128 S. FERREIRA ET AL
GE Vol. 14
Artigo Original / Original Article
ABCESSO HEPÁTICO PIOGÉNICO - CASUÍSTICA DE 19 ANOS
S. FERREIRA, R. BARROS, M. SANTOS, A. BATISTA, E. FREIRE, E. REIS, J. CORREIA, J. OLIVEIRA
Resumo
Summary
Introdução: Os abcessos hepáticos constituem uma entidade clínica pouco frequente que coloca desafios no diagnóstico e tratamento. Nas últimas décadas assistiu-se a
mudanças na epidemiologia, avanços nos meios de diagnóstico e ao aparecimento de mais alternativas terapêuticas.
Objectivos e Métodos: Com o objectivo de analisar a experiência da nossa instituição, revimos os processos clínicos
dos doentes com o diagnóstico de alta de abcesso hepático/piémia portal, correspondendo a 119 doentes.
Resultados: No quadro clínico, a febre e a dor abdominal
foram os sintomas mais frequentes. Apenas 68% dos
doentes apresentavam leucocitose. A ecografia abdominal
só foi diagnóstica em 80% dos doentes, sendo que 66%
apresentavam lesões únicas e 34% múltiplas. Foi possível
isolar agente microbiano em 57% dos doentes, sendo comprovada uma condição predisponente para o abcesso hepático em 60%. A terapêutica mais frequentemente seleccionada foi a drenagem percutânea com antibioterapia. A
mortalidade foi de 4% e a taxa de cura de 82%.
Conclusões: Os abcessos hepáticos estão frequentemente
associados a patologia gastrointestinal, devendo a procura
de uma condição predisponente, ser parte integrante da
abordagem. O diagnóstico precoce exige que haja um baixo
limiar na suspeita clínica.
Introduction: Liver abscesses are an uncommon clinical
entity, difficult to diagnose and treat. The last few decades
have brought changes in the epidemiology of the disease,
and improved diagnostic tools and new therapeutic options
have appeared.
Objectives and Methods: In order to analyze our hospital's
experience with the condition, we reviewed the clinical data
of 119 patients with a discharge diagnosis of liver abscess.
Results: Fever and abdominal pain were the most common
symptoms. Only 68% of the patients had leukocytosis. The
abdominal ultrasound was diagnostic in 80% of the
patients; 66% had solitary lesions and 34% multiple
lesions. A microbial agent was isolated in 57%, and a predisposing condition was found in 60%. Percutaneous
drainage combined with antibiotic therapy was the most
frequent treatment used. The mortality rate was 4% and
the cure rate 82%.
Conclusion: Liver abscesses are commonly associated with
gastrointestinal diseases and their management should
include a search for a predisposing condition. An early
diagnosis requires a low level of clinical suspicion.
INTRODUÇÃO
Na primeira metade do século XX, o abcesso hepático
era descrito como uma condição afectando sobretudo
homens jovens no contexto de infecção intraabdominal.
Em 1938 foi publicada a primeira grande série de abcessos hepáticos (1), tendo-se observado um pico de
incidência na 4ª década, o tracto intestinal como ponto
de partida principal, e a preconização do tratamento
cirúrgico como única terapêutica. Nessa primeira série
(1), observou-se uma taxa de mortalidade de 60-80% e
todos os doentes não operados faleceram.
Nos últimos 60 anos, com o acesso à antibioterapia, melhoria na identificação microbiológica, desenvolvimento
de novas técnicas radiológicas e avanços nas técnicas de
drenagem, a taxa de mortalidade diminuiu para cerca de
30% (2). Sem tratamento a doença mantém-se uniforDepartamento de Medicina do Hospital Geral de Santo António, Porto.
GE - J Port Gastrenterol 2007, 14: 128-133
memente fatal.
Alterou-se também a epidemiologia, com o pico de
incidência na 5ª década e sendo agora as vias biliares o
ponto de partida principal (2).
Um esforço vigoroso para identificar uma patologia subjacente é um componente importante na avaliação destes
doentes e várias estratégias de investigação foram propostas. Apesar deste esforço, em muitos casos nenhuma
patologia predisponente é encontrada.
OBJECTIVOS
Caracterizar e analisar a experiência do Hospital Geral
de Santo António, com particular atenção à epidemiologia, diagnóstico, factores predisponentes, abordagem e
resultado.
