Eritroblastopenia transitória da infância: atitude expectante face a uma anemia
grave
INTRODUÇÃO
A Eritroblastopenia Transitória da Infância (ETI) é uma forma de anemia
arregenerativa temporária, descrita pela primeira vez em 1970(1,2). É uma
condição adquirida, auto-limitada e de instalação progressiva. Caracteriza-se
por supressão transitória da produção eritróide, com eritroblastopenia medular
e reticulocitopenia no sangue periférico, resultando numa anemia normocítica/
normocrómica moderada a grave(1-3).
A ETI afecta sobretudo crianças previamente saudáveis, com idades compreendidas
entre um e quatro anos, grupo etário em que ocorrem 80% dos casos(1,2). É uma
condição pouco frequente, com uma incidência estimada de 4,2 casos por 100000
crianças. No entanto, a incidência real é difícil de estabelecer, atendendo ao
número indeterminado de casos não diagnosticados com evolução sub-clínica(2).
A etiologia permanece por esclarecer, tendo sido propostos mecanismos
infecciosos e imunes(1,2). Em cerca de metade dos casos identifica-se uma
infecção vírica nos dois meses precedentes, sobretudo afectando o tracto
respiratório ou gastrointestinal. Contudo, o facto de não mostrar variação
sazonal bem como a elevada prevalência de infecções víricas neste grupo etário,
dificultam o estabelecimento desta relação causal(1-3). As infecções mais
frequentemente associadas com a ETI são as causadas por vírus herpes humano
tipo 6, ecovirus 11 e parvovírus B19. Outros mecanismos propostos relacionam-se
com a presença de inibidores séricos, como auto-anticorpos IgG direccionados
aos progenitores eritróides, ou a supressão da eritropoiese por mediação
celular(2-4). A descrição de vários casos familiares de ETI, incluindo em
gémeos monozigóticos, sugere a possibilidade da existência de uma predisposição
genética, resultando esta anemia de uma resposta anormal transmitida a um
desencadeante ambiental comum, como a presença de vírus ou toxinas(4-5).
A apresentação mais comum consiste em palidez e astenia de instalação
progressiva. O exame objectivo é inocente, para além das possíveis alterações
secundárias à anemia. A hemoglobina (Hb) pode atingir níveis entre 2 e 9 g/dl,
com média de 5,6 g/dl, associada a reticulocitopenia marcada(1). As outras
linhas celulares não são habitualmente afectadas, embora possa ocorrer em
alguns casos neutropenia ou trombocitose transitórias. O diagnóstico
diferencial faz-se com outras formas de anemia arregenerativa.
Tipicamente apresenta um curso benigno e auto-limitado, necessitando apenas de
vigilância da evolução clínica e analítica. O suporte transfusional raramente é
necessário, estando apenas indicado no caso de compromisso hemodinâmico(1,2). A
recuperação é completa e ocorre num período de um a dois meses. No momento de
diagnóstico, até 10% dos casos encontram-se já em fase de recuperação. A
recidiva de ETI é extremamente rara(1-3).
CASO CLÍNICO
Criança do sexo feminino, caucasiana, com três anos de idade, segunda filha de
pais jovens e não consanguíneos. Sem antecedentes patológicos ou familiares
relevantes. Admitida por um quadro com uma semana de evolução caracterizado por
sintomas das vias aéreas superiores, associados a febre e vómitos desde o dia
anterior ao internamento. Retrospectivamente, referência a palidez com um mês
de evolução, sem astenia para as actividades habituais. Foram negadas perdas
hemáticas e hábitos medicamentosos.
Ao exame objectivo apresentava palidez cutâneo-mucosa, evidenciando boa
vitalidade. A tensão arterial, frequência cardíaca e saturação transcutânea de
oxigénio eram normais. Na auscultação pulmonar eram audíveis roncos e
crepitações bilateralmente. A auscultação cardíaca era normal. Não apresentava
outras alterações ao exame objectivo, nomeadamente dismorfias, icterícia ou
organomegalias.
O estudo analítico inicial revelou anemia normocítica/normocrómica (hemoglobina
- 7,1 g/dl; MCV ' 75 fl; MCH ' 27 pg), associada a reticulocitopenia (3500
reticulócitos/mm3). O leucograma (11450 leucócitos/mm3) e a contagem de
plaquetas (348000 plaquetas/mm3) eram normais e não apresentava elevação da
proteína C reactiva (18,7 mg/L). O exame virulógico de secreções nasofaríngeas
foi positivo para Vírus Sincicial Respiratório (VSR). A hemocultura foi
negativa, bem como a pesquisa do vírus da gripe H1N1. A radiografia torácica
mostrava um infiltrado intersticial difuso, sem imagem de hipotransparência ou
alargamento do mediastino.
