Alterações ungueais em Pediatria
INTRODUÇÃO
As alterações ungueais em idade pediátrica podem apresentar-se de forma
congénita ou adquirida, corresponder a simples variantes do normal ou
constituir a primeira manifestação de algumas doenças cutâneas ou sistémicas.
Estima-se que cerca de 7% das crianças com idade inferior a dois anos tenha
pelo menos um tipo de alteração ungueal(1) e que estas alterações representem
até 11% dos motivos de recurso à consulta de Dermatologia Pediátrica(2).
A patologia ungueal de origem traumática é a que mais motiva o recurso ao
serviço de urgência; as restantes alterações, sobretudo as crónicas e
assintomáticas, são frequentemente desvalorizadas pelos familiares, contudo a
sua identificação e interpretação pode ser fundamental para o diagnóstico
diferencial de várias patologias.
Noções Gerais: Embriologia, Anatomia e Fisiologia das unhas
As unhas ocupam a superfície dorsal das falanges distais das mãos e pés e são
constituídas por quatro epitélios especializados: a matriz ungueal, o leito
ungueal, a prega ungueal proximal e o hiponiquium. A matriz é um epitélio
germinativo cuja proliferação celular dá origem a uma estrutura de múltiplas
camadas de células corneificadas que cobre o leito, denominada o prato ungueal.
O prato ungueal é uma estrutura rectangular, translúcida, cuja aparência rosada
lhe é conferida pelos capilares presentes no leito ungueal. Na porção proximal
do prato ungueal é visível a lúnula, uma estrutura opaca, esbranquiçada, em
forma de semi-círculo que corresponde à visualização da porção distal da
matriz. O prato ungueal está inserido proximal e lateralmente nas pregas
ungueais e termina num bordo livre distal de coloração esbranquiçada causada
pelo contacto com o ar. A camada córnea da prega proximal forma a cutícula(3)
(Figura 1).
Figura 1' Anatomia da Unha normal
A unha é um derivado ectodérmico, cuja formação se inicia na nona semana de
vida embrionária. Às 13 semanas de idade gestacional o prato ungueal é já
visível e, progressivamente, adquire consistência e rigidez. Após o nascimento
a matriz continua a proliferar. A velocidade média de crescimento das unhas é
de cerca de 3 mm por mês (0,1mm/dia) nas mãos e 1mm/mês nos pés. Situações de
desnutrição podem reduzir esta velocidade e é possível ocorrer paragem
transitória do crescimento ungueal no contexto de doença grave(4).
As unhas protegem a superfície distal dos dedos, potenciam a discriminação
táctil e a capacidade para manipular pequenos objectos(5).
Sinais ungueais ' terminologia
Na maioria das alterações ungueais o diagnóstico é clínico, pelo que se torna
essencial compreender a terminologia adequada à descrição das alterações
físicas identificadas no exame objectivo (Quadro I).
Quadro_I ' Principais sinais ungueais: terminologia e descrição
A interpretação destes sinais ungueais é frequentemente suficiente para
estabelecer a correlação com o local anatómico da unha afectado. Assim, lesões
da matriz poderão manifestar-se como linhas transversais, pitting, leuconíquia,
fissuração, estriação longitudinal, onicomadese ou traquioníquia; enquanto
lesões do leito ungueal podem determinar hemorragia, onicólise e hiperqueratose
sub-ungueal(6).
Alterações ungueais observadas no recém-nascido e lactente
Ao nascimento as unhas são finas, transparentes e friáveis. O bordo distal
livre pode ser encurvado para baixo, cobrindo parte da extremidade distal do
dedo, ou exibir uma curvatura para cima, acompanhada de concavidade do prato
ungueal. A coiloníquia é uma alteração comum na criança, afecta habitualmente
vários dedos e é auto-limitada, desaparecendo aos dois-três anos.
O mau alinhamento da primeira unha dos dedos do pé é uma distrofia ungueal de
transmissão autossómica dominante caracterizada pelo desvio do eixo do prato
ungueal relativamente ao eixo da falange distal. Pode ser unilateral ou
bilateral. É uma situação frequente ao nascimento, com melhoria espontânea em
alguns indivíduos, mas pode persistir até à idade adulta. As complicações mais
comuns incluem a predisposição para unha incarnada, hipertrofia da prega
ungueal lateral e paroníquia (caracterizada pela infecção dos tecidos moles
peri-ungueais)(7).
O aparecimento de depressões transversais em todas as unhas, linhas de Beau,
pode ser observado em cerca de 25% dos lactentes, traduzindo o desaceleramento
transitório do crescimento verificado nos primeiros dias de vida. Apesar de ser
um achado comum no lactente, as linhas de Beau podem aparecer em qualquer
idade, manifestando-se habitualmente pelo envolvimento simultâneo ao mesmo
nível de todas as unhas, o que é concordante com uma causa sistémica (por
exemplo doença febril grave). O envolvimento de apenas um membro está
documentado num caso de distrofia simpática reflexa(8). O aparecimento de
várias linhas de Beau sequenciais traduz vários episódios de doença.