Recebido para publicação: 02/08/2006
Aceite para publicação: 10/11/2006
Maio/Julho 2007
MÉTODOS
Realizou-se um estudo retrospectivo, fazendo a revisão
do processo clínico dos doentes que tiveram alta do
Hospital Geral de Santo António com o diagnóstico de
abcesso hepático/piémia portal (código ICD9
572.0/572.1), entre Janeiro de 1986 e Dezembro de
2004. Os casos foram identificados fazendo uma busca
na base de dados do hospital, através do código dos diagnósticos pretendidos.
A definição de abcesso hepático requeria que o doente
tivesse um ou mais defeitos de preenchimento na
ecografia ou TAC hepática, juntamente com identificação de pús ou resolução completa após terapêutica
antimicrobiana. Foram excluídos os pós-operatórios
recentes (cirurgia nas duas semanas anteriores ao diagnóstico), os quistos hidáticos, e os casos em que os registos estavam incompletos ou indisponíveis.
O quadro clínico, intervenções terapêuticas e dados laboratoriais na admissão, factores predisponentes e
evolução foram analisados. Foram registadas as colheitas realizadas para estudo microbiológico e seus
resultados.
Relativamente à patologia predisponente, considerámos
quatro grandes grupos possíveis tendo em conta o
mecanismo fisiopatológico mais provável. Abcesso hepático foi considerado como secundário a doença das
vias biliares em doentes com litíase biliar, colecistite
aguda ou outra anomalia documentada das vias biliares;
secundário a infecção via veia porta quando foi documentada infecção ou patologia abdominal na área de
drenagem para a veia porta; secundário a doença local
quando existia doença não biliar na proximidade;
secundário a disseminação hematogénica quando houve
isolamento de bactérias em hemoculturas e fonte
endocárdica ou endovascular documentada. Optou-se
por não definir um grupo de abcessos criptogénicos uma
vez que considerámos não ter sido realizada investigação suficiente na maioria dos casos.
Recorrência foi definida como desenvolvimento de
novas alterações clínicas e radiológicas subsequentes à
resolução clínica e/ou radiográfica inicial.
RESULTADOS
De um total de 241 diagnósticos fornecidos pelo Serviço
de Estatística, 119 foram incluídos no estudo. A maioria
dos casos excluídos deveu-se a perda de informação
necessária para verificar os critérios de inclusão.
A idade média dos doentes foi de 58 anos, sendo que
56% tinham idade superior a 60 anos e que houve um
número crescente de doentes com o aumento do grupo
ABCESSO HEPÁTICO PIOGÉNICO 129
etário. Em termos de distribuição por sexo, 57% dos
doentes eram do sexo masculino, 43% do sexo feminino.
Apresentação Clínica e Diagnóstico
Analisando o quadro clínico, observa-se que na maioria
dos doentes está presente febre (90%) e dor abdominal
(68%), mas apenas 61% tinha simultaneamente febre e
dor abdominal na apresentação. Dos 12 doentes que não
tinham febre, 11 tinham dor abdominal. Os restantes
sinais e sintomas são muito menos frequentes e ainda
menos orientadores em termos de diagnóstico (Figura1).
De salientar que 13% dos doentes apresentavam queixas
respiratórias (tosse seca, dor pleurítica) e que 8% tinham
alterações na auscultação pulmonar. A hepatomegalia e
a icterícia foram os restantes sinais mais frequentemente
encontrados, presentes em 13% e 11% dos doentes,
respectivamente. Em menos de 1% dos doentes o exame
físico foi completamente normal.
A maioria da população analisada esteve internada em
serviços cirúrgicos (84%), sendo que nestes a queixa
dominante era a dor abdominal (71%).
Analisando o tempo de duração do quadro clínico,
observa-se uma média de 17,9 dias (0 a 120 dias) desde
o início dos sintomas até à ida ao hospital; note-se que
não foi pesquisada a ida prévia a outro médico ou instituição de saúde. A demora média desde a admissão no
hospital até ao diagnóstico foi de 5,4 dias.
Os exames analíticos realizados revelaram que 68% dos
doentes apresentavam leucocitose, com uma média de
15789/µl. Da restante caracterização do síndrome inflamatório, observou-se que 85% dos doentes tinham neutrofilia, e todos tinham uma VS elevada (média de
101mm). Anemia estava presente em 47% dos doentes,
com um valor médio de hemoglobina de 10,9g/dl.
