Pâncreas heterotópico numa criança com Trissomia 8 em mosaico: uma associação
acidental?
INTRODUÇÃO
O Pâncreas heterotópico (PH) foi descrito pela primeira vez em 1727, aquando da
sua identificação num divertículo ileal(1). O PH é uma anomalia congénita rara,
que consiste em tecido pancreático diferenciado sem conexão anatómica ou
vascular com o pâncreas.
Em autópsias, a prevalência varia de 0,6 a 14%(2), localizando-se mais
frequentemente no antro gástrico, duodeno, jejuno e divertículo de Meckel(2). O
diagnóstico é difícil, porque raramente é sintomático. Contudo, pode tornar-se
clinicamente aparente quando surge alguma complicação, como inflamação,
hemorragia, obstrução ou transformação maligna(2). O diagnóstico pré-operatório
é particularmente difícil, porque na maioria dos casos os PH têm um aspecto
macroscópico similar aos tumores da camada submucosa, apresentando-se como
massas submucosas bem delimitadas com uma área de umbilicação central,
correspondendo esta última ao canal pancreático rudimentar(3).
CASO CLÍNICO
Criança do género masculino, fruto de uma segunda gestação e primeiro gémeo de
um casal jovem não-consanguíneo, com diagnóstico pré-natal de onfalocelo e
uropatia malformativa à esquerda relacionada com Trissomia 8 em mosaico (47,XY,
+8 / 46 XY). Parto às 34 semanas de gestação com somatometria adequada à idade
gestacional. No primeiro dia de vida, foi submetido a correcção cirúrgica de
onfalocelo e enterectomia, com exame histológico compatível com Divertículo de
Meckel.
De acordo com a cromossomopatia identificada no período pré-natal apresentava:
dismorfias faciais (fronte proeminente e larga, hipertelorismo e base nasal
alargada); atraso grave do desenvolvimento psicomotor; má evolução ponderal;
uropatia malformativa; cardiopatia congénita sem repercussão hemodinâmica
(defeito do septo ventricular e estenose apical pulmonar); e criptorquidia à
direita.
Aos três anos de idade, o doente recorreu ao serviço de urgência por vários
episódios de vómitos e hematemeses. Ao exame objectivo apresentava palidez
mucocutânea acentuada, sem outras alterações. Analiticamente de salientar uma
anemia ferropénica; a contagem plaquetária e o estudo sumário da coagulação não
revelaram alterações. A Endoscopia digestiva alta (EDA) mostrou uma tumefacção
submucosa polipóide, séssil, com umbilicação central, com cerca de 3 cm de
diâmetro, localizada à porção mais alta da pequena curvatura gástrica, junto à
transição do corpo gástrico para a parede posterior (Figura 1).
Figura 1 Endoscopia digestiva alta: tumefacção polipóide séssil na camada
submucosa gástrica com umbilicação central (ver seta) e coágulo recente (ver
cabeça de seta).
A tomografia axial computorizada (TAC) abdominal revelou um espessamento da
parede gástrica na pequena curvatura, sem invasão dos tecidos adjacentes. Foi
realizada ressecção cirúrgica, que decorreu sem intercorrências. O exame
histológico da peça cirúrgica (Figuras 2 e 3) foi compatível com PH com
arquitectura lobular. Posteriormente, o doente manteve-se assintomático.
Figura 2 Exame histológico da peça cirúrgica: Lóbulos pancreáticos
heterotópicos localizados na camada submucosa gástrica e recobertos por mucosa
gástrica de aspecto normal (H&E, ampliação original, x200).
Figura 3 Exame histológico da peça cirúrgica: Tecido pancreático normal
(ácinos, ductos e ilhéus de Langerhans) (H&E, ampliação original x 400).
DISCUSSÃO
O PH é definido pela presença de tecido pancreático fora da sua localização
anatómica habitual. Foram propostas duas teorias para a patogénese desta
entidade. Uma delas atribui a presença desta ectopia à migração de tecido
pancreático fetal e a outra à diferenciação errónea do epitélio da mucosa
gástrica em tecido pancreático(4).
