Pâncreas Divisum no Lado Oculto da Pancreatite Aguda Recorrente: um Desafio
Diagnóstico e Terapêutico
Pâncreas Divisum no Lado Oculto da Pancreatite Aguda Recorrente: um Desafio
Diagnóstico e Terapêutico
INTRODUÇÃO
O pâncreas divisumconstitui a variante anatómica do pâncreas mais frequente,
com uma prevalência de 4,0 a 14,0% em séries de autópsias1. Resulta da ausência
de fusão do sistema de ductos pancreáticos dorsal e ventral durante o segundo
mês de gestação1, pelo que grande parte da secreção exócrina pancreática é
drenada para o duodeno pelo ducto pancreático dorsal (de Santorini) através da
papila minor.
A relação etiológica entre pâncreas divisume pancreatite tem sido nas últimas
décadas objecto de controvérsia
2,3
. Dos argumentos que contrariam esta associação, salientam-se a raridade do
aparecimento de sintomas nos doentes com pâncreas divisum(<5,0%)2 e a
prevalência equiparável de pâncreas divisumem doentes com e sem pancreatite em
séries iniciais2. No entanto, evidências mais recentes favorecem esta
associação num subgrupo de doentes, destacando-se a maior prevalência de
pâncreas divisum em doentes com pancreatite idiopática nas séries de maior
dimensão
4
, a evidência de obstrução relativa ao fluxo através da papila minor (por
métodos de imagem com estimulação por secretina) em doentes com pâncreas
divisume pancreatite5, a melhoria clínica verificada após descompressão
(endoscópica ou cirúrgica) do ducto dorsal em várias séries
4,6-8
e a evidência histológica de inflamação confinada ao sistema ductal dorsal em
peças cirúrgicas
7
. Uma vez que o mecanismo subjacente nos doentes sintomáticos consiste numa
obstrução relativa ao fluxo de drenagem dorsal através da papila minor, alguns
autores preferem designar esta condição de síndrome do ducto dorsal dominante
9
.
Para além do diagnóstico definitivo de pâncreas divisumser difícil, não sendo
habitualmente identificado na ecografia e tomografia computadorizada (TC)
convencionais e implicando a canulação da papila minor na
colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE), constitui também um
desafio terapêutico para o gastrenterologista, sendo tecnicamente exigente e
associando-se a uma taxa de complicações significativa e, por vezes, recidiva
dos sintomas4,6-8.
CASO CLÍNICO
Uma mulher de 61 anos, raça caucasiana, foi referenciada à consulta de
Gastrenterologia, na sequência de 4 episódios de pancreatite aguda num período
de 7 meses. O primeiro episódio não apresentou critérios de gravidade e foi
associado a litíase biliar, tendo sido realizada CPRE, com esfincterotomia
endoscópica (ETE) e extracção de cálculos do ducto colédoco. Não foi nesse
exame realizada pancreatografia, tendo sido a doente submetida a
colecistectomia por via laparoscópica duas semanas após o episódio. Seguiram-se
3 internamentos por pancreatite aguda com intervalos de cerca de 8 semanas,
cuja investigação etiológica inicial não foi esclarecedora. Estes episódios de
pancreatite aguda foram auto-limitados, sem critérios de gravidade clínico-
laboratoriais ou na TC, salientando-se a ausência de elevação das
aminotransferases ou dos parâmetros de colestase durante os episódios e a
inexistência de alterações no lipidograma. Após cada episódio, constatava-se
rápida melhoria clínica mediante suspensão da dieta oral e analgesia, sendo os
episódios de pancreatite intercalados por períodos assintomáticos. A doente
negava história de consumo de álcool, ingestão de medicamentos ou drogas, ou
história familiar de doença pancreática. Os seus antecedentes pessoais eram
irrelevantes, não apresentando internamentos ou cirurgias no passado. Negava
ainda a ocorrência de dor abdominal, alterações do trânsito intestinal ou
queixas dispépticas entre os episódios de pancreatite. Não se registaram
alterações no exame objectivo. Apresentava 3 ecografias e duas TCs abdominais
(realizadas durante os internamentos por pancreatite), sem alterações
relevantes (apenas com edema do pâncreas). Tinha realizado ainda CPRE (repetida
na sequência do segundo episódio de pancreatite), sem evidência de litíase
residual do colédoco, e CPRM (realizada após tentativa sem sucesso de
pancreatografia endoscópica através da papila major), que apresentava múltiplos
artefactos, tendo sido considerada inconclusiva.
