticos pela pediatra assistente.
Destacam‑se hemoleucograma, ionograma, função renal, hepática, proteinograma e
função tiroideia sem alterações. As serologias para citomegalovírus (CMV),
vírus Epstein‑Barr (EBV) e parvovírus B19 revelaram‑se negativas, bem como o
estudo de autoimunidade com anticorpos antinucleares, anti‑dsDNA,
anticardiolipina, anti‑ENA, antimúsculo liso e autoanticorpos tiroideus
negativos, não apresentando outras alterações.
Foi referenciada à Consulta de Imunoalergologia onde se realizaram testes
cutâneos por picada (TCP) com aeroalergénios e alimentos, que foram negativos.
As provas de provocação oral com ibuprofeno e paracetamol foram negativas.
Ingeria alimentos com corantes (ex. gomas e bolos), com boa tolerância.
Perante o quadro clínico e exames complementares de diagnóstico prévios, foi
pedido o estudo do complemento, realizado fora de contexto de crise, que
revelou atividade CH50 de 135 UA (V.R: 63‑145 UA), fração C4 de 13 mg/dL (V.R:
12‑26 mg/dL), o doseamento do C1‑INH era de 45 mg/dL (V.R: 15‑55 mg/dL) e a
função de C1‑INH normal (93%). A fração C1q apresentava valor ligeiramente
inferior ao dos parâmetros normais, 14 mg/dL (V.R: 24‑48mg/dL).
Em maio de 2012 apresentou quadro de dor abdominal difusa intensa, tendo
realizado ecografia abdominal que detetou uma massa mediastínica. Foi
referenciada para consulta de Oncologia Pediátrica, tendo realizado pesquisa de
catecolaminas urinárias que revelaram aumento da dopamina, ácido vanilmandélico
(VMA) e ácido homovanílico (HVA). No cintilograma com iodo radioactivo
confirmou‑se a presença de massa paravertebral torácica direita com
expressão heterogénea de receptores α‑adrenergicos.
Internada para biópsia excisional de massa, estabelecendo‑se diagnóstico de
ganglioneuroma maduro. Mantém seguimento em Oncologia Pediátrica para
vigilância, não apresentando novos episódios de angioedema.
DISCUSSÃO
O ganglioneuroma (GN) é uma neoplasia benigna rara, da família dos tumores
neuroblásticos periféricos (PNT), que surgem predominantemente na infância e
incluem histotipos malignos, como o neuroblastoma e o ganglioneuroblastoma
nodular14,15. Histologicamente define‑se por ser composto predominantemente por
um estroma de células ganglioneuromatosas com um componente menor de
neuroblastos diferenciados ou células ganglionares maduras. O GN pode ser
diagnosticado de novo em indivíduos saudáveis ou, ocasionalmente, resultar da
diferenciação espontânea ou induzida por quimioterapia de um PNT maligno. Este
difere dos PNT malignos, pois surge mais tardiamente na infância e produz
quantidades normais ou ligeiramente elevadas de catecolaminas, sendo muitas
vezes assintomático. No entanto o GN pode crescer lentamente, sendo que os
sintomas geralmente resultam do efeito de compressão do tumor em tecidos
vizinhos16. A ressecção cirúrgica é o tratamento de escolha, embora às vezes
possa ser arriscada, em particular quando os grandes vasos estão envolvidos17.
O prognóstico é geralmente favorável, pois esta neoplasia é normalmente
benigna, sendo que raramente se torna maligna e a frequência de metastização ou
recorrência é reduzida16.
Ao contrário da maioria dos casos de AAE reportados, neste caso clínico não
foram detetadas alterações da função de C1‑INH e há apenas uma redução ligeira
de C1q em contexto de crise. O mecanismo que leva a diminuição dos níveis e
função C1‑INH, bem como do angioedema, permanece ainda por esclarecer. O AAE,
tal como o HAE, parece ser em grande parte mediado pela bradicinina9. Os
autores colocam a hipótese de existir uma produção aumentada de bradicinina e
de outros mediadores inflamatórios, por parte do tecido neoplásico, o que teria
sido eventualmente resolvido pela ressecção cirúrgica da massa tumoral.
A literatura sobre GN na infância é escassa, mesmo em questões relevantes, como
o curso clínico, a abordagem cirúrgica e as características histoquímicas.
Não há nenhuma série publicada de crianças com este diagnóstico reportando
associação desta patologia ao angioedema recorrente, tal como observado nesta
criança.
A evolução favorável da clínica de angioedema após ressecção do GN sugere
relação causal, não se podendo, contudo, apontar o mecanismo envolvido.