Febre de etiologia indeterminada: encruzilhada de diagnósticos
INTRODUÇÃO
Febre de etiologia indeterminada (FEI) define-se, em idade pediátrica, como uma
febre documentada por um profissional de saúde, sem causa identificada, e que
persiste após três semanas de investigação em ambulatório ou uma semana em
regime de internamento. A causa pode ser infecciosa, reumatológica e/ ou
imunológica, neoplásica, farmacológica, heredo-familiar, entre outras(1,2).
Para o diagnóstico diferencial é importante ter em conta o padrão da febre e
sintomas associados, antecedentes patológicos, contexto epidemiológico e um
exame objectivo pormenorizado, já que os resultados dos exames complementares
podem revelar-se inespecíficos.
CASO CLÍNICO
Criança do sexo masculino e raça caucasiana, quatro anos de idade, com
crescimento e desenvolvimento psicomotor normais, plano de imunizações
actualizado e antecedentes patológicos irrelevantes. História de
consanguinidade parental (pais primos em primeiro grau), sem doenças heredo-
familiares conhecidas. Agregado familiar nuclear (pais e duas irmãs), habitando
casa própria em zona urbana, com água canalizada e saneamento básico.
Recorreu ao Serviço de Urgência (SU) por um quadro de febre com quatro dias de
evolução (picos febris de três em três horas com temperatura axilar máxima de
40,2ºC), cervicalgia bilateral e coxalgia à esquerda. Foi referido episódio
semelhante ocorrido cerca de um mês antes, resolvido ao fim de 48 horas, num
contexto de amigdalite aguda medicada com penicilina. Negava traumatismos,
ingestão de medicamentos ou alimentos suspeitos, alergias, contacto com pessoas
doentes ou animais e viagens recentes. Ao exame objectivo apresentava limitação
dolorosa da mobilidade do pescoço e marcha com claudicação à esquerda, sem
outras alterações. Os exames realizados detectaram anemia (Hb 9,5 g/dL),
microcítica e normocrómica, leucocitose (15900/μL) com neutrofilia (77,9%),
plaquetas 349000/μL e PCR aumentada (131,9 mg/L); análise sumária de urina tipo
II e citoquímica do líquido cefalorraquidiano sem alterações; radiografia
pulmonar com discreto infiltrado intersticial bilateral e estudo imagiológico
dirigido inconclusivo (radiografia e TAC da coluna cervical e radiografias da
bacia, joelhos, tornozelos e pés). Decidiu-se o internamento para
esclarecimento etiológico.
Em internamento, a febre evoluiu com dois a três picos diários, de amplitude
variável (38,5ºC-40ºC), predomínio vespertino e nocturno e irritabilidade
associada. Manteve apetite conservado, sem vómitos ou diarreia, diurese normal,
ausência de sintomas respiratórios e melhoria progressiva das queixas álgicas
articulares. Foi-se evidenciando palidez muco-cutânea; exantema eritematoso
maculo-papular no tronco, fugaz, evidente em pico febril; olhos encovados sem
hiperémia conjuntival; lábios secos e fissurados e eritema da orofaringe, sem
exsudados; e gânglios cervicais palpáveis bilateralmente, com 1 cm de maior
diâmetro, indolores, de consistência elástica, não aderentes e sem sinais
inflamatórios externos. A partir do terceiro dia de internamento (D7 febre)
descreve-se um sopro cardíaco sistólico grau II/VI, mantendo auscultação
pulmonar normal e exame abdominal sem alterações. Neste dia foi avaliado por
Cardiologia Pediátrica, realizando ecocardiograma que não mostrou alterações. A
marcha normalizou após D6 internamento (D10 febre), mantendo sempre normal
mobilidade, activa e passiva, e ausência de edema ou outros sinais
inflamatórios das articulações da bacia e dos membros superiores e inferiores.
Apresentava, de forma intermitente, posição preferencial da cabeça em rotação
lateral direita, com rotação em bloco da cabeça e do tronco no olhar para a
esquerda; sem recorrência após D13 internamento (D17 febre).
