CARACTERIZAÇÃO DA RESPOSTA VIROLÓGICA SUSTENTADA NA
TERAPÊUTICA DA HEPATITE C CRÓNICA PELA AVALIAÇÃO À 4ª SEMANA
INTRODUÇÃO
Actualmente, mais de 170 milhões de pessoas estão
infectadas em todo o mundo (1) com o vírus da hepatite C
(VHC), dos quais 5 milhões na Europa ocidental. A situação em Portugal é desconhecida com rigor, contudo estima-se que estejam infectados 150 mil indivíduos (2).
O aparecimento de cirrose, geralmente ocorre em 5% a
20% dos indivíduos infectados, surgindo após um período médio de 20 a 25 anos de infecção (3). Após o estabelecimento da cirrose surgem as mais temidas complicações da hepatite C crónica, nomeadamente a doença hepática terminal (risco de 30% por cada 10 anos de
infecção) e o carcinoma hepatocelular (risco de 1% a 2%
por ano) (4). Como previamente mencionado, a cirrose
surge habitualmente após, pelo menos, duas décadas de
infecção, no entanto, ocorre mais frequentemente nos casos em que a aquisição da infecção surge em idades mais
avançadas (particularmente no sexo masculino), assim
como nos que possuem hábitos etílicos diários superiores
a 50g, ou que sejam obesos ou possuam esteatose hepática significativa e nos co-infectados por VIH (5). A presença
de fibrose portal (Metavir ≥2; Ishak ≥3) na biópsia hepática é um indicador importante para a progressão da doença
hepática, assim como da necessidade de tratamento (5).
O objectivo primordial do tratamento desta entidade nosológica é a prevenção das suas complicações; tal facto
consegue-se com a erradicação da infecção.
A monoterapia com interferão-alfa obteve pouco sucesso
terapêutico, uma vez que permitia uma resposta virológica sustentada (RVS) na ordem de 6-12% em tratamentos
de 6 meses e de 16-20% nos de 12 meses (6). A associação
da ribavirina, desde 1998, aumentou a RVS para valores
de 35-40% (6). No entanto, o aparecimento do interferão
peguilado em combinação com a ribavirina veio possibilitar taxas de RVS de 54% a 56% (6).
A probabilidade de sucesso terapêutico, com a obtenção
de RVS pode ser antevista por algumas características do
doente, assim como pela obtenção de uma resposta virológica precoce (RVP). Estudos recentes sugerem que a
ausência de ácido ribonucleico VHC (ARN-VHC) detectável à 4ª semana de tratamento possui um elevado valor
preditivo positivo da obtenção de RVS; por outro lado a
incapacidade de atingir uma RVP (à 12ª semana) representa o melhor valor preditivo negativo (7,8).
O conhecimento do genótipo do VHC e da caracterização
histopatológica juntamente com o valor da virémia basal
e da resposta inicial à terapêutica permite uma individualização da duração terapêutica.
Este trabalho visa caracterizar uma amostra de doentes
com hepatite C crónica, submetida a tratamento e que à
4ª semana do mesmo atingiu um valor de ARN-VHC
indetectável.
DOENTES, MATERIAL E MÉTODOS
Foram analisados, retrospectivamente, todos os processos clínicos de doentes infectados por VHC, seguidos nas
consultas externas de Infecciologia e de Imunodeficiência do Serviço de Doenças Infecciosas dos Hospitais da
Universidade de Coimbra (HUC) e que durante o período compreendido entre 01 de Janeiro de 2004 e 31 de
Dezembro de 2005 terminaram os seus regimes terapêuticos com avaliação da RVS. Foram seleccionados aqueles que à 4ª semana de tratamento atingiram ARN-VHC
indetectável.
