Doze Anos de experiência na doença meningocócica no Serviço de Pediatria de
Vila Real - Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro
INTRODUÇÃO
A doença meningocócica é uma importante patologia em idade pediátrica, quer
pela mortalidade que dela decorre como pelas sequelas nos sobreviventes(1,2) O
agente responsável é a Neisseria meningitidis, um diplococo gram negativo cujo
reservatório natural é a orofaringe humana, sendo a maioria dos serotipos
colonizadores não capsulados e pouco virulentos. As taxas de colonização da
orofaringe variam entre 2% em crianças que não frequentam o infantário e 37%
em adolescentes.(3) A doença invasiva geralmente ocorre nos primeiros 10 dias
após a colonização com uma estirpe patogénica.
São conhecidos 13 serogrupos de Neisseria meningitidis. Destes, cinco são
responsáveis pela maioria da doença invasiva: serogrupos A, B, C, Y e W 135.(2)
Recentemente, e muito esporadicamente, têm sido isoladas estirpes invasivas com
serogrupo 29E, Z ou X, em doentes infectados por meningococo.(2) Em Portugal,
predomina a doença invasiva provocada pelos serogrupos B e C.
Estruturalmente, a Neisseria meningitidis apresenta variações na expressão e
estrutura antigénica do seu polissacárido capsular e nas proteínas de membrana
externa, e é capaz de promover troca de material genético entre bactérias.
Estas características permitem-lhe fenómenos de switching capsular, em que um
serogrupo menos frequente na comunidade adquire alelos que codificam proteínas
capsulares do serogrupo mais frequente. Esta capacidade tem de ser considerada
quando se pretende a introdução de vacinas contra o meningococo.
Existem já no mercado dois tipos de vacinas: as conjugadas e as não conjugadas.
As primeiras induzem memória imunológica duradoura, obtendo-se uma eficácia
superior a 90% em crianças com menos de dois anos(2,4), e reduzem a
colonização faríngea. As vacinas conjugadas são por isso denominadas como
geradoras de imunidade de grupo.(1,2,4)As vacinas não conjugadas não conferem
memória imunológica.
No nosso país, a vacina conjugada contra o serogrupo C da Neisseria
meningitidis foi introduzida no mercado em 2001, sob prescrição médica, e faz
parte do Plano Nacional de Vacinação desde 2006. Nesse ano, foi realizada uma
campanha de vacinação dirigida às crianças nascidas de 1997 a 2004, estimando-
se que no final de 2006 a cobertura vacinal das coortes abrangidas variava entre
80 a 95%.(2) Em 2007 foi iniciada uma campanha de vacinação dirigida aos jovens
dos 10 aos 18 anos. Desde Março de 2010 está autorizada a introdução no mercado
europeu de uma vacina conjugada quadrivalente, já aprovada pelo Infarmed para
idades superiores a 11 anos e grupos de risco.
Em Portugal, o número de casos de doença meningocócica em idade pediátrica tem
vindo a diminuir, sobretudo pela redução do número de casos provocados por
serogrupo C, mantendo-se a doença pelo serogrupo B estável (Figura 1).(2,5)
FIGURA 1 - Doença meningocócica em Portugal - número de casos/ano (2,5)
Sabe-se que na Europa os serogrupos B e C são responsáveis por cerca de 90% da
doença meningocócica. No Reino Unido, a vacina contra o meningococo C foi
introduzida no Plano Nacional de Vacinação em 1999. Dois anos após verificou-se
uma diminuição na incidência de doença meningocócica em 75% entre os vacinados
e em 67% na população não vacinada, sem evidência de reposição de serogrupo.
Foram, no entanto, descritos casos de doença por serogrupo C na população
vacinada. (1,6,7,8) Em Espanha, a vacina faz parte do Plano Nacional de
Vacinação desde 2000. Dois anos após a sua introdução, observou-se que o risco
de doença por serogrupo C diminuiu em 58% e a doença por serogrupo B manteve-se
estável, não parecendo haver reposição de serogrupo. Contudo, foram isoladas
novas estirpes do serogrupo B (B:2A:P1,5) que podem originar-se do serogrupo C
(C:2A:P1,5). Também em Espanha foram descritos casos de falência da vacina.(9)
Nos Estados Unidos predominam os serogrupos B e C, no entanto, tem-se registado
um aumento no número de casos de doença provocada por serogrupo Y. Um estudo
revela que no período de 1989 a 1991 o serogrupo Y era responsável por 2% da
doença meningocócica nos EUA, registando-se de 1997 a 2002 um aumento para 37%.
