Endocardite infecciosa num recém-nascido pré-termo
INTRODUÇÃO
O diagnóstico de endocardite infecciosa (EI) no período neonatal, apesar de
pouco frequente, tem vindo a aumentar, devido à maior sobrevivência de recém-
nascidos (RN) pré-termo que requerem técnicas invasivas, nomeadamente catéteres
venosos centrais(1,2). A incidência estimada é de 0,07% em RN internados em
Unidades de Cuidados Intensivos Neonatais(1). Estima-se que cerca de 8-10% dos
casos de EI diagnosticada na população pediátrica ocorra no período neonatal
(3). A etiopatogenia é complexa, mas na maioria dos casos associa-se a lesão a
nível do endocárdio ou endotélio vascular que expõe o colagéneo subendotelial,
promovendo a deposição de fibrina e plaquetas, dando origem a vegetações
trombóticas não infecciosas(1,2,3,4,5). Durante episódios de bacteriémia ocorre
colonização da superfície atingida, levando à formação de vegetações
infectadas. Pode ocorrer em RN com cardiopatia congénita, mas mais
frequentemente surge em RN com coração estruturalmente normal, que necessitam
de catéteres venosos centrais para alimentação parentérica(1). Os sinais e
sintomas são inespecíficos. Pode não haver febre, mesmo na presença de
septicémia(3). Laboratorialmente caracteriza-se por aumento dos marcadores de
infecção, trombocitopenia e geralmente hemoculturas persistentemente positivas.
A presença de vegetações no ecocardiograma é sugestiva do diagnóstico, mas a
sua ausência não o exclui (alguns ecógrafos não permitem visualização de
vegetações inferiores a 2mm)(2,4). Nos doentes sem cardiopatia congénita,
surgem frequentemente na válvula tricúspide. Os principais microorganismos
envolvidos são o Staphylococcus aureus, Staphylococcus coagulase negativos,
gramnegativos (Klebsiella pneumoniae, Enterobacter cloacae e Enterococcus
faecalis) e fungos.
Os critérios de Duke modificados revistos em 2005 são os mais consensuais para
o diagnóstico desta patologia. São divididos em critérios maiores e menores,
considerando-se casos confirmados aqueles que reúnem dois critérios maiores ou
um critério maior e três menores ou cinco critérios menores, e casos possíveis
aqueles que cumprem um critério maior e um menor ou três menores(6).
Critérios maiores:
1) Hemocultura positiva
- isolamento de agentes comuns de EI em duas hemoculturas distintas, na
ausência de foco primário;
- microorganismo compatível com EI isolado em hemoculturas persistentemente
positivas;
- única cultura ou serologia positiva para Coxiella burnetii;
2) Evidência de envolvimento do endocárdio
- Ecocardiograma sugestivo (oscilação de massa intracardíaca na válvula ou
estruturas adjacentes; em material protésico na ausência de explicação
anatómica alternativa; abcesso; deiscência parcial de novo de prótese valvular;
insuficiência valvular de novo).
Critérios menores:
1) Factor predisponente para EI;
2) febre;
3) fenómenos vasculares;
4) fenômenos imunológicos;
5) evidência microbiológica hemocultura positiva mas sem preencher os critérios
maiores previamente descritos.
O tratamento baseia-se num curso prolongado de antibióticos bactericidas,
geralmente entre quatro a oito semanas, por via endovenosa(1,2). Alguns estudos
referem que a administração de aspirina em baixas doses pode reduzir a
incidência de eventos embólicos e o tamanho da vegetação(1,7). O tratamento
cirúrgico está indicado quando há compromisso hemodinâmico com sinais de
insuficiência cardíaca, culturas persistentemente positivas apesar de
tratamento antibiótico adequado, aumento do tamanho da vegetação, sobretudo se
dimensões superiores a 10 mm e risco de embolização. A mortalidade nos RN com
EI permanece alta (alguns estudos referem atingir os 55%) e em grande parte
reflecte a população de alto risco que tipicamente afecta(1,2). Na população
pediátrica em geral varia entre 10 e 20%, na maioria dos estudos publicados(1).
A prevenção da infecção recorrente é importante, uma vez que após um episódio
de EI, o risco de recorrência é elevado.
