HEMORRAGIA DIGESTIVA POR FÍSTULA AORTO-ENTÉRICA: 3 CASOS
INTRODUÇÃO
A Fístula Aorto-Entérica (FAE) é uma comunicação
entre a aorta abdominal e uma ansa intestinal.
Trata-se de uma entidade rara cuja incidência varia entre
0,6 e 2,4% em indivíduos sujeitos a cirurgia da aorta
abdominal (1). Classifica-se como primária se não existir cirurgia aórtica prévia; ou secundária, se ocorrer após
procedimento cirúrgico, sendo esta última variante a
mais frequente (2).
O local mais comum para a ocorrência de FAE é o duodeno (78%), particularmente as suas terceiras e quartas
porções, embora se possa observar o fenómeno a outros
níveis do tubo digestivo tais como o jejuno, íleo, cólon,
estômago, apêndice ileo-cecal e recto (3).
Condições responsáveis pelo desenvolvimento de FAE
primária incluem os aneurismas da aorta abdominal, a
aortite infecciosa (Sífilis, Tuberculose), os traumatismos
abdominais, úlcera péptica perfurante, invasão tumoral e
radioterapia (3). As condições responsáveis pela FAE
secundária apresentam um denominador comum: cirurgia aórtica reconstrutiva prévia, nomeadamente a cirurgia de reparação de aneurismas da aorta abdominal e os
by-pass aorto-aórtico, aorto-ilíaco e aorto-femural.
A FAE encontra-se associada a altas taxas de mortalidade, sendo esta de aproximadamente 100% nos casos
não diagnosticados e cerca de 50% após correcção cirúrgica (1,4). De salientar que a FAE secundária pode manifestar-se meses ou mesmo anos após a cirurgia aórtica.
A apresentação clínica mais frequente é a hemorragia
digestiva, sob a forma de hematemeses, melenas ou
hematoquézia, podendo surgir como uma hemorragia
maciça com repercussão hemodinâmica e choque hipovolémico ou como uma hemorragia de pequena magnitude auto-limitada a que se pode seguir uma hemorragia
de grande magnitude.
Outra forma de apresentação é um quadro séptico no
contexto de uma infecção da endoprótese, sendo os
agentes mais frequentemente implicados (em 75% dos
casos) o Staphylococcus aureus, Staphylococcus epider-
midis e a Escherichia coli.
Cerca de 50% dos pacientes apresentam dor abdominal
ou lombar, mal-estar geral e febre. Raramente é possível palpar uma massa abdominal ou detectar um sopro
abdominal.
O diagnóstico, por ser de exclusão, requer um elevado
índice de suspeição e deve, nos doentes hemodinâmicamente estáveis, incluir a endoscopia digestiva alta e
baixa, se a primeira for inconclusiva. A endoscopia alta
deve atingir a porção de duodeno tão distal quanto possível pois é nesses segmentos que se verifica mais frequentemente a ocorrência de FAE (5). A enteroscopia
pode permitir a observação de uma área mais extensa
aumentando a probabilidade de detectar defeitos de
mucosa, úlceras ou coágulos aderentes que correspondam ao local da FAE. A TC abdominal contrastada em
fase arterial constitui uma mais-valia em termos diagnósticos (6), revelando-se superior à informação
fornecida pela angiografia.
A laparotomia exploradora está indicada nos casos de
hemorragia maciça ou nos casos em que após um estudo
exaustivo com os exames convencionais indicados para
esta condição não se identifica a origem da hemorragia.
O tratamento da FAE é cirúrgico exigindo uma reconstrução vascular extensa baseada em novas técnicas que
utilizam suturas não-absorvíveis cobertas por peritoneo
bem como utilização de próteses endovasculares, podendo requerer antibioterapia se houver infecção comprovada (7,8).
CASO CLÍNICO I
J.C.S., sexo masculino, 64 anos, recorreu ao Hospital
Distrital de Faro em Junho de 2002 na sequência de
hematemeses e melenas com 24 horas de evolução,
acompanhadas de um episódio de lipotímia. Neste intervalo de tempo negava dor abdominal, precordialgia,
dispneia e "alterações do trânsito intestinal". Negava
consumo de AINE's e terapêutica com agentes anticoagulantes.
O doente referia a realização de by-pass aorto-bifemural
por aneurisma da aorta, intervenção realizada em 1998;
e ainda HTA controlada com antagonistas dos canais de
cálcio.
Objectivamente o doente apresentava-se consciente e
colaborante, com palidez de pele e mucosas, hemodinâmicamente estável, sem alterações na auscultação
cardio-pulmonar, bem como no exame abdominal, verificando-se a existência de melenas no toque rectal.