(1)
Na Índia, China e Rússia o serogrupo A de Neisseria meningitidis é ainda
responsável por um elevado número de casos. Parece no entanto haver reposição
deste serogrupo pelo C. No Japão e em Taiwan tem-se verificado um aumento do
número de casos de doença por serogrupos A, C e W 135. No denominado
Meningitidis belt da África subsariana continua a verificar-se uma alta
incidência de doença meningocócica, com predomínio do serogrupo A. No entanto,
tem ocorrido surtos de doença por serogrupos C, X e W 135.(1)
OBJECTIVOS
Avaliar a frequência de casos de doença meningocócica no Serviço de Pediatria
do CHTMAD ' Unidade de Vila Real no período de Janeiro 1999 a Dezembro 2010;
identificar aspectos relacionados com a semiologia, serogrupos de Neisseria
meningitidis envolvidos, terapêutica instituída e evolução clínica e discutir
o impacto da vacina contra o meningococo C na epidemiologia local da doença
meningocócica.
MATERIAL E MÉTODOS
Análise retrospectiva dos processos clínicos de doentes internados no Serviço
de Pediatria do CHTMAD ' Unidade de Vila Real por doença meningocócica entre
Janeiro 1999 e Dezembro 2010. Foi definido como caso, o doente internado com
diagnóstico de doença meningocócica e isolamento do agente em líquido
habitualmente estéril (sangue ou líquido cefalorraquidiano ' LCR).
Foi analisada a proveniência, ano de internamento, idade, sexo, manifestações
clínicas e complicações, local de isolamento do agente, serogrupo e duração do
tratamento. A evolução a longo prazo foi avaliada através da análise de
registos no processo clínico do doente ou contacto telefónico com o cuidador,
quando possível.
RESULTADOS
Foram diagnosticados 36 casos de doença meningocócica no período analisado na
área de influência do Hospital de Vila Real. Destes, foi possível caracterizar o
episódio de doença em 35 casos: 54,3% dos doentes recorreram directamente ao
serviço de urgência, 42,9% dos doentes foram referenciados do Centro de Saúde e
um caso foi enviado por pediatra.
Até 2001 ocorreram cinco casos de doença meningocócica por ano. No ano 2002
registou-se um pico de doença, com sete casos. Desde então, o número máximo de
casos/ ano registado foi de três casos. Em 2009 e 2010 não ocorreu nenhum caso
(Figura 2).
FIGURA 2 - Número de casos de doença meningocócica/ano (n=36)
Verificou-se também um predomínio da doença nos meses frios, ocorrendo maior
número de casos nos meses de Janeiro, Fevereiro e Março (65,7% dos casos).
O sexo masculino (60% dos casos) foi mais afectado que o feminino. No que diz
respeito à distribuição por idades, estas variaram entre os nove dias e os 14
anos. A faixa etária mais afectada foi a de idade inferior a 12 meses, sendo a
menos afectada dos cinco aos 14 anos (Figura 3).
FIGURA 3 - Distribuição de casos por idade (n=35 casos analisados)
Entre as manifestações clínicas, a mais comum foi a febre (34 casos), seguida
de vómitos e sufusões hemorrágicas, com 22 e 21 casos, respectivamente. Na
faixa etária mais baixa ocorreram também irritabilidade, recusa alimentar e
gemido. Verificou-se ainda um caso que se manifestou inicialmente com dor
abdominal e outro com mialgias (Figura 4).
FIGURA 4 - Manifestações clínicas (n=35 casos analisados)
O agente foi isolado no LCR em 66,7% dos casos. Em 20% dos casos obteve-se
identificação do agente na hemocultura e no LCR; e em 14,3% dos casos apenas se
conseguiu o isolamento de Neisseria meningitidis no sangue.
Os diagnósticos encontrados foram de meningococemia e meningite (19 casos),
meningite isolada (13 casos) e meningococemia (três casos).
Ocorreram complicações em 54,3% dos casos de doença meningocócica, sempre na
fase aguda de doença e na maioria dos casos quando coexistiam meningococemia e
meningite. Entre as complicações agudas, registaram-se 15 casos de
instabilidade hemodinâmica, quatro casos de necrose de tecidos moles, quatro
casos de doentes com alterações neurológicas e ocorreu artrite em um caso e
íleo paralítico noutro.