Para avaliação do parênquima pancreático, região ampular e via biliar
principal, foi realizada ecoendoscopia. Esta não evidenciou alterações
sugestivas de pancreatite crónica ou coledocolitíase residual. Na ecoendoscopia
a partir do bulbo duodenal (Fig. 1), salientava-se a ausência de stack sign,
não sendo portanto possível a visualização do ducto pancreático a percorrer a
cabeça pancreática paralelamente à via biliar principal. Dada a associação
estabelecida entre a ausência de stack signe pâncreas divisum numa pequena
série prospectiva
10
, valorizou-se esta hipótese diagnóstica. Foi realizada CPRM (Fig. 2), em que
se observou ectasia incipiente do ducto pancreático dorsal (de Santorini) até à
transição do istmo para a cabeça pancreática, onde deixava de ser perceptível
(terminação não visualizada) e ducto ventral (de Wirsung) vestigial a drenar
para a papila major. Dado as alterações na CPRM serem globalmente sugestivas de
pâncreas divisum, foi realizada CPRE para confirmação diagnóstica e com intuito
terapêutico. Após tentativa não conseguida de pancreatografia através da papila
major, procedeu-se a canulação da papila minor com esficterótomo Erlangen-type
(Tapertome, Boston Scientific) e à injeccção de contraste radiopaco,
observando-se o ducto dorsal dominante (Fig. 3a): pacreatografia diagnóstica de
pâncreas divisum. Posteriormente, procedeu-se a ETE da papila minor (fio
diatérmico às 11 horas), com cerca de 6 mm e colocação de prótese plástica 5F '
7 cm no ducto dorsal (Fig. 3b). Não se registaram complicações durante e no
período de observação após o procedimento, tendo a doente alta após 24 horas.
Fig.1. Ecoendoscopia radial – Bulbo duodenal. Parênquima pancreático sem
alterações. Visualização da veia porta (PV), via biliar principal (CBD – Seta)
e artéria hepática (HA). Salienta-se a ausência de stack sign, não sendo
portanto possível a visualização do ducto pancreático a percorrer a cabeça
pancreática paralelamente à via biliar principal (CBD).
Fig. 2. CPRM (aquisição coronal oblíqua, T2). Incipiente ectasia do ducto
pancreático dorsal até à transição do istmo para a cabeça pancreática, onde
deixa de ser perceptível (Seta amarela) (terminação não visualizada). O ducto
ventral (Wirsung) é vestigial (Seta vermelha) e drena para a ampola de Water.
Fig. 3a e 3b. CPRE. Pancreatografia após canulação da papila minor, onde se
observa ducto dorsal dominante (Setas), sendo diagnóstica de pâncreas divisum
(Fig. 3a). ETE da papila minor (fio diatérmico às 11 horas), com cerca de 6 mm,
seguida da colocação de prótese plástica 5F - 7 cm (Fig. 3b).
A doente manteve-se clinicamente estável em ambulatório, cumprindo uma dieta
com restrição lipídica. Foi realizado controlo radiográfico 6 semanas após a
CPRE, onde se excluiu migração da prótese, tendo-se procedido à sua remoção
endoscópica. Após um período de seguimento de cerca de 10 meses, a doente
permanece clinicamente estável, sem registo de recorrência dos sintomas.