A avaliação do ARN-VHC foi efectuada em todos os
doentes à 4ª, à 12ª, à 24ª, à 48ª (genótipos 1, 4 ou 5) semanas e seis meses após o término do regime terapêutico
para avaliação de RVS. A determinação do ARN-VHC
foi realizada de forma qualitativa através do teste automatizado “COBAS AMPLICOR - Roche Detection
Reagent Kit”, cujo limiar de positividade é 50 UI/ml e de
forma quantitativa através de um ensaio bDNA de terceira-geração (VERSANT bDNA 3.0 assays – Bayer
Diagnostics Division), que possui como limite inferior de
detecção 615 UI/ml. Estes testes foram executados no
Serviço de Imuno-hemoterapia dos HUC. Os doentes
mono-infectados por VHC foram tratados com interferão peguilado alfa-2a (180 mcg/semana) ou alfa-2b
(1,5 mcg/kg/semana) em combinação com ribavirina
(dose mínima de 10,6 mg/kg/dia), durante 24 (genótipos
2 ou 3) ou 48 (genótipos 1, 4 ou 5) semanas. Todos os doentes co-infectados pelo VIH foram tratados durante 48 semanas. Foram excluídos todos os doentes com cirrose
hepática descompensada.
Definiu-se RVP (resposta virológica precoce) como a
ausência de ARN-VHC ou uma redução de 2-log em
relação ao valor basal, conseguida à 12ª semana; RFT
(resposta virológica no final de tratamento) como a ausência de ARN-VHC no final de tratamento e RVS (resposta virológica sustentada) como a ausência de ARN-
VHC detectável no soro seis meses após a suspensão do
tratamento. Considerou-se como recidiva, a não obtenção
de RVS na presença de RFT. Os doentes que não atingiram uma RFT foram denominados de não respondedores.
RESULTADOS
De um total de 71 doentes que terminaram tratamento,
foram seleccionados, de acordo com os critérios previamente mencionados, 42 doentes, 10 dos quais co-infectados pelo vírus da imunodeficiência humana (VIH). A
maioria dos doentes era do sexo masculino (78,6%) e
leucodérmica (100%). A mediana das idades foi de 37 anos, com valores extremos de 21 anos e de 59 anos. No
que diz respeito aos factores de risco para a aquisição de
infecção por VHC (Quadro I): 71,4% tinham antecedentes de utilização de drogas endovenosas, 11,9% de
contacto sexual com parceiros infectados, 7,1% de transfusão sanguínea e 2,4% de administração de terapêuticas
endovenosas. Em 7,1% dos casos não foi possível identificar quaisquer factores de risco. A duração média da
infecção por VHC foi de 9 anos. Um consumo de álcool
elevado (> 40 g/dia) estava presente em 14,3% (n=7). A
maioria dos doentes apresentava um valor basal de alanina-aminotransferase (ALT) elevado, uma vez que o seu
valor médio foi de 150 U/L, ou seja cerca de 3,75 vezes
o limite superior da normalidade. Nos doentes co-infectados pelo VIH, a contagem média dos linfócitos T CD4+
foi de 537 células/mm3 e a carga vírica VIH média de
23 083 cópias/ml. Destes 10 doentes co-infectados, 8
encontravam-se sob terapêutica anti-retrovírica (TARv)
de alta eficácia.
A distribuição genotípica do VHC (Quadro II) revelou
que o Genótipo (G) mais frequente foi o 1 (52,4%,),
seguido do 3 (33,3%), do 2 (7,1%), do 4 (2,4%) e do 5
(2,4%). Em 2,4% existiam genótipos mistos. A carga vírica média do VHC foi de 651 327 UI/ml, pelo que a maioria (92,9%; n=39) dos doentes possuía uma virémia basal
baixa (≤ 800 000 UI/ml). Foram submetidos a biopsia
hepática 35 (83,3%) doentes, cuja avaliação histopatológica revelou, de acordo com a classificação Metavir,
a presença dos seguintes graus de fibrose: F0 (0%), F1
(31,4%; n=11), F2 (51,4%; n=18), F3 (8,6%; n=3) e F4
(8,6%; n=3).
