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EuPTCVHe0872-07542012000200010

EuPTCVHe0872-07542012000200010

variedadeEu
Country of publicationPT
colégioLife Sciences
Great areaHealth Sciences
ISSN0872-0754
ano2012
Issue0002
Article number00010

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Pâncreas heterotópico numa criança com Trissomia 8 em mosaico: uma associação acidental?

INTRODUÇÃO O Pâncreas heterotópico (PH) foi descrito pela primeira vez em 1727, aquando da sua identificação num divertículo ileal(1). O PH é uma anomalia congénita rara, que consiste em tecido pancreático diferenciado sem conexão anatómica ou vascular com o pâncreas.

Em autópsias, a prevalência varia de 0,6 a 14%(2), localizando-se mais frequentemente no antro gástrico, duodeno, jejuno e divertículo de Meckel(2). O diagnóstico é difícil, porque raramente é sintomático. Contudo, pode tornar-se clinicamente aparente quando surge alguma complicação, como inflamação, hemorragia, obstrução ou transformação maligna(2). O diagnóstico pré-operatório é particularmente difícil, porque na maioria dos casos os PH têm um aspecto macroscópico similar aos tumores da camada submucosa, apresentando-se como massas submucosas bem delimitadas com uma área de umbilicação central, correspondendo esta última ao canal pancreático rudimentar(3).

CASO CLÍNICO Criança do género masculino, fruto de uma segunda gestação e primeiro gémeo de um casal jovem não-consanguíneo, com diagnóstico pré-natal de onfalocelo e uropatia malformativa à esquerda relacionada com Trissomia 8 em mosaico (47,XY, +8 / 46 XY). Parto às 34 semanas de gestação com somatometria adequada à idade gestacional. No primeiro dia de vida, foi submetido a correcção cirúrgica de onfalocelo e enterectomia, com exame histológico compatível com Divertículo de Meckel.

De acordo com a cromossomopatia identificada no período pré-natal apresentava: dismorfias faciais (fronte proeminente e larga, hipertelorismo e base nasal alargada); atraso grave do desenvolvimento psicomotor; evolução ponderal; uropatia malformativa; cardiopatia congénita sem repercussão hemodinâmica (defeito do septo ventricular e estenose apical pulmonar); e criptorquidia à direita.

Aos três anos de idade, o doente recorreu ao serviço de urgência por vários episódios de vómitos e hematemeses. Ao exame objectivo apresentava palidez mucocutânea acentuada, sem outras alterações. Analiticamente de salientar uma anemia ferropénica; a contagem plaquetária e o estudo sumário da coagulação não revelaram alterações. A Endoscopia digestiva alta (EDA) mostrou uma tumefacção submucosa polipóide, séssil, com umbilicação central, com cerca de 3 cm de diâmetro, localizada à porção mais alta da pequena curvatura gástrica, junto à transição do corpo gástrico para a parede posterior (Figura 1).

Figura 1 Endoscopia digestiva alta: tumefacção polipóide séssil na camada submucosa gástrica com umbilicação central (ver seta) e coágulo recente (ver cabeça de seta).

A tomografia axial computorizada (TAC) abdominal revelou um espessamento da parede gástrica na pequena curvatura, sem invasão dos tecidos adjacentes. Foi realizada ressecção cirúrgica, que decorreu sem intercorrências. O exame histológico da peça cirúrgica (Figuras 2 e 3) foi compatível com PH com arquitectura lobular. Posteriormente, o doente manteve-se assintomático.

Figura 2 Exame histológico da peça cirúrgica: Lóbulos pancreáticos heterotópicos localizados na camada submucosa gástrica e recobertos por mucosa gástrica de aspecto normal (H&E, ampliação original, x200).

Figura 3 Exame histológico da peça cirúrgica: Tecido pancreático normal (ácinos, ductos e ilhéus de Langerhans) (H&E, ampliação original x 400).

DISCUSSÃO O PH é definido pela presença de tecido pancreático fora da sua localização anatómica habitual. Foram propostas duas teorias para a patogénese desta entidade. Uma delas atribui a presença desta ectopia à migração de tecido pancreático fetal e a outra à diferenciação errónea do epitélio da mucosa gástrica em tecido pancreático(4).