Lesões secundárias ao hábito de sucção digital podem ser observadas, por vezes,
ao nascimento sob a forma de pequenas vesículas de conteúdo límpido peri-
ungueais que surgem na sequência de sucção vigorosa pré-natal (hábito presente
desde as 29 semanas de idade gestacional)(4). Durante a infância 10 a 34% das
crianças têm comportamentos de sucção digital(9) pelo que a unha está
permanentemente sujeita a um ambiente húmido que a hiperhidrata e fragiliza. A
ocorrência de paroníquia aguda ou crónica é a complicação mais frequente, sendo
os principais agentes o estafilococos e ocasionalmente estreptococos beta-
hemolíticos, gram-negativos e Candida albicans. O papel irritante da saliva
contribui para a exuberância da paroníquia. A paroníquia pode ainda ocorrer na
sequência de lesões traumáticas produzidas, por exemplo, durante o corte das
unhas. Caracteriza-se por sinais inflamatórios da prega ungueal proximal ou
adjacentes à porta de entrada. Se evoluir para a formação de abcesso, com
visualização de pus sub-ungueal, este deverá ser drenado em 48 horas para
evitar o estabelecimento de lesões permanentes na matriz ungueal.
Referem-se em seguida algumas condições congénitas menos comuns:
A anoníquia congénita é rara, podendo ocorrer de forma isolada ou associada a
outras alterações, nomeadamente esqueléticas, como a sindactilia. A ausência de
unha nos polegares e de rótula integra a síndrome nail-patella. A anoníquia
pode ser também identificada nas síndromes de Coffin-Siris e Hallermann-
Streiff.
Entre as displasias ectodérmicas hereditárias salienta-se a paquioníquia
congénita, ou síndrome de Jadassohn-Lewandowsky, caracterizada por unhas
amarelas ou acastanhadas, de consistência aumentada e aumento da curvatura do
bordo livre que assume a conformação em ferradura.
A braquioníquia é classicamente referida como um sinal presente na sífilis
congénita.
A hiponíquia congénita pode ser secundária à exposição pré-natal a álcool ou a
fármacos, tais como a varfarina, hidantoína e carbamazepina(4).
A ocorrência de baqueteamento digital congénito é uma das características da
osteoartropatia hipertrófica.
A microníquia e outras formas de onicodisplasia estão descritas na síndrome de
Iso-Kikuchi.
Está relatada a ocorrência rara de candidíase ungueal como única manifestação
da infecção congénita a Candida albicans(10).
Alterações Ungueais adquiridas
As alterações ungueais adquiridas na criança são semelhantes às observadas no
adulto. Importa, porém, salientar que existem algumas particularidades
específicas da infância e, sobretudo, que diferem em termos de prevalência.
Alterações ungueais de etiologia traumática
A ocorrência de traumatismo da unha é uma situação frequente na infância. O
espectro das alterações traumáticas inclui desde alterações agudas, tais como
as feridas e hematomas, a lesões crónicas como as produzidas pela onicofagia e
hábitos de manipulação repetida da unha.
O hematoma sub-ungueal pode ocorrer na sequência de trauma fechado do leito
ungueal que resulta na hemorragia dos capilares do leito, com acumulação de
sangue entre este e o prato ungueal. Manifesta-se por dor e coloração vermelha
a negra da unha. Se a unha estiver intacta pode ser necessário realizar
trepanação da unha com objecto punctiforme aquecido, para evacuar o hematoma e
aliviar a dor(11).
Lacerações ungueais são muito dolorosas e a sua correcção deve ser feita sob
anestesia troncular. Se ocorrer avulsão da unha durante o traumatismo esta
deverá ser reposta sob a cutícula e suturada com fio de sutura reabsorvível.
Deve ser criado um pequeno orifício na unha para drenagem. Se não for possível
repor a unha deverá ser colocada uma folha de alumínio estéril a cobrir o leito
ungueal durante 3 semanas. É importante excluir a existência de lesões ósseas
(presentes em 50% dos casos)(12).
A onicofagia é um tipo de lesão traumática auto-infligida resultante da
mordedura do bordo distal da unha. A prevalência desta condição é elevada em
crianças em idade escolar e adolescentes e pode associar-se a perturbações
psiquiátrica(13). Complicações decorrentes da onicofagia incluem traumatismo
peri-ungueal e infecção secundária (paroníquia, verrugas peri-ungueais). Podem
utilizar-se vernizes com sabor desagradável como forma de desmotivar a
onicofagia, mas os resultados são limitados.