A resposta ao tratamento (Quadro III) foi a seguinte: RVP
(85,7%; n=36), RFT (90,5%; n=38) e RVS (85,7%;
n=36). Consoante os diferentes genótipos podemos
destacar as seguintes respostas; no G-1 (n=22): RVP
(72,7%; n=16), RFT (81,8%; n=18) e RVS (77,3%;
n=17); no G- 3 (n=14): RVP (92,9%; n=13), RFT (100%;
n=14) e RVS (92,9%; n=13). Todos os doentes com
genótipos 2 (n=3), 4 (n=1), 5 (n=1) e mistos (n=1)
obtiveram 100% de resposta (RVP, RFT e RVS).
Nos doentes co-infectados pelo VIH (n=10), apenas dois
doentes não atingiram RVS, designadamente os únicos com
G-1, pelo que a taxa de RVS foi de 80% neste subgrupo.
Por outro lado, nos doentes mono-infectados pelo VHC
(n=32) a taxa de RVS global foi de 87,5% (n=28), tendo
sido ligeiramente menor (85,0%) nos doentes com G-1.
Constatou-se a existência de recidiva em 4,8% (n=2)
doentes, um com G-1 e outro com G-3, ambos com fibrose
em estádio 2 e com ARN-VHC elevado (> 800 000 UI/ml).
Por outro lado, quatro (9,5%) doentes não responderam
ao tratamento: dois mono-infectados e dois co-infectados, todos com G-1. Os dois doentes mono-infectados
tinham ARN-VHC superior a 800 000 UI/ml e histologicamente um apresentava fibrose estádio 1 e o outro tinha
recusado a realização de biopsia hepática. Por outro lado,
os dois co-infectados encontravam-se sob TARv, com
uma contagem média de linfócitos T CD4+ basal de 450
células/mm3, apresentando um deles virémia VHC elevada. Histologicamente verificou-se a presença de fibrose de grau 1 num doente, sendo de referir que o outro
doente declinou a realização de biopsia hepática.
Relativamente aos efeitos adversos observados, a leucopenia (73,8%; n=31) assumiu um papel de relevo, seguido da anemia (28,6%; n=12) e da trombocitopenia
(11,9%; n=5). Também foram constatados: emagrecimento (11,9%), depressão (9,5%), alopécia (7,1%), hipotiroidismo (2,4%) e psicose (2,4%). Nenhum dos efeitos adversos
ocorridos foi responsável por abandono terapêutico e de seguimento. Em 7,1% (n=3) dos casos foi necessário o recurso a factores de crescimento e/ou eritropoietina.
DISCUSSÃO E CONCLUSÕES
Estes resultados sugerem que a resposta virológica à 4ª
semana de tratamento, denominada de resposta virológica rápida (RVR) constitui um utensílio bastante útil na
monitorização terapêutica da hepatite C crónica. É actualmente aceite que a RVR representa o factor preditivo
positivo mais importante na avaliação terapêutica (7).
Definem-se valor preditivo positivo como a probabilidade de ocorrer uma RVS na ausência de ARN-VHC
detectável e valor preditivo negativo pela probabilidade
de não se verificar uma RVS na presença de ARN-VHC
detectável.
Aproximadamente 77% dos nossos doentes com G-1 alcançaram uma RVS. Os doentes não-respondedores apresentaram virémias VHC elevadas e possuíam G-1. Curiosamente, nenhum dos não-respondedores submetidos a biopsia hepática apresentava um estádio avançado de fibrose.
A maioria dos doentes possuía o G-1 (52,4%), baixa
carga vírica VHC basal, ou seja inferior a 800 000 UI/ml
(92,9%) e ALT manifestamente elevada. Histologicamente, 82,8% dos doentes submetidos a biopsia hepática
não apresentavam formas avançadas de fibrose, isto é,
apenas manifestavam graus de fibrose F1 ou F2.
