Hemorragia digestiva média de causa pouco frequente
INTRODUÇÃO
A endometriose consiste na presença de tecido endometrial fora da cavidade
uterina, o que induz uma reacção inflamatória crónica. Apresenta uma
prevalência de 5 a 20% entre mulheres em idade fértil
1
. Mas pode também ocorrer durante a menopausa1. Surge mais frequentemente nas
estruturas localizadas dentro da cavidade pélvica como os ovários, as trompas
de Falópio, a vagina, o colo do útero, os ligamentos suspensores do útero ou o
septo rectovaginal. Mas, pode, também, surgir em locais distantes, incluindo
cicatrizes de laparotomia, pleura, pulmão, diafragma, rim, baço, vesícula
biliar, mucosa nasal, canal medular, estômago e mama
2
.
O envolvimento intestinal ocorre numa reduzida percentagem de doentes. Em duas
grandes séries envolvendo mulheres submetidas a laparoscopia por dor pélvica,
encontraram-se implantes de endometriose na serosa intestinal em
aproximadamente 5%. Dois terços dos endometriomas intestinais envolvem a região
rectosigmoideia. Outros segmentos intestinais menos frequentemente envolvidos
incluem: apêndice, região ileocecal e cólon transverso2.
Esta condição está frequentemente associada a dor pélvica e infertilidade, mas
é, também, muitas vezes, assintomática. O espectro de manifestações clínicas é
muito diverso e inespecífico, por outro lado, os achados radiológicos e os
aspectos da colonoscopia óptica podem simular condições inflamatórias ou
neoplásicas, factores que tornam o diagnóstico desta entidade clínica um
verdadeiro desafio. Mesmo em doentes em que se verifica envolvimento da mucosa
intestinal e se realizam biópsias, a especificidade dos achados histológicos é
reduzida.
Dada a frequente incerteza do diagnóstico quase todos os doentes, com
envolvimento intestinal importante, são submetidos a laparotomia exploradora
com ressecção cirúrgica.
CASO CLINICO
Os autores apresentam o caso de uma doente, com 40 anos de idade, que recorreu
ao Serviço de Urgência por episódio de hematoquézia volumosa com horas de
evolução. Negava dor abdominal, vómitos, ou alterações do trânsito intestinal.
Tratava-se de uma doente com diagnóstico de doença hepática crónica, infecção
por vírus C, ex-toxicodependente, com hábitos alcoólicos e tabágicos
acentuados. Na sua história ginecológica descrevia ciclos regulares de 28 dias,
com 4 a 5 dias de fluxo menstrual abundante, menarca aos 11 anos. Salientava-
se, ainda, história de gravidez ectópica aos 31 anos (gesta 1 : para 0), tendo
sido submetida a salpingectomia bilateral. Negava toma recente de anti-
inflamatórios. Os antecedentes familiares eram irrelevantes.
Ao exame objectivo, à entrada, apresentava-se normotensa, apirética, com
palidez cutânea, sudorese e taquicardia sinusal. O abdómen era indolor e o
toque rectal revelava vestígios hemáticos no dedo da luva.
Analiticamente salientava-se anemia hipocrómica mirocítica (7g/dl) e
prolongamento do tempo de protrombina (57%).
A ultrassonografia realizada no Serviço de Urgência mostrou: aumento difuso do
fígado, com parênquima heterogéneo, sem nódulos e distrofia vascular, veia
porta permeável e pequena quantidade de líquido peritoneal nos quadrantes
inferiores do abdómen.
A endoscopia digestiva alta não apresentou alterações. Na videocolonoscopia
observou-se conteúdo hematínico em todos os segmentos do lúmen até ao cego, sem
lesões potencialmente sangrantes na mucosa cólica, exploração do íleon distal
não conseguida (Fig. 1).
Fig. 1. Imagem de videocolonoscopia com visualização de conteúdo hematínico em
todos os segmentos do lúmen observado e sem lesões da mucosa com
características potencialmente sangrantes.