A análise dos serogrupos de Neisseria meningitidis só se efectuou a partir de
2001. Em 2002, quando se registou o maior número de casos de doença, quatro
destes foram provocados por serogrupo C e três por serogrupo B. Desde 2006 que
não se verificou nenhum caso de doença por serogrupo C (Figura 5).
FIGURA 5 - Distribuição número de casos de serogrupo Neisseria meningitidis/ano
O tratamento foi instituído com ceftriaxone em 32 casos e em três casos foi
administrada Ampicilina e Cefotaxima (doentes com idade inferior a três meses).
A duração do tratamento variou entre sete e 14 dias, numa média de 8,79 dias.
Relativamente à evolução, não foi registado nenhum caso fatal nem foram
descritos casos secundários de doença meningocócica. Após a alta, 29 casos
foram enviados para a consulta externa de Pediatria e seis casos para o médico
assistente. Daqueles orientados para seguimento hospitalar, foi possível apurar
que 22 não apresentam sequelas, dois apresentam dificuldades de aprendizagem e
nos restantes cinco casos desconhece-se a evolução a longo prazo. Entre os
doentes seguidos pelo médico assistente, foi apenas possível verificar a
ausência de sequelas num caso, desconhecendo-se os restantes.
DISCUSSÃO
Os dados obtidos relativamente à frequência de casos de doença meningocócica
são concordantes com o que se verificou no resto do país, tendo-se registado um
pico em 2002, provavelmente relacionado com as características cíclicas da
patologia.
Os casos de doença meningocócica registados no serviço de Pediatria no período
analisado apresentam características semiológicas e epidemiológicas semelhantes
às descritas na bibliografia: predomínio de doença nos meses frios; 74% dos
casos abaixo dos quatro anos de idade; manifestações clínicas sobretudo
caracterizadas por febre, vómitos, manifestações cutâneas e sinais meníngeos; e
maioria das complicações associadas à co-existência de meningococemia e
meningite.
Registou-se apenas doença provocada pelo serogrupos B e C.
Desde 2006, altura em que a vacina meningocócica passou a integrar o Plano
Nacional de Vacinação, não se verificou nenhum caso de doença por Neisseria
meningitidis do serogrupo C.
Desde então e até Dezembro de 2010, o número médio de casos de doença
meningocócica por ano diminuiu em 63% (Figura 6), sendo que nos últimos dois
anos estudados não se registou nenhum caso.
FIGURA 6 - Número médio de casos de doença meningocócita/ano (n=36)
A ausência de casos fatais traduz um diagnóstico atempado e uma terapêutica
eficaz.
O facto de não se ter registado nenhum caso secundário de doença reflecte a
adequada profilaxia de contactos.
Sendo conhecidas as elevadas taxas de cobertura vacinal e a eficácia da vacina,
e considerando a evolução da frequência da doença meningocócica observada,
podemos inferir que o meningococo C era um importante agente de doença
meningocócica na área de influência do Hospital de Vila Real. Não houve
reposição de serogrupo e a vacina parece ter tido impacto na epidemiologia
local da doença, quer pelo efeito nos indivíduos vacinados quer pela imunidade
de grupo que proporciona.
Apesar de a amostra ser representativa da epidemiologia da doença meningocócica
na área de influência do Hospital de Vila Real, o número de casos é reduzido.
Também a ausência de análise estatística dos dados é uma limitação do estudo
apresentado.
COMENTÁRIOS
A doença meningocócica é uma patologia alarmante para doentes, familiares e, de
certa forma, para profissionais de saúde, pela necessidade urgente de cuidados.
A introdução da vacina contra o meningococo C no Plano Nacional de Vacinação
foi de grande importância para o controlo da doença provocada por este agente.
Dada a possibilidade de ocorrência de surtos e de falência da vacina, é
essencial manter programas de vigilância epidemiológica e registo dos casos de
doença meningocócica. Apesar de, no estudo efectuado, não parecer estar a
ocorrer reposição de serogrupo, este risco deve ser considerado. Assim, a
monitorização da doença provocada por serogrupo B é importante.
Além da vacinação, a precocidade da intervenção e a profilaxia de contactos
parecem ser determinantes para o controlo da doença meningocócica.