Infeção do trato urinário: agentes etiológicos e padrão de resistência local
INTRODUÇÃO
A infeção do trato urinário (ITU) é das infeções bacterianas mais frequentes
nos lactentes e crianças do mundo desenvolvido. Existe maior incidência no sexo
masculino no primeiro ano de vida e posteriormente uma predominância no sexo
feminino (1-4). Nos últimos anos, o paradigma da necessidade de investigação
exaustiva de anomalias no rim e árvore excretora após ITU mudou, passando a ser
mais criterioso, colocando ainda em causa o benefício da instituição de
terapêutica profilática. No entanto, é consensual a importância do diagnóstico
e tratamento precoces da ITU de forma a prevenir as lesões no parênquima renal
e possíveis sequelas a longo prazo nomeadamente a hipertensão, doença renal
crónica e complicações durante a gravidez (1-5). O tratamento deve ser iniciado
de imediato, de forma empírica, tendo em conta os agentes mais prevalentes e
posteriormente adequado conforme os resultados da urocultura e teste de
sensibilidade antibiótica. O conhecimento dos agentes mais prevalentes a nível
local e o seu padrão de resistências permite um maior êxito no tratamento da
ITU (1-16).
OBJETIVOS
Caracterizar os microrganismos responsáveis por infeções urinárias em crianças
e a respetiva suscetibilidade aos antibióticos, no nosso hospital.
MATERIAL E MÉTODOS
Foram analisados os resultados das uroculturas através do Serviço de Patologia
Clínica do Hospital Santo António e foram consultados os respetivos processos
clínicos de doentes com idade inferior ou igual a 18 anos no período
compreendido entre Janeiro de 2009 e Junho de 2010, englobando doentes
internados e em ambulatório das unidades Hospital Santo António, Maternidade
Júlio Dinis e Hospital Maria Pia. Foi considerada urocultura positiva o
isolamento de um único agente em contagem de colónias ≥ 105UFC/mL se colhido
por jacto médio ou saco colector, ≥104UFC/mL se colhida por cateterismo vesical
e ≥ 1 colónia se obtida por punção supra-púbica. As variáveis analisadas foram
a idade, sexo, tipo de ITU (pielonefrite definida na presença de bacteriúria,
febre (Tº ≥38ºC) e ou dor lombar e cistite se bacteriúria e sintomas urinários
baixos na ausência de sintomas sistémicos), patologias associadas, agente
etiológico e respetivo antibiograma. Pelas suas especificidades, foram
excluídos os doentes com bexiga neurogénica ou submetidos a transplante renal;
A restante amostra foi analisada independentemente da presença ou não de
uropatia associada. A análise dos dados foi efetuada através do programa sigma-
stat 3.5, análise descritiva básica e análise estatística através do método X2e
Mann-Whitney Test.
RESULTADOS
No período compreendido entre Janeiro de 2009 e Junho de 2010 foram
identificados agentes em 537 uroculturas; destas excluíram-se 150 por contagem
insuficiente de colónias ou resultado não valorizado e 130 por corresponderem a
doentes com bexiga neurogénica ou relativas a doentes submetidos a transplante
renal.
Foram analisadas 257 uroculturas correspondentes a 176 doentes, com
predominância do sexo feminino (68%). Setenta doentes (39,7%) apresentavam
uropatia (refluxo vesico-ureteral, instabilidade vesical ou outra malformação
nefro-urológica). Do total da amostra, 80% correspondiam a doentes provenientes
do ambulatório. Em relação ao tipo de ITU, correspondeu a cistite em 63%,
pielonefrite em 23% e em 14% não foi possível a sua classificação. A idade
média foi cinco anos e meio e a mediana foi quatro anos. A mediana de idades
dos doentes com pielonefrite (11,5 meses) foi menor que os doentes com cistite
(91,5 meses) (Mann-Whitney Testp<0,001). Ocorreu preponderância do sexo
masculino no primeiro ano de vida com inversão desta distribuição após o ano
(Figura 1).
