Alterações hepáticas em contexto de diabetes mellitus tipo I descompensada
INTRODUÇÃO
Os doentes com diabetes mellitus (DM) tipo I e mau controlo metabólico podem
desenvolver um quadro de hepatomegalia, secundário à deposição excessiva de
glicogénio intrahepático (glicogenose) ou a esteato-hepatite não alcoólica.
A glicogenose hepática (GH) aparece, habitualmente, em crianças, jovens e
adultos com DM tipo I, enquanto a esteato-hepatite não alcoólica é mais
frequente em adultos com DM tipo II.(1)A GH no contexto de DM descompensada,
parece ser uma entidade benigna, com baixa probabilidade de progressão para
fibrose e que habitualmente resolve com a optimização da dieta e terapêutica com
insulina.(2,3)
Nos casos em que para além da hepatomegalia e aumento das transaminases existe
baixa estatura, atraso do desenvolvimento pubertário, aspectos cushingóides
como a obesidade central e dislipidemia, pode-se falar de Síndrome de Mauriac.
Esta entidade foi descrita pela primeira vez em 1920 por Paul Mauriac e a sua
importância incide no facto de constituir a principal causa de disfunção
hepática em crianças e jovens com DM tipo I.
CASOS CLÍNICOS
Caso 1: Rapaz de seis anos, com DM tipo I diagnosticada aos dois anos e seis
meses de idade. Apresentava história de maus controlos glicémicos e
hiperglicemias frequentes desde os cinco anos. Sem antecedentes pessoais ou
familiares relevantes. O desenvolvimento estaturo-ponderal era adequado. Foi
referenciado ao Serviço de Urgência (SU) por quadro clínico com 12 horas de
evolução de vómitos incoercíveis e alteração do estado de consciência com
sonolência excessiva. Ao exame objectivo apresentava sinais de desidratação
moderada, sem outras alterações relevantes. O estudo analítico foi compatível
com cetoacidose diabética, pelo que se iniciou tratamento. No segundo dia de
internamento apresentou dor abdominal, com palpação abdominal globalmente
dolorosa e bordo hepático palpável dois centímetros abaixo do rebordo costal. O
estudo analítico e imagiológico está representado no Quadro I. Durante o
internamento houve melhoria progressiva do controlo glicémico. Quatro semanas
após este episódio, apresentava resolução da hepatomegalia e normalização dos
parâmetros analíticos e imagiológicos.
Quadro_I
' Estudo analítico e imagiológico efectuado
Caso 2: Adolescente do sexo feminino com 14 anos e DM tipo I diagnosticada aos
nove anos de idade. Tinha história de múltiplos internamentos no Serviço de
Pediatria por DM descompensada. Foi admitida no SU por episódios recorrentes de
hipoglicemias em contexto de má adesão ao regime terapêutico instituído.
Antecedentes pessoais e familiares irrelevantes. Ao exame objectivo apresentava
hepatomegalia com fígado palpável três centímetros abaixo do rebordo costal;
restante exame sem alterações. Desenvolvimento estaturo-ponderal no percentil
50. Estudos analítico e imagiológico representados no quadro I. A optimização
da terapêutica resultou na resolução completa do quadro em cerca de quatro
semanas.
Caso 3: Adolescente do sexo masculino, de 17 anos de idade, com DM tipo I com
dez anos de evolução. Havia história de patologia depressiva, seguido em
consulta de Pedopsiquiatria, e incumprimento persistente da dieta e esquema
insulínico prescritos. Múltiplos internamentos por DM descompensada e episódios
de cetoacidose diabética. Recorreu ao SU por vómitos incoercíveis e
epigastralgias com 12h de evolução. Ao exame objectivo apresentava
desenvolvimento estaturo-ponderal e pubertário adequados; hepatomegalia com
fígado palpável 2,5 centímetros abaixo do rebordo costal, com restante exame
irrelevante. Estudos analítico e imagiológico apresentado no Quadro_I. Excluiu-
se analiticamente a possibilidade de cetoacidose diabética. A terapêutica com
esquema intensivo de insulina permitiu a resolução total do quadro clínico,
analítico e imagiológico, reavaliados ao fim de quatro semanas.
DISCUSSÃO
A DM tipo I é uma das doenças endócrino-metabólicas mais prevalentes em idade
pediátrica. O aparecimento das suas complicações depende de vários factores. No
entanto, o mau controlo metabólico é um denominador comum em todas estas
situações podendo mesmo ser o único responsável por algumas delas.(4)
Na DM tipo I mal controlada, os episódios de hiperglicemia, a
hiperinsulinização pontual e o aumento dos níveis de cortisol como hormona
contra-reguladora da hipoglicemia reactiva, estimulam o depósito de glicogénio.
