Plasticidade Cerebral no Desenvolvimento da Linguagem
Plasticidade Cerebral no Desenvolvimento da Linguagem
Cerebral Plasticity in the Development of the Language
Teresa Temudo1
1 Serviço de Neuropediatria, Departamento da Infância e Adolescência, CH Porto
Em 1996, tinha terminado o ciclo de estudos especiais em Neuropediatria havia
apenas um ano, assisti a uma conferência que me impressionou. A Karin Dias
tinha organizado um congresso no Centro Cultural de Belém e, de entre os vários
convidados estrangeiros, uma senhora entre os sessenta e os setenta, destacava-
se por várias razões: era magra e alta, com um ar austero e algo de pássaro,
cabelo branco arrepanhado num carrapito, voz sentenciosa. Fez-me lembrar uma
professora primária dos anos cinquenta. Havia uma aura de admiração e respeito
à sua volta e contavam-se histórias sobre a rigidez do seu carácter. Era a
famosa Isabelle Rapin, Suíça que aos 20 anos tinha emigrado para os Estados
Unidos para aprender Neurologia Pediátrica! Especialista em perturbações da
linguagem da criança, autismo, doenças degenerativas do SNC, muitos artigos
publicados, vários livros escritos, incontáveis conferências por todo o mundo
Durante a minha formação em neuropediatria nada me tinham ensinado de autismo
ou perturbações do desenvolvimento da linguagem, sendo considerados problemas
neurológicos menoresou da alçada dos Pediatras do desenvolvimento ou
Psiquiatras infantis. Porque, tendo como formação de base a neurologia de
adultos, se tinha ela interessado por tais coisas? Aguardei com impaciência a
sua palestra sobre perturbações do desenvolvimento da linguagem. Falou com
clareza e de forma entusiasta e, embora eu pouco soubesse do assunto, a sua
palestra era tão arrumada que, após ouvi-la, pensei ter aprendido alguma
coisa. Quando terminou, alguém da assistência lhe perguntou quantas consultas
necessitava de fazer a uma criança para lhe diagnosticar o problema específico
de linguagem. Ela respondeu orgulhosa:In one shot!
Nos anos que se seguiram, vi várias crianças com problemas da linguagem, a quem
fiz diagnósticos ao fim de dar tiros para vários lados Fui aos livros, li
artigos, mas aquilo continuava a ser para mim, embora muito interessante,
também muito complicado.
De todos os meninos que vi com este problema, o que mais me ensinou foi o
Guilherme. Tinha cinco anos quando foi trazido à minha consulta, após ter feito
muitos exames e ter andado em vários médicos. Bonitinho, cabelo claro e face
redonda, tinha um ar doce e triste. Os pais eram gente simples, amável e
inteligente. Traziam-mo porque o Guilherme, filho único, não se fazia entender.
' Como assim? ' perguntei.
' Ele entende tudo, doutora, faz recados, é inteligente, ajuda em casa, mas
quando quer falar, ninguém percebe nada do que diz. Fica muito nervoso porque
nós não o entendemos. Repete e volta a repetir, mas ninguém entende nada! Já
está há um ano na terapia da fala, mas não vale a pena, porque passa o tempo a
chorar quando está lá dentro e agora recusa-se a ir .Não sabemos que mais lhe
fazer!
O Guilherme, ao lado, baixou a cabeça e começou a soluçar. Pus-lhe um braço
pelos ombros e puxei-o para junto de mim (que nós os Neuropediatras podemos
fazer estas coisas!). Tirei da gaveta a minha colecção de animais e pedi para
ele mos nomear. Ca-ca, era o gato; ca-ca-ca, o cavalo; ca, o cão; ca-ca-
ca, o macaco. Se eu pedia para repetir, o som era invariável.
