Caso hematológico
Adolescente do sexo masculino referenciado à Consulta de Hematologia
Pediátrica, aos 15 anos de idade, para estudo e orientação de trombocitose de 1
210 000 plaquetas/mm3 detectada em análises de rotina.
Trata-se de um jovem previamente saudável, praticante de futebol de forma
federada e filho de pais não consanguíneos. Sem história de patologias
relevantes na família.
Assintomático até à data. Exame objectivo sem alterações.
Na primeira consulta era documentável, em três hemogramas realizados nos três
meses precedentes, uma trombocitose superior a 1 000 000 plaquetas/mm3.
Restante quadro hematológico normal.
Quais as hipóteses de diagnóstico?
Que exames complementares solicitava?
COMENTÁRIOS
Na literatura pediátrica, trombocitose é definida na base de contagens de
plaquetas que variam entre os 400 000/mm3 e 1 000 000/mm3. Esta variabilidade
do limite superior da normalidade refere-se, no entanto, a grupos etários mais
jovens. No presente caso tornava-se claro estar perante uma situação de
trombocitose severa e sustentada a exigir investigação.
A abordagem de uma trombocitose (Figura 1) é condicionada pela sua principal
vertente classificativa, ou seja, da possibilidade de se tratar de uma situação
primária por produção autónoma da medula óssea ou, em alternativa, secundária/
reactiva a uma variedade relativamente elevada de patologias. No presente caso,
o grupo etário do doente apontava mais no sentido de uma trombocitose reactiva.
Pelo contrário, a severidade e o carácter sustentado da trombocitose (que se
veio a confirmar nos hemogramas realizados posteriormente) contrastava com o
excelente estado geral deste jovem, que não apresentava qualquer sinal ou
sintoma de doença susceptível de provocar este quadro. Neste contexto a
investigação de trombocitose primária foi considera da prioritária. Mesmo
assim, foram excluídas as patologias mais frequentemente associadas a
trombocitose, nomeadamente de foro inflamatório/infeccioso, assim como o défice
de ferro e a presença de hipoesplenismo. Deste modo, foram realizados estudos
complementares dirigidos ao diagnóstico de Trombocitémia Essencial (TE).
Figura 1' Um algoritmo diagnóstico para trombocitose (adaptado de Wintrobe`s
Clinical Hematology. 12th ed. Lippincott, Williams&Wilkins ; 2009. p. 1355).
A pesquisa das mutações JAK2 V671F e do gene MPL W515L/W515K foi negativa.
A biópsia de medula óssea mostrou proliferação muito aumentada da linhagem
megacariocítica, com presença de alguns megacariócitos atípicos, na ausência de
mielofibrose e depósitos de ferro normais.
Na investigação adicional, a determinação da massa eritrocitária foi normal, a
pesquisa do gene de fusão BCR-ABL foi negativa e o cariótipo revelou-se normal.
O estudo da função plaquetária, através do PFA-100, revelou-se alterado
(Epinefrina 273 seg. (n<165) e Colagéneo 146 seg. (n<118).
Este conjunto de resultados permitiu o diagnóstico de TE segundo os critérios
da World Health Organization (WHO) 2008(1,2) e da British Society for
Haematology (BCSH) 2010(3). Conforme pode ser observado na Tabela 1, este
diagnóstico engloba critérios de inclusão (trombocitose sustentada,
anatomopatologia concordante e presença da mutação JAK2 V617F e/ou ausência de
trombocitose reactiva evidente) e critérios de exclusão de outras neoplasias
mieloproliferativas (PV, MFP, LMC BCR/ABL1), síndromes mielodisplásicas (SMD)
ou outras neoplasias mielóides.
Tabela_1
' Critérios da WHO de Trombocitémia Essencial (2008).
Com efeito, no caso apresentado, o diagnóstico foi realizado com base, não só,
no aumento sustentado do número de plaquetas, assim como, na presença de
hiperproliferação megacariocítica na biópsia de medula óssea que, por sua vez,
contribuiu também para a exclusão de mielofibrose primária (MFP), síndrome
mielodisplásica (SMD) e outras neoplasias mielóides. A policitemia vera foi
excluída com base em valores normais de hemoglobina, hematócrito e massa
eritrocitária. A pesquisa de BCR-ABL foi negativa. Finalmente, apesar da
negatividade da mutação JAK2 e MPL, foi feita a exclusão de trombocitose
reactiva, nomeadamente pela clínica e ausência de ferropenia ou patologia
infecciosa/inflamatória.
A trombocitemia essencial (TE) faz parte do grupo de neoplasias
mieloproliferativas (NMP) cromossomo Philadelphia (Ph) negativas4. Caracteriza-
se pela hiperproliferação megacariocítica, de carácter clonal, com consequente
trombocitose periférica, favorecendo fenómenos trombo-hemorrágicos(4). A
incidência, segundo a OMS, é de 0,6 a 2,5 casos por 100 000 habitantes/ ano. A
maioria dos casos ocorre em pacientes entre os 50 e 60 anos de idade(1), sendo
uma doença rara na criança. A razão sexo F/M é cerca de 2:1(5).