(5,6) Por outro lado, a presença de níveis insuficientes de insulina promove a
lipólise, com produção de corpos cetónicos que activam a síntese de cortisol
com aumento da libertação de ácidos gordos e hiperglicemia.(2)Em situações de
hiperglicemia, a entrada de glicose no hepatócito é livre, sendo posteriormente
armazenada sob a forma de glicogénio. O aumento das transaminases resulta da
ocupação do citoplasma das células pelo glicogénio. A magnitude da elevação das
enzimas hepáticas é variável sendo raramente acompanhada por alteração de
outros parâmetros de função hepática. Apesar de estar descrito o aparecimento
de hepatomegalia e aumento das transaminases em doentes com DM e mau controlo
metabólico, por aumento do glicogénio intra-hepático, é fundamental excluir em
todos os casos, outras causas de disfunção hepática como: doenças
hematológicas, de armazenamento e infecciosas. Após avaliação laboratorial, se
o diagnóstico permanecer incerto, poderá ser efectuada uma avaliação
imagiológica, sendo a ecografia abdominal o método de eleição pela facilidade de
execução, baixo custo e tratar-se de um procedimento não invasivo. A ecografia
pode mostrar imagens sugestivas de glicogenose.
Os casos relatados representam três situações diferentes em que se verificou a
existência de glicogenose hepática (GH). No contexto da cetoacidose diabética,
poderá ser questionada a possibilidade da correcção ter sido efectuada de forma
mais rápida do que seria desejável. Nos restantes casos, a GH parece estar
associada à má adesão à terapêutica e dieta instituídas. A adolescente de
catorze anos efectuava administrações irregulares de insulina, independentes
das determinações de glicemia e da ingestão alimentar, o que resultava em
episódios frequentes de hipoglicemias. Esta instabilidade de valores glicémicos
com hipoglicemias alternadas com hiperglicemias foi considerada o factor
etiológico das alterações hepáticas registadas. No caso do adolescente de 17
anos, apresentava regularmente hiperglicemias, dada a ingestão alimentar
abusiva e incumprimento do esquema de insulina prescrito. A hiperglicemia
persistente e a administração irregular de grandes quantidades de insulina com
o objectivo de obter a euglicemia parecem ser os factores desencadeantes mais
prováveis neste caso.
A Síndrome de Mauriac caracteriza-se por baixa estatura associada a atraso
pubertário, hepatomegalia e obesidade central em crianças com DM tipo I com
mau controlo metabólico. Laboratorialmente, para além da elevação dos
marcadores de mau controlo glicémico, encontram-se descritas alterações das
transaminases, dislipidémia, níveis normais/ baixos de IGF1, hipogonadismo
hipogonadotrófico e aumento do cortisol urinário.(3,4)O diagnóstico é
fundamentalmente clínico, uma vez que não existem marcadores específicos. O
grau de mau controlo metabólico a partir do qual existe maior risco de
aparecimento desta entidade patológica não está quantificado e parece ser
variável. A incidência desta síndrome não está definida, devido ao reduzido
número de casos descritos na literatura.
Nenhum dos casos apresentados preenche os critérios necessários ao diagnóstico
da Síndrome de Mauriac.
O prognóstico da GH, ao contrário do que acontece na esteato-hepatite não
alcoólica, parece ser bom, com resolução completa do quadro em algumas semanas
(duas a catorze) e baixa probabilidade de progressão para fibrose.(1) No
entanto, clinicamente é extremamente difícil fazer o diagnóstico diferencial.
Por este motivo, alguns autores advogam a realização de biopsia hepática neste
contexto.(7) Este procedimento não é consensual e a atitude expectante durante
4 a 6 semanas após instituição de controlo metabólico adequado parece ser uma
opção.(2, 6,8,9) Na maioria dos casos de GH, durante este período de tempo,
ocorre a regressão completa do quadro clínico, analítico e imagiológico, não
havendo necessidade de proceder a exames auxiliares de diagnóstico mais
invasivos.
CONCLUSÃO
A GH pode causar aumento significativo das transaminases em doentes com DM tipo
I descompensada. Quando existe concomitantemente dislipidemia, aspectos
cushingóides e atraso de crescimento e desenvolvimento pubertário, pode-se
fazer o diagnóstico de Síndrome de Mauriac.
Um bom controlo metabólico é fundamental para a regressão desta entidade
patológica.
Na DM tipo I os objectivos terapêuticos devem ser alcançados aliando uma dieta
adequada a esquemas de insulina adaptados a cada caso. O doseamento da HbA1C é
um parâmetro importante na avaliação do diabético. Segundo as normas
publicadas em 2009 (ISPAD Clinical Practice Consensus Guidelines 2009
Compendium) o controlo glicémico alvo situa-se nos níveis de HbA1C inferiores a
7,5%. (10)
A administração excessiva de insulina no contexto de ingestão alimentar
abusiva, as hipoglicemias recorrentes e consequente libertação das hormonas
contra-reguladoras; a hiperglicemia persistente e a rápida correcção da
cetoacidose diabética estão descritos na literatura como causas possíveis dos
distúrbios metabólicos relatados.