A doente foi internada no Serviço de Gastrenterologia, com perfusão contínua de
octreótido. Ao longo do internamento, fez transfusão de 8 unidades de
concentrado eritrocitário e 2 de plasma fresco congelado, mantendo, contudo,
hematoquézias abundantes. Apresentou, sempre, estabilidade hemodinâmica embora
a hemoglobina tenha descido até 6g/dl.
Decidiu-se pela realização de cápsula endoscópica que ficou retida no íleon, a
partir dos 54 min 20 seg de filme, com visualização de coágulos e líquido
hemático envolvente nesse segmento (Fig. 2).
Fig. 2. Imagem de videocápsula endoscópica evidenciando coágulos e líquido
hemático envolvente.
Após contactado o Serviço de Cirurgia, a doente foi submetida, de imediato, a
intervenção cirúrgica que permitiu identificação de lesão vascular com
hemorragia activa para o lúmen do íleon, localizada a 30 cm da válvula
ileocecal, envolvendo circunferencialmente a parede daquele e partindo do
ovário direito. Foi realizada ressecção segmentar do íleon terminal,
anexectomia direita e apendicectomia profiláctica (Fig. 3.1 e 3.2).
Fig. 3.1. e 3.2. Fotografias obtidas durante a laparoscopia exploradora
observando-se lesão vascular com hemorragia activa para o lúmen do íleon,
localizada aos 30 cm da válvula ileocecal. Partindo do ovário direito, envolve
circunferencialmente uma extensão de cerca de 3 cm da parede do íleon.
Realizada ressecção segmentar do íleon terminal e anexectomia direita.
A histologia da peça cirúrgica confirma o diagnóstico de endometriose do ovário
direito com invasão do íleon.
DISCUSSÃO
A hemorragia digestiva média tem origem entre o ângulo de Treitze a válvula
ileocecal. Frequentemente apresenta-se como hemorragia obscura que é definida
como hemorragia com origem no tracto gastrointestinal aguda ou crónica cuja
causa é desconhecida após realização de endoscopia digestiva alta e baixa. O
método diagnóstico ideal para esclarecimento do foco hemorrágico não está
definido, devendo ser avaliado caso-a-caso. Parece ser sensato repetir a
endoscopia alta e colonoscopia para despistar possível lesão sangrante que
possa ter passado despercebida no exame inicial. Outras opções devem ser
consideradas, tais como, cápsula endoscópica (CE), angiografia, cintigrafia com
eritrócitos marcados com 99mTc ou enteroscopia de duplo balão. Durante a
cirurgia pode também optar-se por realizar enteroscopia intraoperatória. Esta é
a opção mais utilizada perante hemorragia digestiva significativa em doentes
candidatos a ressecção intestinal. Em doentes com hemorragia aguda recorrente
deve ponderar-se a realização de angiografia mesentérica que, embora seja um
exame invasivo necessitando de um débito hemorrágico superior a 0,5 ml/min,
identifica o local da hemorragia em mais de 75% dos casos. Além de que permite
terapêutica por embolização ou injecção de vasopressina. A CE é uma modalidade
diagnóstica recente cujas indicações cresceram significativamente ao longo de
pouco mais de uma década de existência. O estudo da origem da hemorragia
digestiva obscura mantém-se como uma das indicações mais frequentes para a sua
realização. No caso descrito optou-se por realização de CE por ser um exame
disponível no hospital, ao contrário da angiografia, um recurso a mais de 150
Km de distância. Por outro lado, a cirurgia parecia emergente e necessária pelo
que o objectivo da realização da CE era principalmente a identificação do local
de origem da hemorragia.
A acuidade diagnóstica da CE na identificação do foco de hemorragia digestiva
obscura varia entre 38 a 93%
3
. Um estudo de Saurin, publicado em 2003 estima uma acuidade diagnóstica de
67,2% na hemorragia digestiva obscura
4
. Chaoet alconcluem, num estudo publicado em 2005, que a CE é um método seguro,
indolor e eficaz. Numa série de 35 doentes identificou a fonte hemorrágica em
mais de metade com impacto positivo no tratamento5. Em 2006, Ersoypublicou um
estudo em que a CE permitiu conhecer a origem hemorrágica em 17 dos 23 doentes
estudados, correspondendo a 73,9%6.
