Editorial
Fátima Carneiro *, Raquel Seruca **
Neste volume do Jornal Português de Gastrenterologia, Rosa I. e colaboradores
apresentam um trabalho intitulado “Importância e caracterização do carcinoma
gástrico em famílias com diagnóstico ou suspeita de síndroma de Lynch”. Os
autores analisaram uma série de 25 carcinomas gástricos (CG) identificados em
20 famílias com o diagnóstico ou suspeita de síndroma de Lynch (SL). Estas
famílias foram agrupadas em três grupos: 12 famílias com critérios de
Amsterdam, com 13 CG (pelo menos uma família com dois CG); 2 famílias com
critérios de Bethesda e Instabilidade de Microssatélites (IMS), com 3 CG (pelo
menos uma família com dois CG) e seis famílias com critérios de Amsterdam
modificados, em que os autores consideraram o CG como uma das neoplasias do
espectro da SL, com 9 CG (não é possível inferir o número de famílias com mais
do que um CG). De acordo com os critérios usados pelos autores, os dois
primeiros grupos correspondem a SL “clássica” ou “típica” e o terceiro grupo a
SL “atípica”. Os autores fizeram uma análise comparativa das características
clínico-patológicas dos 25 carcinomas gástricos identificados nas famílias com
SL (“típica” e “atípica”) e as observadas em 58 CG esporádicos, não tendo
identificado diferenças significativas relativamente ao tipo histológico dos
tumores de acordo com a classificação de Laurén. Verificaram contudo que, de
acordo com a classificação da OMS, o carcinoma mucinoso é mais frequente nas
famílias com SL e o carcinoma mucocelular (carcinoma de células em anel de
sinete) é mais frequente nos carcinomas esporádicos. A maior frequência de CG
de tipo mucinoso apresenta alguma analogia com o verificado nos carcinomas
colorectais (CCR) na SL.
Este trabalho suscita a discussão de alguns aspectos particulares: I) critérios
para o diagnóstico definitivo da SL; II) patogénese dos CG que se desenvolvem
em famílias com SL.
I) Relativamente aos critérios de diagnóstico da SL, importa considerar, por um
lado, a importância dos critérios clínicos, com base nos quais as famílias são
seleccionadas (isto é o fenótipo da doença, que é heterogéneo) e, por outro
lado, as alterações genético/moleculares (genótipo) em que assenta o
diagnóstico definitivo da SL. Relativamente a estes aspectos foi verificado que
nem todas as famílias que cumprem os critérios de Amsterdam correspondem
realmente a SL, nomeadamente se a designação desta síndrome se restringir a
doença autossómica dominante em que é condição sine qua non a identificação de
uma mutação germinativa de um gene de reparação do DNA [gene de tipo Mismatch
Repair (MMR)]
(1,2)
. De facto há várias descrições na literatura de famílias suspeitas de SL (pelo
fenótipo dos doentes/famílias) em que não se detectaram mutações dos genes do
sistema MMR. É actualmente sugerido que, para estas famílias se aplique a
designação de “CCR familiar de tipo X”
(3)
ou, em alternativa, para evitar a confusão com o cromossoma X, a designação de
“CCR familiar de tipo indeterminado”
(1)
. No trabalho de Rosa I. e colaboradores, pelos menos 6 famílias seriam
classificadas neste grupo (3 casos com critérios de Amsterdam em que não se
detectaram mutações dos genes de tipo MMR e 3 casos com critérios de Amsterdam
modificados em que a pesquisa de mutações foi inconclusiva), ficando por
esclarecer o diagnóstico definitivo nas 6 famílias em que ainda não foi feito o
diagnóstico genético. Estas circunstâncias poderão ter contribuído para
obscurecer algumas características dos carcinomas gástricos desenvolvidos em SL
confirmado por diagnóstico genético que, na série apresentada, corresponde
apenas a 8 famílias.
Importa ainda fazer uma breve referência a vários cenários que, na clínica,
podem simular a SL e que devem ser considerados no diagnóstico diferencial,
tais como:
• Polipose juvenil
(4)
, Polipose hiperplásica
(5)
e Polipose de tipo misto
(6)
(nestas situações os pólipos podem ser muito pouco numerosos, incluindo
pólipos adenomatosos);
• Mutações germinativas de TGFbetaRII e AXIN2 (não associadas a IMS)
(7,8)
;
• Metilação germinativa hemi-alélica deMLH1 (CCR múltiplo com fenótipo de
syndrome de Lynch e IMS, mas sem mutação germinativa de genes de tipo MMR)
(9,10)
.
II) Relativamente à patogénese do CG que se desenvolve em famílias com fenótipo
de SL, o problema centrase em saber se os carcinomas que se desenvolvem no
estômago são causados pelo mesmo defeito genético da SL (mutação germinativa de
um gene do sistema MMR) ou, em alternativa, correspondem à agregação em
famílias com SL de CG esporádico. Este problema é particularmente importante em
Portugal onde a prevalência do CG esporádico é elevada. Na série descrita por
Rosa I., não é possível antecipar se o estudo molecular do CG poderia ter
contribuído para resolver este problema, nomeadamente através da pesquisa de
IMS, da metilação do promotor do gene MLH1 e da pesquisa de mutações somáticas
dos genes de tipo MMR. A IMS poderá não constituir uma característica
distintiva, uma vez que ocorre também no CG esporádico, acompanhando-se de um
fenótipo particular (tumores expansivos do estômago distal, de tipo intestinal,
com infiltrado linfóide abundante)
(11-13)
. Relativamente às mutações somáticas de genes de tipo MMR, foi recentemente
verificada a sua ocorrência em CG esporádico com IMS
(14)
. Estas mutações localizam- se em sequências repetitivas dos genes, sugerindo
que sejam consequência e não causa da IMS no CG esporádico
(14)
. Está por elucidar a relevância desta alteração molecular para, no contexto de
SL, distinguir se o CG é esporádico ou causado pela alteração genética
responsável pela SL. Um último ponto para referir brevemente a Síndroma de
Carcinoma Gástrico Familiar de Tipo Intestinal, definida pelo “International
Gastric Cancer Linkage Consortium” (IGCLC)
(15)
. Este consórcio definiu, para esta síndrome de cancro gástrico familiar,
critérios análogos aos de Amsterdam para a SL, aplicáveis em Países com elevada
prevalência de CG (Portugal e Japão). Já se identificaram casos de CG familiar
com IMS e mutações de genes de tipo MMR (hMLH1)
(16)
. Estas verificações introduzem um nível adicional de complexidade na análise
das famílias com cancro gastrointestinal familiar associado a alterações do
sistema de MMR e IMS.