Manteve marcadores inflamatórios elevados, com valor máximo de plaquetas de
652000/uL, ferritina 784,70 ng/mL, VS 108 mm/1ªh e PCR 132,8 mg/L. O estudo em
curso foi inconclusivo e incluiu rastreio infeccioso alargado, marcadores
neoplásicos, estudo imunológico, ecocardiograma (D3 internamento), ecografia
abdominal e das ancas e RMN cervical.
Em D13 de internamento (D17 febre), pela possibilidade de Doença de Kawasaki
incompleta ou atípica (DKa), uma nova avaliação por Cardiologia Pediátrica
evidenciou ectasia da artéria coronária esquerda (3 mm) com avaliação
electrocardiográfica normal, tendo iniciado Imunoglobulina endovenosa IGIV (2g/
kg) e AAS. No entanto a febre persistiu em picos isolados matinais (39ºC-40ºC),
pelo que dois dias depois foi avaliado em consulta de Reumatologia, invocando-
se o diagnóstico mais provável de apresentação sistémica de Artrite Idiopática
Juvenil (AIJs). Iniciou terapêutica com naproxeno e prednisolona, tendo alta em
D24 internamento, após cinco dias de apirexia sustentada. Nos seis meses de
seguimento seguintes apresentou alguns períodos intermitentes de febre, que
cederam após a introdução de terapêutica com metotrexato, sem outras alterações
clínicas, nomeadamente recaídas articulares ou uveíte. Nas análises de controlo
mantém valores normais de hemoglobina, leucócitos, plaquetas, VS, PCR,
ferritina e transaminases. Avaliações posteriores por Cardiologia (após uma,
seis e dezasseis semanas da primeira avaliação) indicam a persistência da
ectasia de 3 mm da artéria coronária esquerda, com paredes hiperecogénicas,
estando medicado com AAS em dose anti-agregante plaquetar.
DISCUSSÃO
Após a exclusão de outras causas de febre prolongada, pode tornar-se difícil o
diagnóstico diferencial entre AIJs e DKa. Existem aspectos clínicos,
laboratoriais e imagiológicos orientadores mas não suficientemente específicos.
A Artrite Idiopática Juvenil é a doença reumatológica mais comum na infância,
representando a forma sistémica cerca de 10% dos casos(3). Esta forma tem um
pico de incidência entre um e seis anos de idade, sem predominância de género.
Implica a presença de artrite em uma ou mais articulações, com febre precedente
ou coincidente com pelo menos duas semanas de evolução, documentada como
diária, em pelo menos três dias seguidos, e associada a um ou mais dos
seguintes sinais: exantema eritematoso evanescente, não fixo; adenomegalias
generalizadas, hepatomegalia e/ou esplenomegalia e serosite (pericardite,
pleurite e/ou peritonite). A artrite não é migratória e não causa dor muito
intensa, podendo afectar as articulações das mãos, punhos, joelhos, ancas,
coluna cervical e temporomandibular, geralmente de forma simétrica. É diferente
da artrite migratória e assimétrica da febre reumática e da dor óssea não
articular, intensa e nocturna, da leucemia. O padrão febril é característico,
com um ou dois picos diários, súbitos, de grande amplitude (≥ 39ºC), e que
rapidamente retorna à linha basal ou abaixo desta (≤ 37ºC), de predomínio
matinal ou vespertino. Inicialmente as crianças podem apresentar um «ar doente»
em pico febril, não se verificando este padrão quotidiano da febre. O exantema,
presente em 90% dos casos, é eritematoso, macular ou maculo-papular,
frequentemente descrito como rosa-salmão; mas que facilmente passa despercebido
já que é evanescente ou transitório, com tendência a aparecer em pico febril;
migratório; com uma distribuição linear no tronco e face interna dos braços e
coxas, deste modo poupando as zonas expostas. A hipersensibilidade cutânea ao
trauma superficial levando à recorrência do exantema é sugestiva (fenómeno de
Koebner). O exantema pode também recorrer com o calor, por exemplo, um banho
quente. Salienta-se que a clínica sistémica pode preceder a artrite em semanas
ou meses. Os achados laboratoriais são inespecíficos (anemia, leucocitose com