A localização mais habitual do PH é o duodeno e o estômago, correspondendo a
70%-90%(2,5) de todos os casos. As lesões gástricas, na maioria dos casos,
estão confinadas ao antro (em 85%-95%), sendo a localização mais frequente a
grande curvatura gástrica(2,5). À semelhança do caso apresentado, o tecido
pancreático ectópico é identificado mais frequentemente na camada submucosa
(73%)(6).
A classificação histológica do PH de acordo com Heinrich (1909) inclui três
tipos. Em 1973, esta classificação foi modificada por Gaspar-Fuentes adquirindo
a sua forma final: Tipo I, heterotopia completa, que consiste em tecido
pancreático típico (ácinos, ductos e ilhéus); Tipo II, heterotopia canalicular,
composta apenas por ductos pancreáticos; Tipo III, caracterizada apenas por
ácinos (heterotopia exócrina); e tipo IV, apenas com ilhéus de Langerhans
(heterotopia endócrina)(7). Segundo esta classificação, este caso corresponde a
PH de Tipo I.
A grande maioria dos doentes com PH é assintomática. Quando presentes, os
sintomas são inespecíficos e dependentes do tamanho, localização e possíveis
complicações. Em 75% dos casos as lesões têm um tamanho inferior a 3 cm de
diâmetro(2,5), mas quando as dimensões são superiores a 1,5 cm apresentam maior
probabilidade de serem sintomáticas(7). Efectivamente o doente descrito
apresentava uma lesão gástrica com maior risco de sintomas (cerca de 3 cm de
diâmetro), que se tornou clinicamente evidente pelo aparecimento de uma
hemorragia digestiva.
A EDA revelou uma lesão submucosa com umbilicação típica; no entanto, este dado
não foi suficiente para estabelecer o diagnóstico, pela semelhança com os
tumores da submucosa. Tendo em conta a elevada percentagem de falsos negativos,
pela dificuldade em biopsar a camada submucosa, a biópsia endoscópica não foi
efectuada. A Ecoendoscopia seria um exame útil na avaliação da localização e
extensão da massa, evitando uma exérese mais extensa. No entanto, existem
importantes limitações na utilização desta técnica na população pediátrica e o
seu uso é ainda muito restrito(8).
São várias as opções terapêuticas disponíveis. No entanto, de acordo com a
maioria dos autores o tratamento cirúrgico deve ser realizado caso surjam
complicações e ainda pelo risco, ainda que baixo, de degeneração maligna destas
lesões na idade adulta(9). Neste caso, a TAC revelou uma lesão localizada, pelo
que foi realizada tumorectomia. Uma vez que os achados dos exames pré-
operatórios não foram específicos de PH o diagnóstico definitivo baseou-se no
exame histopatológico da peça cirúrgica. O Síndrome de Trissomia 8 em mosaico é
uma anomalia cromossómica relativamente comum, mas subdiagnosticada devido à
grande variabilidade fenotípica. Até à data não está descrita na literatura
relação entre o PH, ou outras malformações gastrointestinais, e esta
cromossomopatia(10).
Outro aspecto relevante é a associação já descrita entre o PH e várias
malformações gastrointestinais, incluindo a atrésia esofágica, o onfalocelo e o
divertículo de Meckel (as duas últimas presentes no doente apresentado). A
explicação para esta associação é ainda desconhecida, mas poderá envolver
alterações em moléculas de sinalização expressas durante o desenvolvimento do
tracto gastrointestinal e outros órgãos associados(10).
CONCLUSÕES
O PH é uma causa rara de hemorragia gastrointestinal, sendo mesmo, na maioria
dos casos, uma lesão assintomática. No entanto, deverá ser considerado como uma
etiologia possível, em particular nos doentes que apresentem outras
malformações gastrointestinais.
Até à data, a presença de PH em doentes com Trissomia 8 em mosaico não está
descrita na literatura, sendo esta a primeira descrição desta associação.
Assim, a relação causal desta cromossomopatia com esta entidade não pode ser
estabelecida.