DISCUSSÃO
Na maioria das séries4-8, a associação entre pâncreas divisume pancreatite
aguda recorrente é mais consistente do que a associação com pancreatite crónica
ou dor abdominal crónica, esperando-se no primeiro caso um maior benefício da
terapêutica desobstrutiva da papila minor4,6-8.
Curiosamente neste caso clínico, os episódios recorrentes de pancreatite aguda
tiveram início após um primeiro episódio de pancreatite litiásica de baixa
gravidade. Na presença de pâncreas divisum, a obstrução por cálculos biliares
na papila major condiciona apenas obstrução do pequeno ducto ventral (Wirsung
vestigial), pelo que se espera que a pancreatite litiásica não apresente
critérios de gravidade9. Ocorreram posteriormente 3 episódios bem documentados
de pancreatite aguda, intercalados por períodos assintomáticos. Dada a baixa
sensibilidade dos métodos imagiológicos não invasivos convencionais (ecografia
e TC) no diagnóstico de pâncreas divisum4, estes não apresentaram alterações
significativas. A ausência de stack signna ecoendoscopia radial, correspondendo
à impossibilidade de visualizar (a partir do bulbo duodenal) o ducto
pancreático a percorrer paralelamente a porção intra-pancreática da via biliar
principal, associou-se à presença de pâncreas divisum numa pequena série
prospectiva recente10. Este achado, presente em 67,0% dos doentes com pâncreas
divisume em apenas 16,7% do grupo-controlo10, constituiu nesta doente o
primeiro dado suspeito de pâncreas divisum. Mais recentemente, foi descrita a
elevada acuidade da ecoendoscopia linear no diagnóstico de pâncreas divisumnuma
série retrospectiva de 22 casos (confirmados por CPRE) em 162 doentes
(sensibilidade, especificidade, valores preditivos positivo e negativo de 95%,
97%, 86%, e 99%, respectivamente)11. O elevado valor da CPRM na definição da
anatomia pancreática ductal e no diagnóstico de pâncreas divisumestá mais bem
definido na literatura12,13, podendo a sua sensibilidade ser optimizada pela
administração endovenosa de secretina (sensibilidade >90%)13. Neste caso, a
CPRM foi muito sugestiva de pâncreas divisum, definindo a necessidade de
repetir a CPRE com canulação da papila minor. Apesar da emergência destes novos
métodos de imagem (CPRM e ecoendoscopia), promissores na abordagem diagnóstica
do pâncreas divisum, a CPRE permanece actualmente o método diagnóstico
gold-standard
8.
Dado na maioria dos casos (>95%) o pâncreas divisumser considerado uma variante
assintomática, torna-se necessário definir quando está indicada a intervenção
terapêutica
14,6
. Considera-se existir benefício terapêutico nos doentes com pâncreas divisume
dois ou mais episódios bem documentados de pancreatite aguda idiopática, sem
necessidade de qualquer investigação adicional8. A exemplo do presente caso,
estes doentes com pancreatite recorrente idiopática são os que melhor respondem
à terapêutica4,6-8. Por sua vez, nos doentes com pâncreas divisum e pancreatite
crónica, dor abdominal crónica, um episódio isolado de pancreatite, ou sempre
que a relação entre pâncreas divisume pancreatite é duvidosa pela coexistência
de outro factor predisponente (ex. álcool), haverá benefício em demonstrar
primeiro a existência de obstrução relativa ao fluxo através da papila minor
por método não invasivo8,9. A realização de um exame de imagem com estimulação
de secretina poderá identificar quais destes doentes beneficiam mais da
terapêutica8,9. Warshaw et al.9, demonstrou que a evidência ecográfica de
dilatação prolongada (≥ 15 minutos) do ducto dorsal após administração
endovenosa de secretina, correlacionou-se com uma maior probabilidade de
melhoria clínica após a terapêutica: melhoria clínica em 92% dos doentes com
teste de secretina positivo vsmelhoria clínica em 40% dos doentes com teste de
secretina negativo (sem dilatação prolongada).