A localização mais habitual do PH é o duodeno e o estômago, correspondendo a 70%-90%(2,5) de todos os casos. As lesões gástricas, na maioria dos casos, estão confinadas ao antro (em 85%-95%), sendo a localização mais frequente a grande curvatura gástrica(2,5). À semelhança do caso apresentado, o tecido pancreático ectópico é identificado mais frequentemente na camada submucosa (73%)(6).

A classificação histológica do PH de acordo com Heinrich (1909) inclui três tipos. Em 1973, esta classificação foi modificada por Gaspar-Fuentes adquirindo a sua forma final: Tipo I, heterotopia completa, que consiste em tecido pancreático típico (ácinos, ductos e ilhéus); Tipo II, heterotopia canalicular, composta apenas por ductos pancreáticos; Tipo III, caracterizada apenas por ácinos (heterotopia exócrina); e tipo IV, apenas com ilhéus de Langerhans (heterotopia endócrina)(7). Segundo esta classificação, este caso corresponde a PH de Tipo I.

A grande maioria dos doentes com PH é assintomática. Quando presentes, os sintomas são inespecíficos e dependentes do tamanho, localização e possíveis complicações. Em 75% dos casos as lesões têm um tamanho inferior a 3 cm de diâmetro(2,5), mas quando as dimensões são superiores a 1,5 cm apresentam maior probabilidade de serem sintomáticas(7). Efectivamente o doente descrito apresentava uma lesão gástrica com maior risco de sintomas (cerca de 3 cm de diâmetro), que se tornou clinicamente evidente pelo aparecimento de uma hemorragia digestiva.

A EDA revelou uma lesão submucosa com umbilicação típica; no entanto, este dado não foi suficiente para estabelecer o diagnóstico, pela semelhança com os tumores da submucosa. Tendo em conta a elevada percentagem de falsos negativos, pela dificuldade em biopsar a camada submucosa, a biópsia endoscópica não foi efectuada. A Ecoendoscopia seria um exame útil na avaliação da localização e extensão da massa, evitando uma exérese mais extensa. No entanto, existem importantes limitações na utilização desta técnica na população pediátrica e o seu uso é ainda muito restrito(8).

São várias as opções terapêuticas disponíveis. No entanto, de acordo com a maioria dos autores o tratamento cirúrgico deve ser realizado caso surjam complicações e ainda pelo risco, ainda que baixo, de degeneração maligna destas lesões na idade adulta(9). Neste caso, a TAC revelou uma lesão localizada, pelo que foi realizada tumorectomia. Uma vez que os achados dos exames pré- operatórios não foram específicos de PH o diagnóstico definitivo baseou-se no exame histopatológico da peça cirúrgica. O Síndrome de Trissomia 8 em mosaico é uma anomalia cromossómica relativamente comum, mas subdiagnosticada devido à grande variabilidade fenotípica. Até à data não está descrita na literatura relação entre o PH, ou outras malformações gastrointestinais, e esta cromossomopatia(10).

Outro aspecto relevante é a associação descrita entre o PH e várias malformações gastrointestinais, incluindo a atrésia esofágica, o onfalocelo e o divertículo de Meckel (as duas últimas presentes no doente apresentado). A explicação para esta associação é ainda desconhecida, mas poderá envolver alterações em moléculas de sinalização expressas durante o desenvolvimento do tracto gastrointestinal e outros órgãos associados(10).

CONCLUSÕES O PH é uma causa rara de hemorragia gastrointestinal, sendo mesmo, na maioria dos casos, uma lesão assintomática. No entanto, deverá ser considerado como uma etiologia possível, em particular nos doentes que apresentem outras malformações gastrointestinais.

Até à data, a presença de PH em doentes com Trissomia 8 em mosaico não está descrita na literatura, sendo esta a primeira descrição desta associação.

Assim, a relação causal desta cromossomopatia com esta entidade não pode ser estabelecida.


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