Morbilidades futuras
Morbilidades futuras
Ana Cristina Braga1
1Assistente Hospitalar Graduada de Pediatria, S. Neonatologia, U Maternidade
Júlio Dinis, CH Porto
Durante o desenvolvimento intrauterino o embrião humano aumenta o comprimento
5000 vezes, a superfície corporal 60 milhões de vezes e o peso 6 mil milhões
de vezes (1). O genoma fetal determina o potencial de crescimento in utero,
mas o principal determinante do crescimento realmente atingido é o ambiente
nutricional e hormonal em que o feto se desenvolve (2). A restrição de
crescimento intrauterino (RCIU), que se estima atinja cerca de 5% das gestações
(3) é, cada vez mais, encarada como um processo fisiológico de adaptação a um
meio desfavorável. O crescimento num ambiente de privação leva a adaptações
metabólicas e circulatórias que, embora possam ter consequências desfavoráveis
no futuro, são importantes para a sobrevivência fetal (4). Este processo
representa aquilo a que Lucas se refere como programação: um insulto sofrido
numa fase crítica do desenvolvimento pode resultar num efeito duradouro da
estrutura ou da função do organismo (5).
O peso é, isoladamente, uma medida pobre do crescimento intrauterino. A adição
do comprimento e do perímetro cefálico permite definir diferentes padrões de
crescimento que têm diferentes consequências a longo prazo (6).
CONSEQUÊNCIAS METABÓLICAS
Estudos animais e em recém-nascidos (RN) leves para a idade de gestação (LIG)
mostraram existir associação entre RCIU, resistência à insulina e aparecimento
na vida adulta de hipertensão arterial, obesidade, diabetes mellitus tipo 2 e
dislipidemia (síndrome metabólico). Estudos posteriores em RN prematuros,
adequados e leves para a idade de gestação, confirmaram que a prematuridade
aumenta também a resistência à insulina, com todas as referidas consequências
futuras (7,8). O mecanismo fisiopatológico responsável pelas alterações
metabólicas será o mesmo na restrição de crescimento intrauterino e na
prematuridade, diferindo apenas no momento (intra ou extrauterino) da
exposição a condições desfavoráveis.
Em resposta à carência nutricional o feto diminui a sua dependência da
glicose, e aumenta a oxidação de outros substratos, nomeadamente aminoácidos e
lactato. A resistência periférica à insulina, que surge como mecanismo
poupador de glicose, pode perpetuar-se na vida adulta. Por outro lado, com a
menor disponibilidade de nutrientes, diminui a produção de hormonas anabólicas-
insulina, IGF-1 e hormona do crescimento - e aumenta a de hormonas
catabólicas, nomeadamente glicocorticóides (6).
Também o ganho ponderal pós-natal é um componente importante na programação de
doenças no adulto. Estudos epidemiológicos, clínicos e experimentais em
animais realizados em todo o mundo têm demonstrado que existe uma associação
entre crescimento lento pré-natal, aceleração do crescimento na fase precoce da
vida, e o aparecimento posterior de intolerância à glicose, resistência à
insulina, diabetes tipo 2, obesidade e doença cardiovascular (9,10). A
discordância entre o fenótipo fetal, desenvolvido na adaptação a um ambiente
desfavorável, e o ambiente nutricional pós-natal tem consequências metabólicas
adversas (10). Investigadores compararam, durante a infância e adolescência,
indivíduos nascidos prematuramente que receberam fórmulas para prematuros com
outros alimentados com leite humano ou fórmula para lactentes. Concluiram que
aqueles que receberam fórmula com maior densidade calórica e proteica
obtiveram resultados desfavoráveis no perfil lipídico, pressão arterial e
resistência à leptina e insulina, estabelecendo uma relação entre alimentação
precoce e obesidade futura (11,12).
Factores genéticos poderão também dar o seu contributo no desenvolvimento de
complicações metabólicas em indivíduos leves para a idade de gestação.
Investigação realizada pelo Auckland Birthweight Collaborative study mostrou
uma maior prevalência de factores genéticos associados à obesidade e/ou risco
de diabetes tipo 2 nos indivíduos nascidos leves do que nos adequados à idade
de gestação (13).
NEURODESENVOLVIMENTO
Crianças que sofreram RCIU apresentam mais alterações do neurodesenvolvimento
do que os seus pares com a mesma idade de gestação mas peso adequado à idade.
Estudos em que o controle é feito com crianças com o mesmo peso ao nascimento
(e portanto de menor idade de gestação) não revelam esta diferença (14). A
presença de outros aspectos com implicações no neurodesenvolvimento, como a
prematuridade, a inclusão de crianças constitucionalmente pequenas, ou a causa
e o tipo de RCIU, dificultam a identificação da responsabilidade da RCIU no
prognóstico destes indivíduos.