Na investigação subsequente, o esfregaço de sangue periférico não mostrava
alterações e os parâmetros bioquímicos de ferro eram normais (ferro sérico ' 72
μg/dl; saturação de transferrina ' 24%; ferritina ' 64 ng/ml). Não apresentava
marcadores de hemólise ou de sofrimento medular (sem macrocitose; hemoglobina F
normal) e a prova de Coombs directa era negativa. A eritropoetina encontrava-se
elevada (850 U/L, normal: 3,7-19.4 U/L), bem como a velocidade de sedimentação
(VS), 86 mm/h.
A doente ficou apirética a partir do segundo dia de internamento, com melhoria
progressiva da sintomatologia respiratória. Apresentou-se sempre
hemodinamicamente estável e com boa adaptação à anemia. Considerou-se como
diagnóstico mais provável a ETI, contudo decidiu alargar-se o estudo atendendo
à VS sustentadamente elevada. As serologias víricas para Parvovírus, Vírus
Epstein-Barr, Citomegalovirus, Vírus da Hepatite A, B e C e Vírus da
Imunodeficiência Humana foram negativas. O doseamento sérico de imunoglobulinas
e complemento encontrava-se nos limites da normalidade e o estudo de auto-
imunidade foi negativo. Realizou uma ecografia abdominal que não evidenciou
alterações.
Assumiu-se o diagnóstico de ETI e adoptou-se uma atitude conservadora, com
vigilância da evolução clínica e analítica. Apresentou evolução favorável com
normalização da VS, recuperação da produção eritrocitária, com emergência de
reticulócitos a partir do sétimo dia, e resolução espontânea da anemia ao fim
de três semanas (Quadro 1).
Quadro 1 Evolução analítica durante o tempo de seguimento
DISCUSSÃO
Considerando o grupo etário, a ausência de antecedentes, a apresentação clínica
e, posteriormente, conhecida a evolução benigna, trata-se de um caso clássico
de ETI. Contudo, no momento da apresentação é importante o rigoroso diagnóstico
diferencial com outras causas de anemia. A abordagem inicial corresponde ao
estudo de uma anemia de causa desconhecida, com recurso à história clínica,
exame objectivo e um estudo analítico básico.
A presença de anemia associada a reticulocitopenia caracteriza-a como anemia
arregenerativa, cujo diagnóstico diferencial se apresenta no Quadro 2(1,2).
Tendo em conta este diagnóstico diferencial, as causas que cursam com
diminuição da produção de eritropoetina ficaram desde logo excluídas. O
mecanismo de substituição medular era improvável, pela benignidade do esfregaço
de sangue periférico e pelo atingimento apenas da linhagem rubra. A aplasia
rubra congénita era também pouco provável atendendo ao grupo etário, quadro
clínico sub-agudo e à ausência de marcadores de sofrimento medular. Esta anemia
enquadrava-se numa aplasia rubra adquirida e, considerando o contexto clínico,
na ETI.
Quadro 2 Diagnóstico diferencial da anemia arregenerativa
Neste caso, realizou-se um estudo mais alargado pela presença de uma VS
sustentadamente elevada. Nos casos típicos de ETI, um estudo compatível que
inclua hemograma com contagem de reticulócitos, esfregaço de sangue periférico,
marcadores de hemólise, parâmetros bioquímicos de ferro, eritropoetina e,
eventualmente, serologias víricas, é suficiente para o diagnóstico(2,6). O
mielograma e biopsia medular podem não ser necessários nos casos
característicos. Contudo, a sua realização deve ser fortemente considerada nos
doentes em que subsistem dúvidas quanto ao diagnóstico definitivo, nomeadamente
na suspeita de aplasia rubra congénita ou anemia por substituição medular(1,2).
A doente apresentava também uma infecção respiratória por VSR, que não parece
ter relação causal com a ETI pela ordem temporal das queixas. Contudo, terá
contribuído para o diagnóstico por motivar a procura de cuidados médicos. De
outra forma, a ETI poderia ter decorrido de forma sub-clínica e não ser
reconhecida.
A apresentação deste caso clínico pretendeu relembrar esta entidade
relativamente incomum e sub-diagnosticada, que pode cursar com anemia grave
mas, tipicamente, com evolução benigna e auto-limitada. O suporte transfusional
raramente é necessário, não estando também indicada a corticoterapia(1,6). A
ETI deve ser sempre considerada nos casos de anemia normocítica/normocrómica
com reticulocitopenia em crianças previamente saudáveis, sobretudo no grupo
etário entre um e quatro anos. O reconhecimento e melhor compreensão da
história natural desta doença podem evitar o recurso a procedimentos
diagnósticos e terapêuticos desnecessários.