Tratamento dietético no metabolismo energético
Tratamento dietético no metabolismo energético
Júlio César Rocha1
1Centro de Genética Médica Jacinto de Magalhães
2Dep. Genética, Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, IP
O metabolismo representa um conjunto de transformações químicas que ocorrem no
organismo, através de reacções catalisadas por enzimas, constituindo as vias
metabólicas. O metabolismo contempla uma fase de degradação ou de catabolismo,
na qual os glícidos, lípidos e proteínas são convertidos em produtos mais
simples, libertando energia na forma de ATP, calor e equivalentes redutores,
bem como uma fase de síntese ou anabolismo, na qual os precursores mais simples
permitem sintetizar moléculas mais complexas tais como lípidos,
polissacarídeos, proteínas e ácidos nucleicos. Em condições fisiológicas, as
proteínas não constituem um substrato preferencial das vias metabólicas
responsáveis pela obtenção de energia. Contrariamente, os glícidos e os lípidos
são os nutrientes por excelência com função energética. Nesse sentido, esta
apresentação terá como objectivo discutir as abordagens da terapêutica
nutricional e dietética em alguns exemplos de doenças hereditárias do
metabolismo causadas pelo défice de uma das enzimas envolvidas nas vias
metabólicas relacionadas com estes dois nutrientes.
Em situações de jejum, o nosso organismo socorre-se preferencialmente das
reservas de ácidos gordos armazenados ao nível do tecido adiposo para fazer
face às necessidades celulares de ATP. Paralelamente, os ácidos gordos
constituem igualmente uma importante fonte energética para o músculo cardíaco e
esquelético. A oxidação em beta dos ácidos gordos ocorre a nível mitocondrial,
após o seu transporte, o qual é mediado pela carnitina. A oxidação dos ácidos
gordos ocorre em ciclos compostos por 4 passos enzimáticos, sendo que no final
de cada ciclo, é libertada uma molécula de acetil-CoA, sendo encurtado o ácido
gordo em 2 carbonos. As enzimas envolvidas em cada ciclo de oxidação são
específicas para o comprimento da cadeia dos ácidos gordos. Por exemplo, no
primeiro passo enzimático, as desidrogenases são específicas para ácidos gordos
de cadeia muito longa (VLCAD), média (MCAD) e curta (SCAD). No terceiro passo
enzimático, volta a ocorrer uma reacção de desidrogenação, também específica
para os AG de cadeia curta (SCHAD) e longa (LCHAD). Estas reacções de
desidrogenação serão as responsáveis pela formação de equivalentes redutores
(FADH2 e NADH) os quais levarão posteriormente à síntese de ATP na cadeia
respiratória. A propósito do metabolismo da oxidação dos ácidos gordos, serão
focados aspectos relativos ao tratamento dos défices em MCAD e LCHAD. Nestes
doentes, dada a impossibilidade de proceder adequadamente à oxidação dos ácidos
gordos, as condições de jejum prolongado ou de infecção aguda podem precipitar
crises agudas com hipoglicemia e encefalopatia como denominadores comuns.
Adicionalmente, poderá também surgir cardiomiopatia, fraqueza muscular e
episódios de rabdomiólise. Mais ainda, é de realçar o facto de, dada a
impossibilidade de proceder à síntese adequada de corpos cetónicos (3-
hidroxibutirato e acetoacetato), poder ocorrer hipoglicemia acompanhada de
hipocetose. Neste sentido, os princípios gerais do tratamento nutricional
assentarão na limitação dos períodos de jejum, bem como, no exemplo da LCHAD,
no controlo adequado da ingestão de ácidos gordos de cadeia longa e na
suplementação em ácidos gordos de cadeia média. Assim, em termos dietéticos,
será fundamental identificar os alimentos mais ricos em gordura, especialmente
constituída por ácidos gordos de cadeia longa, de modo a poder fazer o controlo
da sua ingestão, confrontando esses dados com os relativos ao controlo
metabólico.