100%
90%
80%
70%
60%
50%
40%
30%
20%
10%
0%
a
s
l
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Figura 1 - Sintomas na apresentação.
130 S. FERREIRA ET AL
GE Vol. 14
Em relação às enzimas de lise hepatocelular, 61% dos
doentes apresentavam uma elevação da AST (média de
elevação de 2,7 vezes) e 52% uma elevação da ALT
(média de elevação de 2,2 vezes). As enzimas de
colestase apresentaram alterações mais frequentemente:
fosfatase alcalina elevada em 82% (média de elevação
de 2,2 vezes) e gama-GT elevada em 96% dos casos
(média de 3,3 vezes).
A ecografia abdominal foi diagnóstica em 80% dos
casos, 18% dos doentes necessitaram de TAC abdominal
para o diagnóstico de abcesso, seja porque a ecografia
foi normal ou, mais frequentemente, porque não foi conclusiva. Dois casos tiveram diagnóstico per-operatório,
correspondendo a doentes com suspeita de abdómen
agudo que foram levados ao bloco operatório sem
exame imagiológico prévio (década de 80).
Ainda em relação aos exames de imagem, é de salientar
que 22 doentes (18%) apresentavam alterações no Rx
torácico, sendo o derrame pleural direito o achado mais
frequente (12 doentes). Outras alterações observadas
foram elevação da hemicúpula direita (2 doentes), hipotransparência na base direita (3 doentes) ou alterações
não sistematizáveis (6 doentes). De notar que em 2
doentes o diagnóstico inicial foi de pneumonia.
Relativamente ao número de lesões, 66% dos doentes
apresentavam lesões únicas e 34% lesões múltiplas. O
lobo direito estava envolvido isoladamente em 56% dos
casos, o esquerdo em 30,5%, e em 13,5% ambos os
lobos estavam afectados. Os abcessos múltiplos afectaram o lobo direito em 86,7% (Figura 2).
Comparando alguns aspectos dos abcessos únicos com
os múltiplos (Quadro 1), observou-se que os múltiplos
apresentavam uma leucocitose mais elevada (19820/µl
vs 13694/µl), valores de transaminases mais altos (AST
100,9U/l vs 87,9U/l; ALT 101,8U/l vs 95,9U/l), e bilirrubina total também mais elevada (2,21mg/dl vs
1,4mg/dl). A TAC foi necessária mais vezes para diagnosticar abcessos múltiplos (42,5%). Apesar da
duração média da sintomatologia ter sido semelhante
nos dois grupos, o tempo até ao diagnóstico após o internamento foi de 4 dias nos abcessos únicos e 8 dias nos
múltiplos.
100%
80%
Múltiplo
Único
60%
16%
40%
20%
0%
4,5%
Quadro 1 - Abcessos únicos vs múltiplos.
ALT Bilirrubina TAC para Tempo até Tempo para
diagnóstico hospital diagnóstico
13694/µl 88Ul/l 96Ul/l 1,4mg/dl
36%
17 dias
8 dias
Leucócitos AST
Único
(66%)
Múltiplos 19820/µl 101Ul/l 102Ul/l 2,2mg/dl
(34%)
42,5%
17 dias
8 dias
Microbiologia
Nesta série apenas 89% dos doentes fizeram algum tipo
de colheita de produtos para microbiologia, o que significa que 13 doentes não fizeram investigação de agente
etiológico. O produto colhido na maioria dos casos foi o
pus (93%), tendo sido realizadas hemoculturas em 73%
dos doentes a quem foi feita investigação microbiológica. A rentabilidade da investigação foi de 22% no caso
das hemoculturas e de 62% no caso do pus. Assim, foi
isolado agente microbiano em 57% dos doentes, na
grande maioria das vezes através da análise do pus. Os
agentes isolados estão descriminados no Quadro 2.
O agente isolado mais frequentemente foi a E. Coli, seja
no pus ou no sangue. No entanto, se considerarmos em
conjunto os vários grupos de estreptococos, estes foram
os agentes mais frequentes, sendo os grupos anginosus e
viridans os mais representados. Os anaeróbios foram
identificados em 16 análises de pus, sempre em conjunto com um agente adicional, sendo de salientar que a cultura de anaeróbios nem sempre foi efectuada. Um quarto dos abcessos era polimicrobiano, a maioria com a
identificação dos vários agentes no pus.
Quadro 2 - Agentes microbiológicos isolados.