No que concerne à epidemiologia deste grupo de doentes,
a grande maioria (71,4%) tinha antecedentes de toxicofilia endovenosa. É de realçar a elevada percentagem
(11,9%) de transmissão sexual, bastante superior ao
descrito na literatura (inferior a 5%) (9); tal facto pode
estar relacionado com factores sócio-culturais que condicionem alguma renitência para assumir antecedentes de
toxicofilia. É importante referir que esta amostra populacional, em termos epidemiológicos traduz as características da população com hepatite C crónica seguida nas
nossas consultas. Num estudo que englobou 260 doentes,
142 mono-infectados por VHC (grupo A) e 118 co-infectados por VIH (grupo B), o principal factor de risco também foi a toxicodependência (71,1% no grupo A; 85,6%
no B), secundarizada pela via sexual (7,7% no grupo A e
7,6% no B); o genótipo mais frequente foi o 1 (54,2% no
grupo A; 50,9% no B), seguido do 3 (33,1% no grupo A;
28,8% no B) e do 4 (7,04% no grupo A; 15,3% no B); os
co-infectados apresentaram valores mais elevados de
ARN-VHC e de ALT, assim como formas mais
avançadas de doença hepática (Metavir ≥3) (10).
Em relação ao nosso grupo de estudo, a amostra de coinfectados por VIH (n=10) é demasiado pequena para
retirar qualquer conclusão pertinente.
Os efeitos secundários mais frequentes foram os hematológicos. Apesar de nenhum efeito adverso ter levado à
suspensão terapêutica, é importante salientar o papel de
terapêuticas adjuvantes, que quando necessário, permitiram a aderência e manutenção da terapêutica anti-vírica,
como é o caso do factor de crescimento leucocitário e da
eritropoietina. O acesso a estes agentes permite uma optimização do sucesso terapêutico.
A probabilidade de aquisição de uma RVS é superior: nos
indivíduos com idades inferiores a 40 anos, do sexo feminino, com peso corporal inferior a 75 kg; nos G-2 e G-3;
quando a virémia basal é inferior a 2 milhões cópias/ml
(+/- 800 000 UI/ml) e os valores de ALT basal são elevados; na ausência de insulinoresistência, bem como de
esteatose, fibrose ou cirrose hepática; quando é atingida
uma RVP e também na inexistência de infecção VIH
associada (5).
Estudos recentes apontam para uma diminuição da
duração da terapêutica nos G-2 e G-3 na presença de uma
RVR, o que significa que os doentes que tiverem uma
maior probabilidade de obtenção de RVS possam ver o
seu tempo de tratamento encurtado de 24 semanas, para
12 a 16 semanas (11-13). De igual modo, também existem
ensaios clínicos a decorrer em doentes com G-1 e com
virémia basal baixa (características também presentes na
maioria dos doentes englobados neste trabalho), cujos
resultados sugerem que desde que seja atingida uma RVR
poder-se-á reduzir a duração de tratamento de 48 para 24
semanas (7,14). No entanto, um valor de ARN-VHC detectável à 4ª semana não indica que a RVS seja improvável,
pelo que o tratamento não deverá ser suspenso nesta
altura. Deveremos ter em mente que a avaliação à 12ª
semana (RVP) é a que representa o melhor valor preditivo negativo. Deste modo a ponderação de uma eventual
cessação terapêutica deve ser feita nesta etapa. Todavia,
não podemos menosprezar a existência de respondedores
tardios, particularmente no G-1. Caso o ARN-VHC fique
indetectável somente após as 24 semanas, a probabilidade
de obtenção de RVS é muito baixa (inferior a 1%) (15). Nos
doentes que à 12ª semana possuam virémias VHC detectáveis mas que à 24ª semana as mesmas estejam indetectáveis, pode ser benéfico o prolongamento da terapêutica
de 48 para 72 semanas. Neste caso existe uma resposta
virológica lenta (ARN-VHC detectável à 12ª semana e
indetectável à 24ª semana) e ao prolongarmos a duração
do tratamento poderemos alcançar uma redução significativa da taxa de recidiva, aumentando, deste modo, a
probabilidade de RVS (16,17). Pelas mesmas razões, há
quem advogue para os doentes com G-1, caso não seja
conseguida uma RVR (à 4ª semana), o aumento da duração do tratamento de 48 para 72 semanas (18).
Pelo exposto, é aconselhável a monitorização do ARNVHC à 4ª semana após o início da terapêutica da hepatite C crónica. A individualização da duração desta terapêutica deve ser incentivada e adaptada de acordo com a
“clearance” do ARN-VHC.