Não sabia exactamente qual era o problema mas tinha a certeza que o Guilherme
ouvia, compreendia muito bem e obedecia a ordens e tinha o resto do exame
neurológico inteiramente normal. A RMN cerebral e o EEG que trazia eram também
normais. Mais importante ainda era o facto do Guilherme estar deprimido e se
recusar a colaborar na terapia da fala. Falei com ele e expliquei-lhe em
linguagem simples que era importante ele praticar com a terapeuta e não
desistir. Da minha parte ajudei-o com uns miligramas de Sertralina que
prescrevi.
Já em casa, fui aos livros. Apraxia verbal, era esse o diagnóstico. Algo
impedia a programação dos movimentos dos órgãos fonatórios. Mas, porquê? E como
ajudá-lo?
Passados seis meses voltou à consulta. Quando abriu a porta sorriu, depois
deu-me um beijo e colocou-se ao meu lado, de pé. Pareceu-me que esperava que eu
lhe rodeasse novamente o corpinho com o meu braço. Fi-lo e ele deixou-se ali
ficar encostado a mim enquanto eu ia falando com os pais.
' O Guilherme anda mais contente e está a fazer terapia da fala duas vezes por
semana ' disse a mãe.
Mostrei-lhe de novo os animais e tentei que os nomeasse. Pouco parecia ter
progredido e eu continuava a só entender um ca-ca-ca silabado. Contudo, agora
cacarejava alegremente.
' Continua Guilherme, já estás muito melhor! ' menti.
Os pais estavam ansiosos porque tinham que tomar uma decisão. Era o último ano
de pré-escola e a Educadora Infantil aconselhou-os a adiar a entrada para o
Ensino Básico. Eles não o queriam fazer porque, diziam, apesar das dificuldades
na linguagem, o Guilherme era muito inteligente e tinha vontade de aprender.
' A doutora o que acha? ' perguntaram. Eu partilhava da opinião da Educadora e
disse-o.
' Claro que vocês é que decidem, conhecem-no melhor que ninguém. E tu,
Guilherme, queres ir para a escola?
Ele abanou a cabeça afirmativamente. Ficou decidido que iria. Embora eu
pensasse que as hipóteses que tinha de aprender a escrever e ler eram quase
nulas, respeitei o instinto dos pais e fiquei a aguardar .Marquei consulta para
dali a um ano, insistindo para que mantivesse a terapia da fala.
Nas férias da Páscoa voltaram. Como de costume, o Guilherme entrou na frente e,
após me dar um beijo, postou-se de pé a meu lado.
Então? ' perguntei cheia de curiosidade ' como correram as coisas?
Bem. ' respondeu o Guilherme num tom de voz nasalado ' Sou o melhor!
Nem queria acreditar no que ouvia! O Guilherme conseguira naquele ano adquirir
a linguagem que não conseguira desenvolver até aí. A prosódia era muito
particular, mas compreendia-se o que dizia. Para além disso, aprendera a ler e
a escrever e era o melhor da classe. Mais uma vez se confirmava que o instinto
dos pais está normalmente certo .Mas, o que é que tinha acontecido no seu
cérebro, que porta, que estrada se tinha aberto, de forma a ele ultrapassar as
suas dificuldades?
A vida é engraçada e, a minha em particular (que é a que conheço melhor), é
cheia de coincidências. Em 2005 a Isabelle Rapin, após ter ouvido uma minha
apresentação num congresso Europeu, quis conhecer-me. Convidou-me para fazermos
um trabalho em conjunto. Passados dois anos fui ter com ela a Nova York e
fiquei alojada na sua casa. Trabalhávamos doze horas por dia no seu gabinete da
Albert Einstein University e, apenas à noite, na sua cozinha-escritório
conversávamos de variadas coisas. Contei-lhe a história do Guilherme e a minha
surpresa pelo salto de desenvolvimento da linguagem, coincidente com a
aprendizagem da leitura e escrita. Disse-me que também já tinha constatado o
mesmo em outros casos de apraxia verbal congénita e concluiu com o seu tom
sentencioso.
' Neuroplasticity, my dear!