A mutação JAK2 V617F (exão 14) é observada em cerca de 50-60% das TE(6), sendo
menos frequente nas crianças do que nos adultos. Mutações no gene MPL, receptor
de trombopoietina, representadas sobretudo na forma do alelo W515L ou W515K,
estão presentes em 7-8% dos pacientes com TE(7), correspondendo a raros casos
primários familiares em crianças e estando usualmente presentes nos casos JAK2
V617F negativos(8).
As manifestações clínicas dominantes são trombóticas (arteriais ou venosas) e/
ou hemorrágicas, mas a maioria dos casos é assintomática ao diagnóstico e
detectada em hemograma de rotina(3). Em idade pediátrica a doença está
associada a um quadro clínico mais leve, assim como, a menores taxas de
evolução para PV, MFP, SMD e leucemia aguda. Podem ocorrer sintomas vasomotores
como cefaleia, síncope, dor torácica, eritromelalgia, distúrbios visuais ou
parestesias das extremidades. Angina, enfarte do miocárdio, acidente vascular
cerebral (AVC) e embolia pulmonar podem representar a primeira manifestação de
trombocitose(6). As manifestações hemorrágicas são menos comuns e estão
associadas a um número de plaquetas superior a 1 000 000/mm3, variando de
epistaxis e gengivorragias até hemorragias digestivas ou do sistema nervoso
central (SNC), muito raramente(5). Entre 25 a 48% dos doentes apresentam
esplenomegalia(6). As provas de função plaquetária são consistentemente
anormais, com PFA-100 aumentado. O esfregaço de sangue periférico pode mostrar
plaquetas grandes e fragmentos de megacariócitos.
Actualmente, como já referido, o diagnóstico desta entidade, segundo a OMS,
exige a presença dos 4 critérios enumerados na 1ªreferência no texto Tabela_1.
Perante este quadro:
Tratar ou não tratar?
Quando iniciar tratamento?
Quais os fármacos?
Pode manter actividade física de alta competição?
O doente, actualmente com 16 anos, tem sido mantido em vigilância sem
tratamento dirigido, dado apresentar contagens plaquetárias entre 1 000 000 e 1
500 000/mm3, sem clínica trombótica ou hemorrágica associada.
A TE é uma doença crónica, de comportamento relativamente benigno e que não tem
cura. De um modo geral e, de acordo com as as guidelinesda British Society for
Haematology (BCSH) 2010(3), a abordagem terapêutica na TE centra-se na redução
do número de plaquetas e na prevenção das complicações trombóticas e
hemorrágicas; devendo a estratificação pelo risco estar na base da decisão
terapêutica.
Neste contexto, estamos perante um doente de baixo risco (idade inferior a 40
anos, com contagens plaquetárias inferiores a 1 500 000/mm3, sem história de
eventos trombóticos ou hemorrágicos e sem factores de risco cardiovasculares).
Nestes casos, de um modo geral, deve ser iniciada a aspirina, excepto se
contra-indicada(3). De facto, há autores que defendem que doentes
assintomáticos e de baixo risco poderiam ser apenas vigiados, optando por uma
conduta expectante(9), com indicação de aspirina apenas nos casos com número de
plaquetas inferior a 1 000 000/ mm3. Com efeito, o caso apresentado enquadra-se
neste último grupo, pelo que a decisão de o manter sem aspirina é aceitável,
tendo em conta o número de plaquetas e o possível risco hemorrágico que este
fármaco poderia condicionar. Vários estudos(9) confirmam que a aspirina evita
as complicações trombóticas e reduz os distúrbios microvasculares, tais como a
eritromelalgia, acrocianose, cefaleia, tonturas, distúrbios visuais e
parestesias das extremidades (palma das mãos e planta dos pés).
Para níveis de risco mais elevados, a base do tratamento são agentes redutores
das contagens plaquetárias: hidroxiureia, anagrelide ou interferon alfa
associados à prevenção das complicações trombóticas e hemorrágicas.
Finalmente, coloca-se a questão da possibilidade deste jovem manter a prática
de futebol de forma federada pelo risco trombótico/hemorrágico a que esta
patologia está associada. Com efeito, o presente contexto clínico coloca
questões muito delicadas em termos de prática de desporto federado,
nomeadamente pelo risco acrescido de hemorragia que um desporto de contacto
como o futebol(10) condiciona. De um modo geral, a opinião dominante entre
vários especialistas desta área, assim como, na literatura(10) sobre este
assunto é de que a prática de futebol federado está contra-indicada.