Pus
Hemoculturas
E. coli
Estreptococcus grupo milleri
Estreptococcus grupo viridans
Enterococcus spp
Klebsiella spp
Outras enterobacteriaceae
Estafilococcus spp
Pseudomonas stretzei
Corynebacterium jeikeium
Acinetobacter spp
Anaeróbios
Terapêutica
40%
26%
Direito
Esquerdo
13,5%
Ambos
Figura 2 - Distribuição topográfica dos abcessos.
A terapêutica mais frequentemente usada foi a drenagem
percutânea associada a antibioterapia, em 74% dos
doentes (Figura 3); 11 doentes foram tratados apenas
Maio/Julho 2007
ABCESSO HEPÁTICO PIOGÉNICO 131
com antibiótico, 6 com antibiótico e cirurgia, 5 com
antibiótico e aspiração, 3 com antibiótico, drenagem e
cirurgia, 3 apenas com drenagem e um outro apenas com
cirurgia; 1 doente necessitou de cirurgia após aspiração
e antibiótico. Num doente, dado o mau estado geral e
patologia de base, foi decidido não tratar.
A média de dias de tratamento antibiótico durante o
internamento no nosso hospital foi de 15,9, com um
máximo de 43. Em relação à duração do tratamento
antibiótico é de salientar que frequentemente os doentes
foram transferidos para o Hospital da área de residência,
não sendo possível avaliar a duração total do tratamento.
A média de duração da drenagem percutânea foi de
Quadro 3 - Condições predisponentes.
Diagnóstico
Patologia
pré-existente após investigação
Anastomose/fístula bilioentérica
Litíase vesicular
Litíase vesicular/VBP/intrahepática 8
Colecistite aguda
Pancreatite aguda/crónica
Cirurgia prévia vias biliares/pâncreas 5
Colangite
Colangiocarcinoma
Neoplasia pâncreas
Stent pancreático
Doença de Caroli
Diverticulose
Doença de Crohn
Neoplasia do cólon/recto
Pólipos do cólon
13,7dias, com um mínimo de 1 dia e um máximo de 40.
Factores Predisponentes e Investigação Adicional
Nesta casuística, 54,6% dos doentes (65) tinham patologia previamente conhecida que predispunha a abcesso
hepático, isto é, apresentavam condições descritas como
estando associadas ao aparecimento de abcessos hepáticos (Quadro 3, Figura 4). Alguns doentes apresentavam
mais do que uma condição predisponente. A patologia de
base mais frequentemente encontrada foi a doença das
vias biliares (65%), com a anastomose e fístula biliodigestiva a serem as mais frequentes dentro deste grupo.
No entanto, somando os vários tipos de litíase biliar, este
torna-se o subgrupo com mais peso.
O segundo grupo de condições subjacentes mais frequente foi a doença local, sobretudo antecedentes de
cirurgia abdominal superior (sendo que o pós-operatório
imediato foi excluído). É de notar que patologias que
foram consideradas como fazendo parte do grupo das
vias biliares podiam também ser consideradas aqui.
A infecção transmitida via veia porta, classicamente a
mais frequente, nesta casuística constituiu o terceiro
grupo mais numeroso, com 10 casos (13%), sendo que
dentro deste grupo a neoplasia colorectal foi a patologia
mais comum. É de salientar no entanto, que foi neste
grupo que mais diagnósticos de novo se fizeram após a
investigação adicional (5 diagnósticos).
O trauma e a bacteriemia como causas de abcesso hepático foram muito menos frequentes, devendo no
entanto ser considerados no contexto clínico apropriado.
Em 81 doentes (68%), foi realizada investigação no sentido de pesquisar uma condição subjacente, tendo a TAC
abdominal sido o exame mais frequentemente utilizado;
Apendicite
90%
Febre tifóide
Enterectomia
Piloroplastia
Antecedentes abcesso hepático
Antecedentes de quisto hidático
80%
70%
60%
50%
40%
30%
20%
10%
0%
Metástase hepática/hepatocarcinoma 1
Hepatectomia
Tumor retroperitoneal
Gastrectomia
Úlcera duodenal perfurante
Fístula gástrica
Endocardite
Trauma
G
DR
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B+
+D
B
AT
AT
O
ATB: antibiótico; DRG: drenagem; Cir: cirurgia; Asp: aspiração
O: sem terapêutica
Figura 3 - Tratamento efectuado.