CASO CLÍNICO
Recém-nascido do sexo masculino, pré-termo de 31 semanas, nascido de cesariana
por apresentar traçado cardiotocográfico patológico. O índice de Apgar foi de
5/8, ao primeiro e quinto minutos, respectivamente e o peso ao nascimento era
adequado à idade gestacional (peso:1305g). O ecocardiograma fetal efectuado às
25 semanas de idade gestacional foi normal (antecedentes maternos de epilepsia,
medicada até à oitava semana de gravidez com valproato de sódio). Foi internado
na unidade de cuidados intensivos neonatais com necessidade de ventilação não
invasiva no primeiro dia de vida, por doença das membranas hialinas. O rastreio
séptico realizado ao nascimento foi negativo, no entanto, com trombocitopenia
(plaquetas: 65.000/mm3), tendo necessitado de concentrado de plaquetas no
terceiro dia. Ao sétimo dia de vida apresentava 139.000/mm3 plaquetas e o
estudo efectuado excluiu causas mais comuns de trombocitopenia. Com 15 dias de
vida, por clínica de hipotonia e hiporreactividade efectuou rastreio séptico
que revelou um aumento da proteína C reactiva, desvio da fórmula leucocitária
para a esquerda e trombocitopenia (plaquetas:32.000/ mm3) com necessidade de
novo concentrado de plaquetas. Iniciou vancomicina e amicacina, tendo sido
isolado em duas hemoculturas distintas Staphylococus aureus, sensível aos
antibióticos prescritos. O cateter epicutâneo-cava introduzido ao sexto dia de
vida, para nutrição parentérica, foi nesta altura substituído. Ao 25º dia foi
detectado sopro sistólico grau II/VI, tendo o ecocardiograma mostrado coração
estrutural e funcionalmente normal, ponta do cateter insinuada na aurícula
direita e imagem hiperecogénica, móvel, na válvula tricúspide, com cerca de
8,5x4mm sugestiva de vegetação (Figura 1) e insuficiência tricúspide ligeira
(Figura 2). Por suspeita de endocardite bacteriana, completou oito semanas de
tratamento com vancomicina, duas semanas com gentamicina e cinco semanas com
rifampicina. Efectuou um mês de tratamento com ácido acetilsalicílico na dose
de 3 mg/kg/dia. As hemoculturas posteriores foram estéreis, a velocidade de
sedimentação manteve-se normal e a vegetação apresentou dimensões
sobreponíveis. Efectuou ecografias transfontanelares ao sexto e 16º dias que
mostraram hiperecogenicidade periventricular bilateral, sendo as ecografias
subsequentes normais. Manteve-se sempre hemodinamicamente estável e sem
intercorrências neurológicas ou respiratórias. Verificou-se normalização
sustentada do valor das plaquetas a partir do 53º dia de vida (250.000/mm3).
Teve alta ao 71º dia de vida, orientado para Consulta de Cardiologia
Pediátrica. Em ambulatório permaneceu sem sintomas cardiovasculares e
verificou-se uma redução gradual do tamanho da vegetação. Actualmente, com nove
meses de idade corrigida mantém à auscultação cardíaca sopro sistólico curto no
bordo esquerdo do esterno e apresenta vegetação com dimensões de 3x3mm.
Figura 1 'Imagem hiperecogénica, móvel, na válvula tricúspide, com cerca de
8,5x4mm sugestiva de vegetação
Figura 2 'Insuficiência tricúspide ligeira
DISCUSSÃO
A variabilidade e inespecificidade da apresentação clínica da EI no período
neonatal acarreta dificuldades e atraso no diagnóstico, a não ser que haja um
elevado grau de suspeição. Ecocardiogramas seriados são recomendados nos RN,
com sépsis hospitalar, internados numa Unidade de Cuidados Intensivos, com
colocação de cateter central, sobretudo se os agentes envolvidos são o
Staphylococcus aureusou fungos, mesmo na ausência de alterações de novo na
auscultação cardíaca. Após o diagnóstico de EI o cateter venoso central deve
ser removido e o tratamento com antibioticoterapia endovenosa deve ser iniciado
o mais precocemente possível. São necessárias doses mais elevadas de
antibióticos relativamente ao tratamento de uma sépsis hospitalar isolada, de
forma a penetrarem na vegetação. O tratamento cirúrgico está indicado nos
doentes com compromisso hemodinâmico, ausência de resposta ao tratamento
antibiótico, sinais de embolização e aumento do tamanho da vegetação
(dimensão>10mm).
No caso clínico apresentado, o quadro clínico de sépsis com isolamento de
Staphylococcus aureusnas hemoculturas, o aparecimento de sopro cardíaco/
insuficiência valvular de novo num RN pré-termo com colocação de cateter venoso
central e o ecocardiograma mostrando vegetação intracardíaca confirmaram o
diagnóstico.
Devido ao elevado risco cirúrgico nesta faixa etária, apesar do tamanho da
vegetação no final do tratamento antibiótico ser sobreponível ao inicial, o
facto do RN se ter mantido hemodinamicamente estável permitiu que se optasse
por uma atitude expectante. Foi-se verificando diminuição progressiva do
tamanho da vegetação, apresentando na última avaliação uma dimensão de 3x3mm,
pelo que se mantém sem terapêutica. Apesar do risco de recorrência e de
complicações embólicas ser pequeno atendendo às dimensões actuais da vegetação,
nunca pode ser eliminado.
Este caso raro de EI no período neonatal reforça a importância do conhecimento
dos factores de risco e dos sinais sugestivos deste diagnóstico, de forma a
instituir medidas terapêuticas adequadas e atempadas.