neutrofilia, trombocitose valores normais ou baixos de plaquetas devem orientar
para outro diagnóstico -, elevação da VS, PCR e ferritina sérica). Anticorpos
anti-nuclear (ANA) positivos encontram-se em 5-10% das crianças e o factor
reumatóide (FR) é geralmente negativo. (2,3)
A DKa, ao contrário da AIJ, é mais comum em crianças pequenas do que em
crianças mais velhas. Caracteriza-se pela presença de febre com duração igual
ou superior a cinco dias, associada a dois a três achados clássicos da Doença
de Kawasaki(4,5). Poliartralgias, com ou sem sinais de artrite, podem ocorrer
na fase aguda. Em adição, dados laboratoriais devem apontar para um quadro
inflamatório sistémico (VS ≥ 40 mm/h e PCR ≥ 30 mg/L), associados a outros
achados complementares como anemia, leucócitos > 15000/μL, plaquetas > 450000/
μL após sete dias de doença, TGP aumentada, albumina ≤ 3 g/dL e piúria estéril
com > 10 leucócitos/campo. A suspeita de Dka deve conduzir a uma avaliação por
Cardiologia. O ecocardiograma é essencial para avaliar a morfologia das
artérias coronárias presença de ectasias ou aneurismas, número, localização,
forma (saculares, fusiformes) e tamanho (pequenos <5mm e gigantes >8 mm), de
sinais indirectos de arterite (hiperecogenecidade perivascular), e de trombos
intravasculares ', função do ventrículo esquerdo, presença de insuficiência
valvular mitral ou aórtica, dilatação da origem da aorta e sinais de
pericardite com derrame pericárdico. Definem-se aneurismas coronários (AC),
segundo a classificação utilizada pelo Ministério Japonês da Saúde, quando o
diâmetro interno (DI) de um segmento coronário é 1,5 vezes superior ao DI do
segmento coronário adjacente, quando é visível irregularidade do lúmen vascular
(4,5) ou quando o DI coronário é >3 mm nas crianças com <5 anos ou >4 mm nas
crianças ≥5 anos de idade(4-7). Segundo a American Heart Association(AHA), a
sensibilidade diagnóstica pode ser aumentada usando-se como referência as
curvas dos valores normais do diâmetro das artérias coronárias em relação com a
área de superfície corporal, considerando que existe dilatação de um vaso se o
seu diâmetro apresenta um SDS ≥ 2,5 em relação à média(4,5).
Neste doente, pela persistência da clínica e inespecificidade dos exames
auxiliares de diagnóstico, foi necessário colocar a hipótese de DKa e pedir
avaliação por Cardiologia. Esta não é uma forma atenuada de Doença de Kawasaki
(DK) e tem o mesmo risco de originar o aparecimento de AC (15-25% dos casos não
tratados), constituindo a causa mais importante de cardiopatia adquirida nos
países desenvolvidos(4-6). O tratamento com IGIV nos primeiros dez dias diminui
a incidência de AC para cerca de 2%. Embora os aneurismas raramente se formem
antes deste período, alguma evidência de arterite pode estar presente numa fase
aguda e conduzir à suspeita de DKa. No entanto este não é um achado 100%
específico para DK, não devendo excluir outras condições. Estão descritos casos
de dilatação transitória das artérias coronárias em doentes com AIJs(8). Estará
associado ao aumento dos níveis circulantes de citoquinas pró-inflamatórias,
especialmente a interleucina 6, que conduz a um estado de inflamação vascular
sistémica. (8) Assim, em casos como o descrito, em que se identificou ectasia
coronária (DI da artéria coronária esquerda com um SDS> 2,5 para a superfície
corporal do doente de 0,7 m2) e mesmo com 10% de casos estimados de DK
refractários à IGIV; uma febre que não cede, ou a persistência ou
reaparecimento dos sinais de artrite (tipicamente auto-limitada na DK) devem
alertar para a possibilidade de AIJs(1,8).
O diagnóstico diferencial entre Dka e AIJs é difícil; a presença de dilatação
coronária na avaliação ecocardiográfica inicial não excluiu o diagnóstico de
AIJs, que deve ser colocado quando existe persistência de artrite e
refractariedade à terapêutica com IGIV.