A causa mais frequente de hemorragia digestiva com origem no intestino delgado
é a hemorragia por angiodisplasias; a hemorragia por úlceras ou enteropatia a
anti-inflamatórios não esteróides, por tumores e por divertículo de
Meckelocorre menos frequentemente.
A hemorragia gastrointestinal, como forma de apresentação da endometriose, é
extremamente rara, devido à localização preferencialmente na serosa e
subserosa, do tecido endometrial.
A etiopatogenia da endometriose está, ainda, pouco esclarecida. Embora algumas
explicações tenham sido descritas, nenhuma foi, até à data, inteiramente
provada (Quadros 1 e 2)
7
.
Quadro 1
Quadro 2
As teorias mais antigas sugerem que a endometriose resulta do transporte de
células endometriais viáveis por um fenómeno denominado menstruação retrógrada.
As células fluem em sentido retrógrado pelas trompas de Falópio e depositam-se
nos órgãos pélvicos, onde se fixam e proliferam. A menstruação retrógrada é um
evento fisiológico comum. Os achados de laparoscopias diagnósticas durante o
período menstrual comprovaram a existência de fluido hemático peritoneal em
cerca de 90% das mulheres com trompas de Falópio patentes8. Contudo, a maioria
das mulheres não tem endometriose pelo que deverá haver distúrbios imunológicos
e hormonais que predispõem para o aparecimento desta condição.
A disseminação através das trompas parece ser a via de migração mais comum
contudo, outras podem ser identificadas, tais como os vasos arteriais, venosos
e linfáticos. Desta forma se pode explicar o aparecimento de focos de
endometriose à distância
8-9
.
Pesquisas recentes sugeriram o envolvimento do sistema imunitário na patogénese
da endometriose. Mulheres com este diagnóstico parecem apresentar aumento da
resposta do sistema imunitário e activação dos macrófagos, e, por outro lado,
mostram redução da imunidade celular com redução da resposta das células T e
células natural killer
10-13
.
A metaplasia, que consiste na transformação de um tipo de tecido noutro, é uma
hipótese avançada na etiopatogenia da endometriose. O endométrio e o peritoneu
derivam do epitélio da mesma parede celómica. O mesotélio peritoneal deverá
manter a capacidade embriológica de se transformar em tecido reprodutivo. Esta
transformação pode ocorrer expontaneamente, ou pode ser desencadeada pela
exposição à irritação crónica provocada pelo fluido menstrual retrógrado4.
Outra teoria postula que células mulerianas remanescentes podem permanecer na
cavidade pélvica durante o desenvolvimento do sistema muleriano. Situações de
estimulação estrogénica, podem induzir a diferenciação destas células em
glândulas e estroma endometrial funcionante8.
Finalmente, a endometriose pode resultar da deposição iatrogénica de tecido
endometrial durante cirurgias ou procedimentos ginecológicos8. No caso clínico
descrito, a doente tinha antecedentes de gravidez ectópica e salpingectomia
bilateral que poderão ter facilitado o transporte de células endometriais para
a cavidade pélvica.
Muitas teorias têm sido postuladas, contudo, parece ser uma combinação de
vários e não um único factor a justificar o aparecimento de endometriose bem
como a sua gravidade.
As células endometriais ectópicas mantêm-se esteroido-sensíveis exibindo uma
resposta hormonal semelhante à do útero nativo onde tiveram origem. No final de
cada ciclo menstrual, quando as alterações hormonais conduzem à descamação da
parede uterina, também induzem alterações no tecido endometrial ectópico que
sangra. Contudo, como estes implantes não se encontram na cavidade uterina, não
podendo por isso ser expelidos pelo canal vaginal, podem levar a inflamação e
edema dos órgãos e tecidos adjacentes causando dor ou outros sintomas
9
.
