Tuberculose gástrica e intestinal
Tuberculose gástrica e intestinal
Gastric and intestinal tuberculosis
Pedro Barreiro, Miguel Bispo, Gilberto Couto, Leopoldo Matos
Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, Serviço de Gastrenterologia, Lisboa,
Portugal;
Correspondência
Apresentamos o caso clínico de um homem de 34 anos, natural da Guiné-Bissau,
sem antecedentes pessoais conhecidos, que inicia quadro insidioso com 6 meses
de evolução de febre episódica, anorexia e perda de peso (8% do peso corporal).
O quadro era acompanhado de hematoquézias recorrentes, em pequena/moderada
quantidade, no último mês. No exame objectivo, o doente encontrava-se
emagrecido (IMC – 17), com mucosas descoradas, subfebril (37,2° C) e com
adenopatias axilares bilaterais móveis, elásticas e indolores. Analiticamente
destacava-se anemia microcítica (hemoglobina de 8 g/dl com volume globular
médio de 63,4 fl), linfopenia (7%) e velocidade de sedimentação aumentada (120
mm/1ªh). O estudo serológico revelou infecção pelo vírus VIH-1, com contagem de
CD4+ de 96 cél./μl. A tomografia computorizada (TC) toracoabdomino-pélvica
mostrou múltiplas adenopatias axilares bilaterais e lombo-aórticas. Realizou
colonoscopia total que identificou no cego lesão discretamente proeminente,
arredondada, com cerca de 15 – 20 mm no seu maior eixo, de coloração violácea,
com ulceração superficial estrelada central. As biópsias revelaram extensa
ulceração da mucosa com presença de bacilos ácido-álcool resistentes com a
coloração de Ziehl-Neelsen. Durante este período de investigação, iniciou
quadro de epigastralgias pelo que realizou endoscopia digestiva alta que
mostrou no segmento proximal do corpo gástrico pregas volumosas, confluentes e
irregulares. As biópsias da mucosa gástrica alterada identificaram gastrite
crónica activa com múltiplos granulomas epitelióides com necrose central
compatíveis com tuberculose. Para avaliar a extensão da doença no aparelho
digestivo, foi realizado enteroscopia por videocápsula que não identificou
alterações do intestino delgado. Estabeleceu-se assim o diagnóstico de
tuberculose com atingimento ganglionar, gástrico e cólico em doente
imunodeprimido por infecção pelo VIH. Iniciou terapêutica anti-bacilar com
esquema quádruplo (isoniazida, rifampicina, pirazinamida e etambutol) que
deverá manter pelo menos durante 12 meses.
Nos últimos anos, a tuberculose gastrintestinal tem aumentado a sua incidência
devido à epidemia do VIH, mantendo-se contudo uma patologia rara nos países
desenvolvidos
1
,2. Podendo atingir qualquer segmento do aparelho digestivo, a região ileo-
cecal é a localização mais frequente (75% dos casos)1,
3
. Pelo contrário, o envolvimento gástrico é raro, possivelmente devido à acidez
e escassez de tecido linfóide deste segmento, e à rápida passagem do seu
conteúdo para o intestino delgado
4
. Ainda que pouco frequente, o atingimento multisegmentar do aparelho digestivo
pode ocorrer como é exemplo este caso clínico. A ausência de sinais ou sintomas
específicos ou de achados radiológicos e endoscópicos típicos, exige um elevado
grau de suspeição clínica para se estabelecer o seu diagnóstico1,4. A
identificação histológica de granulomas caseosos e/ou a identificação do
Mycobacteriumtuberculosis, quer por exame directo, cultural ou técnicas de PCR,
permite estabelecer o diagnóstico1,
2. A terapêutica tuberculostática apresenta elevada taxa de cura. A ausência de
estudos controlados impede a identificação do esquema terapêutico ideal,
contudo o esquema triplo com isoniazida, pirazinamida e rifampicina, por um
período de 9 a 12 meses, tem-se revelado adequado2. Nos doentes com infecção
pelo VIH, e devido à maior taxa de resistências aos tuberculostáticos, dever-
se-á adicionar outro anti-bacilar (etambutol ou estreptomicina) com a eventual
necessidade de prolongamento do tempo de terapêutica2. A terapêutica cirúrgica
fica assim reservada para complicações gastrintestinais da tuberculose como
perfuração, hemorragia ou obstrução, ou caso existam dúvidas no diagnóstico,
nomeadamente suspeita de lesão neoplásica
5
.
Fig. 1 e 2. Lesão discretamente proeminente e ulcerada na região cecal, perto
do orifício apendicular.
Fig. 3. Pregas espessadas e irregulares no corpo gástrico.