Lesões ungueais provocadas pelo hábito de manipular as unhas (por exemplo,
manipulação digital persistente ou fricção da superfície da unha contra
objectos), são situações a considerar perante lesões crónicas, inespecíficas e
sem outra etiologia aparente. A perpetuação deste tipo de comportamentos pode
determinar a cronicidade das lesões e a evolução para distrofia ungueal. A
história clínica e a observação prolongada da criança permitem habitualmente
realizar o diagnóstico.
Perante lesões recorrentes, nomeadamente hematomas em várias fases de evolução,
com outros traumatismos associados e sem correlação obvia com a história
clínica há que considerar a possibilidade de maus tratos ou síndrome de
Munchausen por procuração.
Patologia ungueal e peri-ungueal de etiologia Infecciosa
Etiologia bacteriana
A paroníquia, já anteriormente abordada, é a infecção bacteriana mais
frequente. Nas crianças com hábitos de sucção ou onicofagia os agentes
etiológicos mais comuns são provenientes da cavidade oral. Nos casos de
gravidade ligeira a moderada é em geral suficiente a aplicação de água morna
sobre a lesão e antibioterapia tópica (bacitracina, gentamicina ou mupirocina
aplicadas três vezes ao dia, durante dez dias). A terapêutica antibiótica
sistémica está indicada nas infecções persistentes ou de maior gravidade e
extensão, devendo ser consideradas as penicilinas com actividade anti-
estafilocócica (flucloxacilina, amoxicilina em associação com ácido
clavulânico) ou macrólidos (eritromicina, claritromicina)(14).
A infecção peri-ungueal por pseudomonas pode surgir como complicação de unha
incarnada e confere coloração esverdeada à unha e tecido peri-ungueal.
Pode ocorrer dactilite com formação de bolha peri-ungueal secundária à infecção
por Streptococcusbeta-hemolitico do grupo A, eventualmente com necessidade de
drenagem.
Etiologia viral
A infecção pelo vírus do papiloma humano (VPH serotipos 1,2 e 4) pode
determinar o aparecimento de verrugas peri-ungueais que causam dor, deformidade
e compromisso estético. Como tratamento de primeira linha na criança podem ser
utilizadas soluções queratolíticas (por exemplo ácido salicílico em
concentração elevada). A utilização de crioterapia com azoto líquido é
reservada para tratamento de segunda linha por ser de aplicação dolorosa e
requerer mais do que uma aplicação. Podem utilizar-se imunomoduladores, como
por exemplo o imiquimod, ablação por laser ou excisão cirúrgica. A recorrência
é alta.
A infecção periungueal por herpes vírus simplex tipo 1, habitualmente
secundária a auto-inoculação de lesões herpéticas peri-orais, pode desencadear
a formação de bolha dolorosa peri-ungeal. A utilização de aciclovir diminui a
duração da doença.
Etiologia fúngica
A onicomicose é a onicopatia mais frequente do adulto. Todavia a sua
prevalência em idade pediátrica é baixa (0,2 a 0,44%), sendo excepcional em
crianças com idade inferior a 10 anos. Constituem grupos de risco para a doença
as crianças com trissomia 21 ou infecção pelo vírus da imunodeficiência humana.
O diagnóstico é clínico, complementado pela identificação de dermatófitos no
exame micológico ou no exame directo do raspado ungueal com hidróxido de
potássio. Os dermatófitos mais comummente envolvidos são Trichophyton rubrum,
T. tonsuranse
T. mentagrophytes
(15).
O tratamento clássico inclui a utilização de anti-fúngicos sistémicos
terbinafina, fluconazol, cetaconazol ou itraconazol ' em regimes terapêuticos
prolongados (como exemplo, cita-se o esquema posológico de terbinafina: 62,5mg/
dia se peso < 20Kg; 125mg/dia se peso 20-40Kg e 250mg/dia se peso > 40Kg, em
tratamento contínuo durante seis semanas no caso de onicomicose de unha da mão
ou três meses se atingimento de unha do pé)(15). Apesar da boa tolerância da
terapêutica sistémica e da baixa incidência de complicações descrita nas várias
séries publicadas, é prudente a avaliação laboratorial mensal da função
hepática.
Em alternativa à terapêutica clássica, alguns autores defendem mais
recententemente a utilização de anti-fungicos tópicos como primeira linha na
onicomicose pediátrica, pelo facto destes agentes terem melhor penetração no
prato ungueal da criança comparativamente ao do adulto onde são considerados
ineficazes(16). Soluções ungueais como a amorolfina a 5% e ciclopirox a 8%
estão disponíveis para utilização tópica, embora ainda não estejam licenciadas
para utilização na criança.