A estratégia terapêutica mais eficaz do pâncreas divisumcontinua a ser assunto
de controvérsia, tendo sempre como objectivo aliviar a obstrução e melhorar a
drenagem pancreática via papila minor. As diferentes abordagens terapêuticas
endoscópicas disponíveis (tais como a ETE ou dilatação da papila minor, com
posterior colocação de prótese) apresentam eficácia clínica semelhante à
descrita na terapêutica cirúrgica tradicional (esfincteroplastia ou
esfincterectomia da papila minor), com menor morbilidade associada, em várias
séries retrospectivas recentes4,6-8 e numa única série prospectiva14.
Globalmente, espera-se eficácia clínica após endoterapia da papila minor em
cerca de 75% dos doentes com pancreatite recorrente idiopática, traduzindo-se
pela diminuição do número de episódios de pancreatite e hospitalizações7,8. Nos
doentes com pancreatite crónica ou dor abdominal crónica, espera-se eficácia
clínica da terapêutica em cerca de 50% dos doentes (com redução da dor e menor
necessidade de terapêutica analgésica e hospitalizações)7,8. Lans et al.14 no
único estudo prospectivo randomizado existente (englobando 19 doentes com
pâncreas divisume pancreatite recorrente idiopática), descreveu melhoria
sintomática em 90% dos doentes submetidos a terapêutica endoscópica (com
colocação de prótese pancreática no ducto dorsal) vs11% no grupo-controlo.
As taxas de sucesso clínico e de complicações das diferentes técnicas de
tratamento endoscópico são equiparáveis nos vários estudos retrospectivos
publicados. A técnica mais usada é a ETE da papila minor (ou, mais
correctamente, papilotomia, uma vez que a papila minor não possui um verdadeiro
esfíncter), com uma incisão de 4 a 6 mm posicionada entre as 10 e 12 horas,
seguida da colocação de prótese7. A prótese pancreática evita a obstrução
precoce do orifício de ETE por edema e fibrose e diminui o risco de pancreatite
pós-procedimento, devendo ser removida no período máximo de 2 meses, de forma a
evitar lesões ductais induzidas pela prótese e risco de obstrução4,8. Assim,
recomenda-se o controlo radiográfico após aproximadamente 4 semanas e remoção
endoscópica da prótese no caso de não ter migrado espontaneamente para o lúmen
duodenal8. A técnica de ETE realizada no presente caso, considerada a técnica
standard(pull-type), apresentou resultados semelhantes à ETE com faca pré-corte
(needle-knife) na maior série retrospectiva descrita na literatura7. Nesse
estudo7 (n = 184), após um período médio de seguimento de 5 anos, os resultados
das taxas de reintervenção endoscópica (~30%), de reestenose (~20%) e de
complicações precoces (~8%) foram semelhantes em ambos os grupos de tratamento.
Foram descritos resultados semelhantes após dilatação com balão da papila minor
(sem ETE), seguida da colocação de prótese pancreática, numa pequena série
retrospectiva
15
. As taxas de complicações após ETE da papila minor (independentemente da
técnica usada) nas três maiores séries descritas na literatura foram de 8,2%
(pancreatite aguda em 6,5% e hemorragia em 1,7%)7, 11,0% (apenas casos de
pancreatite aguda)8 e 11,7% (pancreatite aguda em 10,7% e perfuração em 1,0%)6.
Apesar do aceitável número de complicações da endoterapia da papila minor,
salientam-se as elevadas taxas de reestenose (~20%) e necessidade de
reintervenção (~30%), esta última particularmente mais elevada no subgrupo de
doentes com pâncreas divisumassociado a pancreatite crónica e alterações
ductais7. São necessários estudos prospectivos para definir se este último
subgrupo de doentes continua a ser candidato à endoterapia da papila minor e
qual o papel actual da terapêutica cirúrgica.