132 S. FERREIRA ET AL
GE Vol. 14
assim, mesmo alguns doentes com patologia predisponente já conhecida foram submetidos a estudo. Uma
minoria de doentes fez Colonoscopia, Endoscopia
Digestiva Alta, Colangiopancreatografia Retrógada
Endoscópica, Ressonância Magnética, Biopsia Hepática
e Trânsito Gastroduodenal.
Dos doentes com patologia prévia, a investigação encontrou um motivo adicional potencial para abcesso hepático em 7,7% (Figura 4). Dos doentes que não tinham
patologia prévia conhecida, a investigação encontrou
uma condição predisponente em 13%. Portanto, após a
investigação, 60% dos doentes apresentavam uma
condição subjacente predisponente.
Evolução e Resultados
Na nossa série, à data de alta do Hospital, a taxa de mortalidade foi de 4%, a taxa de cura de 82% e a de recidiva de 14% (excluindo recidiva como resultado final, a
taxa de cura foi de 95% e a de mortalidade de 5%).
O tempo médio para a recidiva foi de 11,8 semanas, com
um mínimo de 1 semana.
Fazendo uma análise do resultado à data de alta vs terapêutica usada, pode observar-se que o uso de antibiótico com drenagem percutânea está associado a um bom
resultado (apenas 1 morte); o não tratamento (1 doente)
foi fatal; no grupo dos falecidos, o tratamento mais frequente foi antibiótico como terapêutica exclusiva. Uma
análise adicional do grupo com recidiva, revelou que
12,5% dos abcessos eram múltiplos e que 68,7% apresentavam patologia de base, em 31% drenagem via veia
porta e em 37% patologia das vias biliares.
A taxa de cura nos abcessos múltiplos foi de 87%, mas é
de salientar que 60% dos falecidos tinham abcessos
múltiplos.
A média de dias de internamento foi de 23, variando de
1 a 176. Este valor é subvalorizado pois um número considerável de doentes foi transferido para outra instituição
de saúde.
Condições predisponentes
conhecidas com investigação
Condições predisponentes
previamente conhecidas
es
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Ar
Figura 4 - Condição predisponente após investigação.
Após a alta, 58% dos doentes foram seguidos em
Consulta Externa, onde foram detectadas algumas das
recidivas e onde foram feitos dois diagnósticos adicionais em termos de doença subjacente- recidiva de
neoplasia do estômago e neoplasia do cólon (este último
doente não tinha feito qualquer investigação no internamento).
DISCUSSÃO
A série apresentada é das maiores publicadas a que os
autores tiveram acesso.
A distribuição etária é semelhante ao observado nas
séries mais recentes (2,3), tendo a maioria dos doentes
idade superior a 60 anos, e bem diferente da primeira
grande série publicada em 1938 por Ochner et al (1).
A longa duração da sintomatologia (17,9 dias) até à
procura do médico, e o diagnóstico demorado (5,4 dias),
resulta num tempo médio total até ao início de tratamento superior a 23 dias. Este facto traduz a inespecificidade do quadro, sua apresentação frequente como síndrome febril isolado, sem outro factor orientador do
diagnóstico. É de salientar que apenas 61% dos doentes
apresenta febre e dor abdominal, sendo assim fundamental não excluir o diagnóstico com base na ausência
de dor abdominal. O elevado número de doentes com
sintomas respiratórios (13%) alerta também para o facto
de este ser um diagnóstico diferencial a ter em conta,
sobretudo quando as alterações encontradas no exame
físico ou Rx tórax são na base do hemitorax direito.
Como descrito anteriormente, a grande maioria dos
doentes esteve internada em serviços cirúrgicos, isto é,
todos os doentes com o diagnóstico de abcesso hepático
feito na urgência ou com queixa principal de dor abdominal foram internados em cirurgia. Apenas os doentes
com quadro clínico em caracterização, mais frequentemente síndrome febril, foram internados em serviços
médicos, não sendo no entanto a demora média até ao
diagnóstico diferente nos dois grupos.
