Notas (Notes?) do Vento que Passa
Notas (Notes?) do Vento que Passa
Guilherme Macedo
The times, they are a - changin
(Bob Dylan, 1964)
A ontogenia da Endoscopia Digestiva é uma história de conquistas, de desafios
irreverentes sobre as fronteiras convencionais e indiscutivelmente, um espelho
da importância da indústria tecnológica na moderna Medicina.
Ir mais longe e mais fundo, ver mais de perto e mais para dentro, foram
paradigmas que progressivamente se tomaram intuitivos em quem pratica
endoscopia. Ao longo dos anos foram-se discutindo os limites cognitivos da
Gastroenterologia e do seu braço armado, a Endoscopia, pelo que cresceu a
necessidade de se ir recriando uma nova realidade assistencial e académica em
que a Gastroenterologia e a Endoscopia Digestiva passaram a ocupar um papel de
chameira num volume importantíssimo de situações clínicas intra e extra
hospitalares.
A aproximação dos saberes médicos e cirúrgicos a que esta nova realidade
conduziu e simultaneamente pela sua progressiva autonomia tecnológica
propositiva e gestual, tem obrigado muito expressivamente a um esforço
significativo das estruturas hospitalares para compreenderem e sobretudo
reajustarem-se para o novo cenário das decisões medico-cirúrgicas simbióticas,
de que a Gastroenterologia e Endoscopia passaram a protagonizar. Todos
conhecemos as extremas dificuldades que os gestores e as administrações têm em
reformular e redimensionar os espaços hospitalares em função da Interactividade
da nossa Especialidade, seja com a Urgência, com os Departamentos de
Imagiologia, ou com a própria convivência nem sempre pacifica com os
Departamentos de Medicina e Cirurgia.
Tomou-se claro que a nossa eficácia transcende largamente a capacidade
diagn6stica, passando a ser avaliada pela nossa competência interventiva.
Paulatinamente, fomos profanando os sagrados territórios da Cirurgia, pelas
polipectomias, hemostase, dilatações esofágicas, extracção de corpos estranhos,
tratamento da litíase, a paliação oncológica. Também o entusiasmo e arrojo dos
jovens Médicos que durante anos e anos foram seleccionando a Gastroenterologia
como forma de vida, optando os melhores candidatos em ondas sucessivas, por
ocuparem os serviços hospitalares sob os quais haviam criado expectativas e
projectos, trouxeram um sangue novo e uma ambição saudável e competitiva. Estes
factos originaram uma sensível necessidade de alargar as malhas, que fomos
sentindo como progressivamente mais apertadas, sensibilidade essa que torna
muito penosa e quase insuportável a existência de quem consegue criar
movimentos e quer crescer à cadência e pulsar da própria vitalidade.
A mescla dessa maturidade com esse desejo quase iconoclasta da interrogação
ilimitada permanente, associado a um natural vigor expansionista da indústria
tecnológica, foi o cadinho desta nova realidade, que devemos preparar-nos para
enfrentar: A convergência e osmose progressiva dos conhecimentos e práticas
gastroenterológicas com a Cirurgia.
Lançado o desafio, crispam-se os deuses, derretem-se as calotes polares,
irrompem os magmas, agitam-se os mares e os céus: daqui surgirá um novo caminho
de integração e algumas Unidades interdisciplinares, mais do que
multidisciplinares, verdadeiros Centros ou Departamentos de Doenças Digestivas.
Ficção?
Creio já tratar-se de uma realidade tangível: Uma das mais carismáticas
conferências (David Sunn Lecture) da Reunião Anual do American College of
Gastroenterology realizado em 2006 em Las Vegas teve como protagonista Anthony
Kalloo, Director da Divisão de Gastroenterologia e Hepatologia da Universidade
de John Hopkins, designando o NOTES como "o dealbar de uma nova era";
NOTES descreve a Natural Orifice Transluminal Endoscopic Surgery. Ficará o
epónimo americano não traduzido, tal como para o TIPS ficou consagrado.
Discutiu e exemplificou (como também o fez posteriormente no Curso de
Endoscopia de Nova lorque em Dezembro) o actual fluxo de estudos laboratoriais,
e foi revelando o que antevê como potencial das intervenções cirúrgicas
transgástricas, os novos desafios colocados em termos de esterilização, a
pressão tecnológica para o desenvolvimento, bem como as possíveis coordenadas
futuras de expansão.
Entretanto, também a 1ª Conferência Internacional sobre NOTES já decorreu, em
Março de 2006; A primeira revista Gastroenterology de 2006 sob o Consulado do
novo editor, numa nova secção designada Imaging and Advanced Techonology, ataca
o assunto, "take NOTES"; Formou-se o NOSCAR, Natural Orifice Surgery
Consortium for Assessment and Research. E o que mais virá, e o que mais se
seguirá
Na Europa, estes trabalhos pioneiros vão-se desenvolvendo em algumas unidades
hospitalares e académicas, lenta mas inexoravelmente: nos países nórdicos, na
Alemanha, em Portugal. A intervenção na área digestiva já não tem a mucosa, nem
a serosa, como limite, considere-se a visão por via intra-luminal ou por via
extra-luminal. E como vamos então preparar os futuros actores neste admirável
mundo novo?
Se conseguirmos romper com alguns dogmas de recentes gurus, que tão
fundamentais foram para o nosso crescimento, não conseguiremos criar espaço
para uma formação temporalmente integrada e sequencial de Gastroenterologistas
e Cirurgiões?
Teremos de conseguir readaptar, uma vez mais, os curricula com os novos
desafios, com novos parâmetros de formação e de certificação.
Resistências? Haverá muitas por certo, umas espontâneas e intuitivas, outras
organizadas e redutoras. Lembro a este propósito, o comentário incisivo e
jocoso do grande mestre Benhamou quando perante um caso clínico que
discutíamos, interrogou a esse propósito um outro "attaché", francês
de riso fácil perante a provocação à endoscopia "clássica" -
perguntou a certa altura o Professor acerca dum doente," qual tinha sido a
opinião dos homens ciclópicos?" Era uma clara alusão ácida aqueles que
raciocinam mediante a visão afunilada que transportam na ponta proximal do
endoscópio! Era essa a imagem que tinham de nós, mesmo os grandes protagonistas
do passado que aprendemos a respeitar e considerar.
Duas dezenas de anos, que se tomaram anos rápidos, em que se assistiu a
necessárias convulsões na própria natureza e aplicabilidade dos nossos gestos.
Fomos coabitando intelectualmente ao longo dos anos com a sombra permanente de
dois temores: um chamado Incerteza (com que nós médicos tantas dificuldades
temos em encarar), outro chamado Cirurgiões! Estes obviamente, porque foram
corporizando os Anjos da Dúvida das Complicações Endoscópicas. E agora,
subitamente, é com eles que nos vemos a conviver e a reformular o resto das
nossas vidas... mas o advento está ai e agora: há que preparar mentalidades e
morais estabelecidas, para os novos contornos do futuro.
Temos mais uma vez, de mostrar liberdade e disponibilidade. Estar preparados
para aceitar e liderar um processo de aculturação.
Estar preparados para o desapontamento e para o júbilo. Para crescer, portanto.
Serviço de Gastrenterologia, Hospital de São Marcos, Universidade do Minho,
Braga, Portugal.
Recebido para publicação: 30/04/2007
Aceite para publicação: 16/05/2007
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