Figura 1 'Distribuição do número de uroculturas positivas por idade e sexo
O agente etiológico predominante foi a E. coli(55%), seguida de Proteus
mirabilis(16%) e Klebsiella pneumoniae(14%) (Figura 2). A resistência à
ampicilina foi elevada (59%), seguida dos fármacos geralmente usados na
profilaxia, cotrimoxazol 37% e nitrofurantoina 26%. O grupo de fármacos com
resistência inferior a 10% incluiu o ceftriaxone, ceftazidime e gentamicina. De
entre os fármacos geralmente seleccionados para tratamento acima dos três
meses, a resistência foi de 22% para a cefuroxime acetil e para o cefaclor e de
18% para a associação amoxicilina/ácido clavulânico. A diferença no padrão de
resistência entre a associação amoxicilina/ácido clavulânico e o cefuroxime não
teve significado estatístico (X2p=0,082). A análise dos resultados nos doentes
acima dos três meses de idade foi sobreponível à do total da amostra (Figura
3).
Figura 2 'Agentes isolados nas uroculturas (%)
Figura 3 'Resistência aos antibióticos testados: global e com idade superior a
3 meses
CONCLUSÕES
A distribuição etária com predominância do sexo masculino no primeiro ano de
vida e posterior inversão desta distribuição está de acordo com a literatura
(1-4). A E. colifoi o agente mais frequentemente isolado (55%) embora num valor
inferior ao geralmente descrito em outras séries nacionais e internacionais
(>70%) (1-11, 13-17). Este facto poderá ser explicado pela presença na nossa
amostra de 39,7% de doentes com uropatia, implicando um maior risco de infeções
por outros agentes.
À semelhança de outros estudos realizados em Portugal(6-11,13-16), constata-se
uma elevada resistência à ampicilina, pelo que o seu uso isolado no tratamento
da ITU não é recomendado.
O ceftriaxone, ceftazidime e gentamicina apresentam valores de resistência
baixo (<10%) e devem ser reservados para as situações clínica cuja gravidade ou
idade justifiquem o seu uso.
As resistências relativamente elevadas ao cotrimoxazol (37%) e à
nitrofurantoína (26%) prendem-se com o seu uso na quimioprofilaxia da ITU. Por
este motivo os fármacos usados em profilaxia, bem como o recurso a algum
antibiótico usado no último mês não devem ser utilizados como primeira opção no
tratamento empírico (13).
O valor relativamente elevado das resistências antibióticas constitui uma
preocupação e merece reflexão sobre o uso criterioso dos antibióticos.
As comparações com outras séries devem ter em atenção que a idade das
populações em diferentes estudos varia; a nossa amostra inclui crianças e
adolescentes até aos 18 anos de idade, doentes com antecedentes de ITU e
possivelmente com o recurso a um maior número de antibióticos.
Uma das limitações do nosso estudo foi o facto de não termos analisado
separadamente os doentes com ITU´s recorrentes, associadas ou não a uropatia
malformativa. Apesar disso, a resistência aos antibióticos de primeira linha
manteve-se baixa.
A escolha do fármaco de primeira linha no tratamento da ITU deve ter em conta
os agentes mais prevalentes e o padrão de resistência local, encontrando-se
estudos nacionais que recomendam a associação da amoxicilina com ácido
clavulânico (7,8,15,16), a cefuroxime acetil (6,9,14)ou ambos (10)(Tabela 1).
Tabela 1' Estudos nacionais relacionados com agentes etiológicos de ITU e
padrão de resistência antibiótica
No nosso estudo, a amoxicilina/ácido clavulânico e a cefuroxime acetil
apresentam um valor de resistência que se pode considerar semelhante. No
entanto, dada a longa experiência da nossa instituição com o uso da associação
amoxicilina/ácido clavulânico com bons resultados clínicos e pela noção da má
adesão terapêutica à cefuroxime acetil per osparece-nos boa prática mantermos a
primeira escolha.