Alterações Ungueais adquiridas relacionadas com a exposição a fármacos
São reconhecidos os efeitos secundários de determinados fármacos sobre as
características das unhas. Habitualmente as modificações envolvem todas as
unhas, surgem em relação temporal com a administração do fármaco e desaparecem
após a sua suspensão, podendo, todavia, ser permanentes. Os fármacos mais
frequentemente implicados são as tetraciclinas (onicólise e descoloração),
antimaláricos e zidovudina (hiperpigmentação)(17). Está descrita a ocorrência
de onicomadese secundária à terapêutica com valproato de sódio(18) e
melanoníquia secundária à terapêutica prolongada com hidroxiureia(19).
Manifestações Ungueais no contexto de patologia dermatológica
Algumas patologias dermatológicas associam-se a manifestações ungueais que,
apesar de frequentemente inespecíficas, podem preceder o aparecimento das
manifestações no tegumento e auxiliar no diagnóstico. Citam-se alguns exemplos.
Eczema atópico:pode observar-se aumento do brilho do prato ungueal por fricção
repetida na pele por coceira. Alterações como distrofia ungueal, pittinge
irregularidade da conformação da unha podem ocorrer se existir inflamação da
matriz. O envolvimento eczematoso peri-ungueal pode determinar paroníquia.
Psoríase: ocorre envolvimento ungueal em 7 a 40% das crianças com psoríase e
estas alterações associam-se com maior prevalência de artrite psoriática. As
alterações mais frequentes são o pittinge descoloração, mas pode ocorrer
distrofia ungueal.
Líquen plano: o envolvimento ungueal pode manifestar-se como distrofia ou
pterigium dorsal com perda progressiva e definitiva de unhas.
Alopecia areata: A alteração mais frequente é o pitting; a onicodistrofia pode
preceder a queda de cabelo.
Paraqueratose pustulosa: Doença inflamatória da extremidade digital e unha, de
ocorrência rara, mais comum em crianças com idade inferior a 5 anos. O evento
inicial consiste no aparecimento de vesículas na extremidade distal do dedo e a
evolução habitual incluiu a progressão para distrofia ungueal e hiperqueratose
sub-ungueal.
Doença de Darier: O envolvimento das unhas é frequentemente a manifestação
inaugural da doença. O aspecto típico consiste no aparecimento de uma banda
longitudinal de coloração avermelhada, que termina com um defeito triangular do
bordo livre da unha.
Pitiríase rósea: Por vezes associa-se a pitting.
Distrofia de 20 unhas ou traquioníquia: Situação caracterizada pela rugosidade
da superfície do prato ungueal de todas as unhas. Pode ser a forma de
manifestação de inúmeras doenças inflamatórias, incluindo a alopécia areata,
líquen plano ou psoríase.
Manifestações Ungueais no contexto de patologia sistémica
Algumas doenças sistémicas acompanham-se de alterações da conformação,
estrutura, cor ou velocidade de crescimento das unhas.
A diminuição da velocidade do crescimento das unhas que acompanha os episódios
de doença grave, aguda ou crónica, pode manifestar-se pelo aparecimento de
linhas de Beau, um achado relativamente frequente e inespecífico.
O hipocratismo é a alteração digital que mais frequentemente se observa em
associação com patologias sistémicas crónicas. (6)
Quadro II' Condições sistémicas associadas a hipocratismo digital
Outras alterações ungueais sugestivas de doença sistémica estão expressas no
Quadro III.
Quadro III' Alterações Ungueais que podem surgir no contexto de patologia
sistémica
Tumores da unha
A patologia tumoral da unha é pouco frequente em pediatria. No entanto, pela
gravidade e necessidade de uma elevada suspeição clínica para que seja feito um
diagnóstico precoce salienta-se o caso particular do melanoma.
Apesar da melanoníquia ser na maioria das situações uma variante do normal com
forte predomínio racial (presente em 77% dos indivíduos de raça negra), o
diagnóstico diferencial com melanoma é apenas possível pela realização de exame
histológico. Favorecem a hipótese diagnóstica de melanoma os seguintes
factores: identificação de uma lesão pigmentada do tipo melanoníquia em
indivíduo de pele clara, envolvimento de apenas uma unha, alteração da
aparência da lesão, pigmentação da pele das pregas ungueais, espessura da banda
pigmentada superior a 3 mm, história familiar de melanoma ou nevo displásico e
alteração da estrutura da unha(20).
CONCLUSÃO
A maioria das alterações ungueais abordadas corresponde a modificações subtis
da estrutura ou aparência da unha, com impacto estético e sintomatologia
variáveis. Embora a correcção total nem sempre seja possível, o estabelecimento
de um diagnóstico correcto é fundamental para esclarecer sobre a eventual
benignidade e prognóstico das lesões e adoptar o esquema terapêutico mais
apropriado à optimização estética e sintomática. O reconhecimento do
envolvimento da unha no contexto de outras patologias deve alertar o médico
para a importância da observação sistemática dos sinais ungueais.