Nas situações de activação das vias de oxidação dos AG, e porque o cérebro não
consegue, por mecanismos ainda não completamente esclarecidos, oxidar ácidos
gordos, há necessidade de formar outros compostos que funcionem como fonte de
energia alternativa. Estes compostos, designados de corpos cetónicos são
produzidos a partir de acetil-CoA, através da síntese e posterior degradação do
3-hidroxi-3-metilglutaril-CoA (HMG-CoA). Uma outra doença metabólica pode
surgir na sequência do défice na enzima líase do HMG-CoA: Aciduria 3-hidroxi-3-
metilglutárica. Esta doença manifesta-se igualmente por hipoglicemia
hipocetótica, recomendando-se assim, do mesmo modo, a limitação de longos
períodos de jejum. Paralelamente, recomenda-se igualmente a restrição do aporte
lipídico, bem como o controlo do aporte do aminoácido leucina, na medida em que
a enzima em questão também participa na via de catabolismo do referido
aminoácido.
A gliconeogénese e a glicogenólise são também duas outras vias metabólicas
cruciais no metabolismo energético. Em conjunto, ambas terão como objectivo
principal, o auxílio na regulação da concentração sanguínea de glicose,
especialmente nos períodos de jejum, assegurando desta forma, glicose em
quantidade suficiente para os órgãos glicodependentes. A glicogenose tipo I
constitui uma doença hereditária do metabolismo do glicogénio causada pela
deficiência da enzima glicose-6-fosfatase (tipo Ia) ou do sistema de transporte
associado à glicose-6-fosfato (Ib).
Nestas condições, a libertação de glicose pelo fígado fica comprometida, podendo
surgir hipoglicemia após curtos períodos de jejum. O atraso de crescimento e a
hepatomegalia têm como causa primordial a infiltração lipídica a nível hepático,
enquanto, o aumento da taxa da glicólise, acarretará acidose láctica,
associada a dislipidemia, caracterizada principalmente por aumento das
concentrações séricas de triglicerídeos. Particularmente na glicogenose tipo
Ib, a neutropenia e a alteração da função dos neutrófilos aumenta
significativamente o risco de infecção, mais notória ao nível da pele e tracto
respiratório, constituindo por esse motivo um factor de aumento significativo da
morbilidade. Em ambos os casos, o objectivo primário passará pela gestão da
glicemia, tentando optimizar o crescimento e minimizando as alterações
metabólicas secundárias. O interesse das várias abordagens terapêuticas
(nutrição entérica contínua nocturna, refeições frequentes, administração de
amido de milho cru, entre outras) deve ser discutido em equipa
multidisciplinar, no sentido de encontrar a melhor solução para o doente em
particular. Em suma, o tratamento dietético deve proporcionar ao doente uma
adequada gestão da sua glicemia, uma vez que o fígado não o conseguirá fazer
por força da doença instalada.
O último exemplo seleccionado para elucidar o papel do nutricionista no
tratamento das doenças hereditárias do metabolismo energético consiste na
doença causada pelo défice no complexo enzimático da desidrogenase do piruvato.
Sendo este complexo enzimático mitocondrial responsável pela oxidação do
piruvato a acetil-CoA, o seu défice impossibilitará a utilização adequada das
fontes glicídicas como substrato para a síntese de ATP. É assim natural a
constatação do facto do prognóstico da doença não ser animador, manifestando-se
com ataxia, hipotonia e convulsões, embora este quadro possa variar de acordo
com a severidade do défice. Na medida em que, como referido, o cérebro não
consegue fazer uso dos ácidos gordos como fonte de energia, há necessidade de
forçar o fígado a sintetizar corpos cetónicos que desta forma possam suprir as
necessidades cerebrais em ATP. Esta abordagem nutricional tem por base a
adopção de uma dieta cetogénica, com limitação franca do aporte glicídico e
elevação significativa do aporte lipídico. Paralelamente, a administração de
doses farmacológicas de tiamina poderá surtir algum efeito, na medida que a
vitamina constitui um dos cofactores essenciais ao bom funcionamento do
complexo enzimático. A elevação do lactacto, piruvato e alanina, podem ser
úteis no diagnóstico bem como na monitorização do tratamento, o qual não pode
ser considerado amplamente efectivo.
Das várias centenas de doenças hereditárias do metabolismo já descritas até aos
dias de hoje, há que realçar o facto de muitas delas estarem justamente
envolvidas nas vias do metabolismo energético. Apenas foram elencados alguns
exemplos a título de demonstração da diversidade de abordagens nutricionais e
dietéticas que terão de ser adoptadas como coadjuvantes no tratamento dos
doentes afectados. A monitorização clínica frequente, a análise crítica dos
resultados analíticos e a discussão multidisciplinar das abordagens
terapêuticas seleccionadas, constituem pedras basilares no seguimento efectivo
destes doentes, no sentido de optimizar o seu prognóstico.