A dor pélvica aguda ou crónica é comum em doentes com endometriose. Quando há
envolvimento gastrointestinal os sintomas mais frequentes são oclusão
intestinal, rectorragia ou obstipação (Quadro 3)8. Contudo, a hemorragia
gastrointestinal é extremamente rara pois os implantes endometriais fixam-se
geralmente na serosa e subserosa, tendo que perfurar até à mucosa para que
ocorra perda de sangue pelo tubo digestivo.
Quadro 3
A endometriose pélvica ocorre geralmente entre 25 – 30 anos, enquanto as
manifestações extrapélvicas são mais frequentes na faixa etária dos 35 – 408.
Vários distúrbios partilham as manifestações clínicas da endometriose. No
diagnóstico diferencial devem considerar-se doença inflamatória pélvica,
síndrome do intestino irritável, cistite, adenomiose, neoplasia do ovário,
aderências pélvicas, cancro do cólon, apendicite, doença diverticular, entre
outros6.
O método goldstandarddo diagnóstico de endometriose é a visualização directa do
implante. A laparoscopia é a técnica diagnóstica preferencial uma vez que esta
entidade está frequentemente localizada nos órgãos pélvicos. A exploração
laparoscópica não deve ser realizada durante ou após 3 meses de tratamento
hormonal de forma a evitar subdiagnósticos9. A endometriose pode manifestar-se
sob a forma de lesões, quistos, nódulos, pólipos com tamanho até 10 cm,
rodeados por uma extensão variável de fibrose adjacente aos ovários,
superfícies serosas ou peritoneu. Em alguns casos, forma-se um quisto no ovário
criando um endometrioma, por vezes denominado “quisto chocolate” quando está
preenchido por sangue “velho” castanho escuro. Um endometrioma pode permanecer
silencioso até à sua rotura, causando sintomatologia aguda e requerendo, quase
sempre, intervenção cirúrgica urgente14.
No caso clínico descrito, terá havido formação de um endometrioma na superfície
do ovário direito, preenchido com sangue escuro, característico dos já
descritos “quistos de chocolate”. O crescimento do quisto permitiu a sua
fixação ao íleon e invasão progressiva das várias camadas da parede intestinal,
da serosa até à mucosa. A rotura do quisto para o lúmen intestinal originou o
episódio agudo de hematoquézias de grande volume, que motivou a ida da doente à
urgência, e que apenas se resolveu com ressecção do segmento intestinal
envolvido.
Destaca-se a importância da apendicectomia perante a suspeita do diagnóstico: o
apêndice deve ser sempre analizado, pois em 2 a 4% dos casos há endometriose
apendicular
15
. No caso descrito não se confirmou esta condição.
CONCLUSÃO
A localização extrapélvica mais frequente da endometriose é no tubo digestivo.
Cerca de 2/3 dos endometriomas intestinais envolvem a região rectosigmóide,
sendo a localização no íleon, apêndice, cego e cólon transverso pouco frequente
e quase sempre assintomática. A hemorragia gastrointestinal, como forma de
apresentação da endometriose, é extremamente rara, devido à localização
preferencialmente na serosa e subserosa, do tecido endometrial.
O caso descrito pretende relembrar esta entidade como um diagnóstico raro mas
possível que deve ser considerado perante uma doente em idade fértil com
hemorragia digestiva de causa obscura. O seu diagnóstico constitui um
verdadeiro desafio para o clínico, sendo, muitas vezes, apenas confirmado na
laparoscopia urgente realizada no seguimento de um episódio agudo.
Atendendo à dificuldade na abordagem diagnóstica da hemorragia GI obscura, que
com frequência tem origem no intestino delgado, em muitos doentes opta-se pela
cirurgia sem um conhecimento prévio da causa da hemorragia. Contudo, há
actualmente vários métodos disponíveis que permitem o estudo do intestino
delgado, nomeadamente em situação de hemorragia; a cápsula endoscópica e a
enteroscopia de duplo balão são os mais frequentemente utilizados, com
resultados bastante satisfatórios.