Permeabilidade Intestinal, Endotoxemia e Inflamação na Cirrose: Que Relação?
Permeabilidade Intestinal, Endotoxemia e Inflamação na Cirrose: Que Relação?
Intestinal Permeability, Endotoxemia and Inflammation in Cirrhosis: What
Relationship?
Pedro Pimentel-Nunes1
1Serviço de Fisiologia da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto,
Serviço de Gastrenterologia do IPO - Porto ' Portugal; Email:
pedronunesml@msn.com.
No presente volume do Jornal Português de Gastrenterologia o artigo
Permeabilidade Intestinal em Doentes com Cirrose Hepática: Correlação com
Endotoxinemia e Níveis Circulantes de TNFα, IL - 1 e IL - 61 avaliou a relação
entre permeabilidade intestinal, endotoxemia e inflamação em dois grupos
distintos: cirróticos e indivíduos sem cirrose que realizaram endoscopia
digestiva alta (controlos). Os autores para avaliarem a permeabilidade
intestinal usaram o teste da lactulose/manitol (Lac-Man), que é considerado o
teste mais eficaz para avaliar a presença deste fenómeno, e cujos resultados em
doentes cirróticos são já bem conhecidos1 Como os próprios autores discutem, os
resultados obtidos foram algo anómalos já que foram bastante elevados em ambos
os grupos, mas particularmente no grupo dos controlos, onde foram
inclusivamente superiores aos dos cirróticos. Os autores sugeriram que este
fenómeno poderia ser atribuído aos Inibidores da Bomba de Protões (IBPs),
contudo, a associação entre IBPs e o aumento da permeabilidade intestinal em
indivíduos saudáveis não está estabelecida na literatura conhecida. Mesmo nos
cirróticos essa associação é muito discutível e, portanto, os resultados
obtidos poderão dever-se a outros factores, nomeadamente a uma grande
heterogeneidade do grupo controlo. De qualquer forma, os valores foram
superiores aos de referência o que parece confirmar o aumento da permeabilidade
intestinal nos doentes com cirrose, já demonstrado noutros estudos2,3.
Curiosamente, este aumento da permeabilidade intestinal não se acompanhou de
aumento significativo dos níveis séricos de LPS (endotoxemia). Sabe-se que a
medição de LPS sérico é muito dependente do método de colheita, varia de acordo
com a hora do dia e jejum, entre outros factores, e por essa razão muitos
autores procedem à medição de outros factores séricos para confirmar um aumento
da endotoxemia, particularmente quando de forma crónica. De facto, um aumento
da endotoxemia acompanha-se de um aumento da produção de LBP (LPS - Binding
protein) e de sCD14, dois co-factores essenciais para o reconhecimento
imunológico do LPS. Vários estudos mostram que nos cirróticos, mesmo quando os
níveis séricos de LPS são sobreponíveis aos controlos, os níveis de LBP e de
sCD14 estão muito aumentados, reflectindo de forma mais precisa um estado de
endotoxemia4,5. Traduzindo uma muito provável endotoxemia, apesar de níveis de
LPS sobreponíveis aos controlos, os cirróticos apresentaram um aumento dos
níveis séricos de citocinas pró-inflamatórias. Apesar de a doença hepática
crónica de etiologia alcoólica ser considerada uma situação pró-inflamatória
não é muito consensual que os doentes abstinentes com cirrose apresentem de
forma basal níveis aumentados de citocinas pró-inflamatórias6-8. Muitos autores
defendem mesmo nesta fase da doença uma situação de paralisia imunológica
decorrente de endotoxemia crónica, condicionando uma menor e atrasada resposta
inflamatória em relação a vários estímulos o que pode contribuir para o elevado
risco de infecções nestes doentes5,9,10. Parecendo confirmar esta teoria alguns
estudos mostram níveis aumentados de citocinas pró-inflamatórias apenas nos
doentes com consumo de álcool activo, na fase de hepatite aguda/crónica ou em
doentes com cirrose descompensada e não nos doentes abstinentes e com cirrose
compensada5-8. Alguns dos doentes neste estudo eram doentes internados e,
portanto, provavelmente descompensados, o que poderá justificar o aumento das
citocinas pró-inflamatórias neste grupo de doentes.
Apesar de alguns resultados discordantes com a literatura, os autores também
não encontraram qualquer correlação entre os valores de permeabilidade
intestinal, endotoxemia e inflamação. Isto está de acordo com alguns trabalhos
publicados que também falharam em encontrar uma correlação directa entre estes
factores5,11. O que poderá justificar esta discrepância ainda não está
esclarecido.
Portanto, em conclusão, a cirrose acompanha-se de um aumento da permeabilidade
intestinal, endotoxemia e aumento das citocinas circulantes, principalmente em
doentes descompensados. Contudo, estes fenómenos podem não ocorrer
simultaneamente, como é sugerido pelos resultados deste estudo. Isto traduz que
a cascata de aumento de permeabilidade intestinal-endotoxemia-inflamação é
modulada por diversos outros factores (por exemplo imunológicos ou grau de
shunts portossistémicos) que poderão ser cruciais para o resultado final
(tolerância versusinfecção e/ou inflamação). Como sabemos a infecção é cada vez
mais uma importante causa de mortalidade nos doentes cirróticos12, 13.
Actualmente, não temos ao nosso dispor instrumentos que nos permitam avaliar
quais os doentes que têm maior risco de infecção. São necessários estudos nesta
área que procurem perceber a fisiopatologia dos fenómenos de permeabilidade/
endotoxemia/inflamação/infecção no doente cirrótico de maneira a ser possível a
estratificação do risco dos doentes e eventuais intervenções terapêuticas.