Analiticamente destacava-se anemia normocrómica normocítica (Hb: 10,5 g/dL - N: 12,0 - 15,0 g/dL) e leucocitose com neutrofilia (21,000/ L - N: 4000-11,000 - com
86% de PMN). O valor do azoto ureico era normal (8
mg/dL - N: 4- 16 mg/dL).
Foi submetido a endoscopia digestiva alta que para além
de constatar a existência de sangue digerido e coágulos
no lúmen gástrico, verificou uma lesão na 3ª porção do
duodeno na qual se observava um coágulo aderente e, na
sua porção mais inferior um segmento de uma malha
metálica - Figura 1.
Face a este achado endoscópico, tendo em conta os
antecedentes do paciente, decidiu-se transferir o mesmo
para o Serviço de Cirurgia Vascular do Hospital de
Santa Maria por suspeita da existência de FAE.
Neste serviço o doente foi submetido a laparotomia
exploradora que verificou existir uma fístula entre a
aorta abdominal e a 3ª porção do duodeno, corrigida no
mesmo tempo operatório. O doente iniciou alimentação
entérica no 12º dia do pós-operatório e ao 16º dia apresentava restabelecimento do trânsito intestinal.
CASO CLÍNICO II
A.C.S., sexo masculino, 59 anos, recorreu ao Hospital
Distrital de Faro em Julho de 2002 por hematemeses e
melenas com 24 horas de evolução. Sem qualquer sintomatologia acompanhante.
O doente negava o consumo de AINE's e terapêutica
com agentes anticoagulantes.
Relativamente aos seus antecedentes o doente refere a
realização de by-pass aorto-bifemural por doença
aterosclerótica em Fevereiro de 2000.
Objectivamente o doente apresentava-se consciente e
colaborante, hidratado, com pele e mucosas descoradas,
taquicardico com tensão arterial dentro dos limites da
normalidade, sem alterações na auscultação cardíaca e
pulmonar, bem como no exame abdominal. Melenas no
toque rectal.
Analiticamente destacava-se anemia normocrómica normocítica (Hb: 10,8 g/dL- N: 12,0 - 15,0 g/dL ) e leucocitose (21.000/ L- N: 4000-11.000). Apresentava elevação
do azoto ureico (28 mg/dL - N: 4- 16 mg/dL).
O paciente efectuou endoscopia digestiva alta que identificou ao nível da transição entre as 2ª e 3ª porções do
duodeno uma lesão escavada com um coágulo escuro
aderente com pulsatilidade.
Perante este achado endoscópico e tendo em linha de
conta os antecedentes cirúrgicos do paciente decidiu-se
transferir o mesmo para o Serviço de Cirurgia Vascular
do Hospital de Santa Marta por suspeita de FAE.
Já nesta unidade hospitalar o doente faleceu após nova
hemorragia de grande magnitude, quando tinha laparotomia exploradora programada.
CASO CLÍNICO III
F.S.S.L., sexo masculino, 79 anos, enviado ao Serviço de
Urgência do Hospital Distrital de Faro em Agosto de
2002 por hematoquézias de sangue vivo com 4 dias de
evolução. Sem qualquer sintomatologia acompanhante.
Em relação aos antecedentes o doente refere cirurgia de
by-pass aorto-aórtico por aneurisma da aorta abdominal
em 2001, cardiopatia isquémica e Hipertensão Arterial,
encontrando-se medicado com Ácido Acetilsalicílico
(100 mg/dia), Enalapril e Nitratos transdérmicos.
Objectivamente o doente apresentava-se consciente e
colaborante, hidratado, com pele e mucosas descoradas,
hemodinâmicamente estável, sem alterações na auscultação cardíaca e pulmonar, verificando-se dor à palpação
profunda do flanco e fossa ilíaca esquerdos, mas sem
sinais sugestivos de irritação peritoneal. O toque rectal
identificou a presença de coágulos de sangue escuro.
Analiticamente destacava-se anemia normocrómica normocítica (Hb: 10,8 g/dL - N: 12,0 - 15,0 g/dL) e elevação
do azoto ureico (31 mg/dL - N: 4- 16 mg/dL).
Efectuou videosigmoidoscopia com progressão até aos
30 cm, observando-se sangue vivo em toda a extensão
observada. Subsequentemente foi realizada colonoscopia com progressão até ao cego, mas este exame revelou-se inconclusivo quanto à origem da hemorragia
devido à existência de sangue vivo no lúmen, repetindose ulteriormente a colonoscopia que, uma vez mais, não
identificou a origem da hemorragia apesar da preparação
adequada. Foi efectuado um Rx do intestino delgado que
não evidenciou qualquer alteração. Também foi realizada endoscopia digestiva alta cujas alterações observadas
foram algumas lesões petequiais no antro gástrico, mas
sem estigmas de hemorragia ou sangue no lúmen.