Tradicionalmente é atribuído pior prognóstico às crianças com restrição
simétrica do crescimento, por se considerar que esta foi mais duradoura, mais
grave e de instalação mais precoce. Recentemente a RMN cerebral tem revelado
atingimento do crescimento cerebral mesmo quando o perímetro cefálico está
conservado, mostrando que crianças com restrição assimétrica podem ter um
desenvolvimento cerebral anormal, apesar do aparente fenótipo de preservação
cerebral (15). Têm sido demonstradas alterações estruturais cerebrais em
prematuros com RCIU. Além da redução do volume intracraniano e da substância
cinzenta, parece haver uma vulnerabilidade cerebral regional que atinge
sobretudo o hipocampo e os lobos límbico e frontal. À medida que se dá a
maturação do SNC estas alterações podem levar ao desenvolvimento de um perfil
neuropsicológico particular (16). O seguimento desta população até à idade
adulta tem permitido identificar alterações subtis do neurodesenvolvimento em
indivíduos com QI normal e uma maior incidência de défice de atenção-
hiperactividade e impulsividade (15).
O padrão de crescimento extrauterino também se relaciona com o desenvolvimento.
Crianças que recuperam o crescimento (catch-up growth) têm os melhores
resultados. Cerca de 10% das RCIU não fazem esse catch-up, havendo autores
que sugerem que nestas crianças haverá uma resistência ao IGF-1 e à hormona de
crescimento (HC) (15). Estudos demonstram melhoria do QI, comportamento e auto-
estima em crianças tratadas com HC.(17).
CONSEQUÊNCIAS RESPIRATÓRIAS
Tem sido aceite que recém-nascidos com restrição de crescimento, devido ao
stress sofrido in utero, têm um melhor prognóstico respiratório. Contudo a
restrição de crescimento intrauterino é descrita como um factor de risco
independente para o desenvolvimento de displasia broncopulmonar (DBP) (18). A
DBP é uma das principais morbilidades associadas ao intensivismo neonatal. Cada
vez mais se reconhece que há alterações na fisiopatologia da doença, com alguns
RN a desenvolverem DBP não precedida de Síndrome de Dificuldade Respiratória do
RN nem de ventilação mecânica; é neste grupo de crianças que a RCIU pode ter
responsabilidade etiológica (19), embora nem todos os estudos estabeleçam esta
relação. Pensa-se que os processos que limitam o crescimento fetal poderão
também limitar o crescimento e maturação pulmonar: desequilíbrio entre factores
angiogénicos e anti-angiogénicos, hipóxia fetal/pulmonar crónica, alteração do
meio bioquímico pulmonar com redução da produção de surfactante (18).
Pieira e infecções respiratórias são mais comuns nas crianças que sofreram
RCIU. O seguimento destas crianças tem mostrado que a sua função pulmonar é
significativamente diferente da das crianças nascidas com peso adequado à
gestação, apresentando um aumento da resistência das vias aéreas (20). Os
volumes pulmonares, pelo contrário, relacionam-se não com o peso ao nascimento
mas com o peso na data da observação.
Consequências renais
Estudos têm mostrado que o peso ao nascimento é um forte determinante do
volume renal, do número de nefrónios e do tamanho glomerular. A malnutrição
fetal na fase tardia da gestação, fase de rápido crescimento renal, leva a uma
diminuição desse crescimento e a uma consequente diminuição do número de
células renais; esta poderá ser permanente uma vez que após o nascimento parece
não haver capacidade de replicação celular renal para catch-up (6). A menor
massa renal e menor número de nefrónios associados ao baixo peso ao nascimento
tornam o rim mais susceptível à lesão, favorecem o desenvolvimento de HTA e a
evolução para doença renal crónica. O aumento da pressão capilar e
hiperfiltração levam à hipertrofia glomerular, hipertensão intraglomerular e
hipertensão sistémica, dando início a um ciclo de lesão glomerular progressiva
(21).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A subnutrição fetal programa a resistência à insulina e a diabetes tipo II, o
que significa que as sementes da diabetes na próxima geração foram lançadas e
são já aparentes nas crianças de hoje (6).
Estabelecida uma relação entre RCIU (e, em menor medida, também a
prematuridade) e doenças do adulto, justifica-se a vigilância destas crianças
até à vida adulta. A identificação dos indivíduos em risco numa fase pré-clínica
permitirá a tomada de medidas que impeçam ou atrasem a manifestação da doença
(22).
As políticas de saúde devem intensificar esforços em medidas que promovam um
adequado crescimento intrauterino e nutrição pósnatal, estimulando o
aleitamento materno. Evita-se assim dilemas como promover ou não a rápida
recuperação do crescimento durante a infância (23).
Crianças com RCIU, nascidas de termo ou prétermo, têm risco aumentado de
alterações do desenvolvimento. Outros factores, como a prematuridade ou as
condições sociais adversas, frequentemente coexistem e têm efeito prognóstico
aditivo. A vigilância do seu neurodesenvolvimento deve ser portanto
assegurada, de forma a garantir-se a optimização dos resultados (15).