É interessante observar que a bateria analítica habitualmente disponível na urgência é frequentemente normal,
incluindo contagem normal de leucócitos (32% dos
doentes) e AST, ALT normais (em 39 e 48% respectivamente). Se a este facto se adicionar a possibilidade de
uma ecografia abdominal normal ou inconclusiva em
20% dos casos, pode-se concluir que é relativamente
fácil a falha inicial no diagnóstico. Nesta série, o grande
número de ecografias não diagnósticas (indicada na
maioria dos estudos como sendo de 10%) pode dever-se
ao facto de a grande maioria ser realizada na urgência,
muitas vezes sem as melhores condições (doentes sem
jejum; grande número de exames; suspeita clínica mal
Maio/Julho 2007
definida). Alterações nas enzimas de colestase são mais
sensíveis mas nem sempre disponíveis ou avaliadas em
ambiente de urgência. A velocidade de sedimentação,
embora elevada em todos os doentes, é pouco específica
e também raramente realizada na urgência. Observámos
alterações no Rx tórax numa percentagem consideravelmente menor que a descrita na maioria das séries publicadas (30-50%).
Em relação à identificação de agente etiológico, é fortemente recomendável a colheita de produtos e a sua cultura nos vários meios (deve incluir anaeróbios). Esta
série revela uma baixa taxa de colheita de material para
microbiologia (89% dos doentes); embora este valor
possa estar ligeiramente subvalorizado por não se encontrar o registo no processo clínico, a importância da colheita de material deve ser enfatizada. A identificação de
um agente em 57% dos doentes corresponde a um valor
inferior ao publicado em grande parte dos estudos, não
só porque mais doentes colhem produtos, mas também
porque a rentabilidade está apontada como sendo maior.
Os agentes identificados, na sua globalidade, são os
apontados geralmente como os habituais (2,3,4), confirmando a necessidade de cobertura inicial de gram negativos, streptococos e anaeróbios. O grande número de
abcessos polimicrobianos coloca a questão da segurança na
orientação da antibioterapia após a identificação de um
agente em cultura.
A terapêutica mais frequentemente usada nesta série foi
a recomendada pela maioria dos autores em grande parte
das situações: antibiótico associado a drenagem percutânea. Dos 11 doentes que foram tratados apenas com
antibiótico, 2 morreram (maior grupo dos falecidos), 1
recidivou e 8 curaram (72% de taxa de sucesso, ao nível
dos valores mais optimistas para este tipo de terapêutica). Não foi pesquisado pelos autores o motivo desta
opção terapêutica, embora possa haver várias explicações possíveis, seja por se tratar de lesões muito
pequenas, inacessíveis, seja por o doente não ter
condições para a realização da drenagem. Apenas em
9% dos doentes houve lugar a intervenção cirúrgica, o
que ilustra bem a enorme diferença entre a abordagem
actual e a descrita por Ochner et al (1).
Embora esteja bem estabelecida a importância de uma
investigação etiológica/predisponente nos abcessos hepáticos, nesta série apenas 68% dos doentes foram submetidos a este tipo de estudo (a percentagem seria ainda
menor se não fossem contabilizadas as TAC's realizadas
com intuito diagnóstico inicial). Por este motivo, o
número de doentes em que foi encontrada doença subjacente foi inferior ao da maioria das séries: 60%. Está
ainda de qualquer forma por definir qual a investigação
ABCESSO HEPÁTICO PIOGÉNICO 133
mínima a realizar nestes doentes e, havendo uma
condição já previamente conhecida, se está indicada
pesquisa adicional.
A patologia das vias biliares, a contribuir para um grande
número dos abcessos desta série, está dentro do esperado na actual epidemiologia, não sendo contudo habitual
um número tão elevado de anastomoses bilio-digestivas.
Paralelamente, observou-se uma marcada diminuição de
infecção via veia porta; de qualquer forma, como já
observado anteriormente, foi neste grupo de doentes que
maior número de diagnósticos de novo se fez após investigação adicional, mostrando mais uma vez a importância da colonoscopia na investigação do abcesso hepático.
Por outro lado, grande parte dos doentes desta série pertence ao grupo alvo do rastreio do cancro colorectal,
apresentando assim uma indicação adicional para
realizar este exame.
Em relação aos abcessos criptogénicos, as séries são
muito díspares, com valores que vão dos 6 aos 50%, isto
em grande parte porque não está definido qual a investigação mínima aceite para se definir a ausência de causa.
Dada a baixa taxa de investigação realizada nesta casuística, este grupo não foi definido no nosso trabalho.
A taxa de mortalidade da nossa série é das mais baixas
descritas. Dado o número tão baixo de mortes, não é possível fazer uma análise dos factores de risco.
Correspondência:
Sofia Ferreira
Serviço de Medicina 2
Hospital Geral de Santo António
Porto, Portugal
sophiarferreira@yahoo.com
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