No decurso do internamento o doente teve um episódio
de tonturas e hipersudorese acompanhado de palidez e
hipotensão (106/38 mm Hg), sem que se objectivassem
perdas hemáticas. Analíticamente registou-se um
decréscimo do valor da hemoglobina (6,7 g/dL) tendo-se
procedido ao suporte transfusional com 4 unidades de
concentrado de eritrócitos, verificando-se uma melhoria
clínica e laboratorial.
Tendo em conta os antecedentes do doente, nomeadamente a cirurgia aorto-abdominal, o doente foi transferido para o Serviço de Cirurgia Vascular do Hospital de
Santa Marta com suspeita de FAE.
Naquela unidade hospitalar o doente foi submetido a
Angio-TC que foi inconclusiva, optando-se por efectuar
uma Laparotomia Exploradora no decurso da qual foi
identificada uma fístula entre a aorta abdominal e uma
ansa jejunal, tendo-se procedido à correcção da mesma
no mesmo tempo operatório. Sem complicações no pósoperatório.
DISCUSSÃO
O denominador comum a estes três casos é a sua forma
de apresentação: hemorragia digestiva, sob forma de
hematemeses e melenas nos dois primeiros casos e
hematoquézias no terceiro, sem repercussão hemodinâmica significativa.
Em todos casos impunha-se a presunção clínica, ou pelo
menos a suspeita da existência de FAE, tendo em conta
o antecedente cirúrgico comum a todos eles: cirurgia da
aorta abdominal. A endoscopia digestiva alta veio
reforçar esta suspeita pelos locais e características das
lesões encontradas em dois deles.
Mesmo considerando este contexto para o qual a cirurgia
é o único rumo terapêutico a seguir, a rentabilidade da
endoscopia digestiva assenta em dois aspectos relevantes: por um lado excluir outras causas de hemorragia
digestiva e, por outro, tentar localizar a origem da
hemorragia para orientação cirúrgica.
Nestes três casos clínicos a opção de transferir os
doentes para unidades hospitalares com Serviço de
Cirurgia Vascular fundamentou-se por um lado na suspeita clínica, reforçada nos dois primeiros casos pelos
achados endoscópicos e por outro, para complementar a
investigação por outros meios diagnósticos, permitindo
uma mais rápida intervenção cirúrgica após confirmado
o diagnóstico.
A celeridade da actuação terapêutica nos casos de FAE é
de fulcral importância, principalmente após um primeiro
episódio de hemorragia, muitas vezes seguido de um
segundo episódio de hemorragia cataclísmica e normalmente fatal, evento que, segundo as evidências terá ocorrido com o paciente do Caso Clínico II.
No que diz respeito ao Caso Clínico III pode-se considerar adequada a opção da Laparotomia Exploradora
após os estudos endoscópicos e imagiológicos terem
sido inconclusivos, mantendo-se a suspeita de FAE
como origem da hemorragia.
Mesmo nos casos submetidos a cirurgia correctiva, a
mortalidade nas FAE é de 50%.
CONCLUSÃO
A FAE consiste numa comunicação directa entre a aorta
abdominal e o tubo digestivo. A forma mais prevalente é
a secundária como complicação de cirurgia da aorta
abdominal, podendo ocorrer no período pós-operatório
imediato (3 semanas) ou ocorrer meses ou anos mais
tarde após a cirurgia. Está documentado um caso de FAO
secundária a cirurgia 14 anos após a intervenção (7,9).
Clinicamente a apresentação mais usual é sob a forma de
uma hemorragia digestiva alta ou baixa de acordo com o
local da fístula, sendo que o mais frequente é nas 3ª e 4ª
porções do duodeno. A hemorragia pode surgir como um
episódio auto-limitado, sem repercussão hemodinâmica,
a que, não raro, se segue um segundo episódio de
grandes proporções, quase invariavelmente fatal; podendo o fenómeno inaugural apresentar estas características
ad initio.
A chave diagnóstica é a suspeita clínica, particularmente
se estivermos perante um paciente com hemorragia
digestiva e com antecedentes de cirurgia da aorta
abdominal (7,10).
A endoscopia digestiva é o procedimento de escolha
para tentar corroborar o diagnóstico, bem como para
excluir outras causas de hemorragia digestiva. A TC
abdominal com contraste em fase arterial é o melhor
método de imagem para um diagnóstico acurado.
A laparotomia exploradora impõe-se como medida a
seguir nos casos em que há hemorragia severa ou, de
forma mais controversa, naqueles em que a suspeita persiste, a hemorragia se mantém e estão esgotados outros
métodos de diagnóstico.
O tratamento é estritamente cirúrgico. A mortalidade é
elevada sendo de 100% nos casos não tratados e de
aproximadamente 50% nos casos tratados (3).