Um Caso Raro de Peritonite Fúngica Espontânea em Doente com Cirrose Hepática
Não-Hospitalizado
INTRODUÇÃO
A peritonite espontânea é uma complicação grave e frequente da cirrose hepática
avançada, com uma prevalência de 10 a 30% nos doentes hospitalizados com
cirrose e ascite 1. É, habitualmente, uma infecção monobacteriana, sendo os
bacilos Gram negativos os agentes mais frequentes1. Por sua vez, o isolamento
de fungos é muito raro. Num estudo retrospectivo de 233 casos de peritonite
espontânea, os fungos corresponderam a 2,7% dos agentes isolados2. ACandida
albicans, um fungo comensal da cavidade oral, intestino, vagina e pele é o
agente mais frequente, podendo apresentar patogenicidade oportunista em doentes
com cirrose hepática3.
O isolamento de fungos no líquidoascítico encontra-se, classicamente, associado
a casos deperitonite secundária4, sendo que, na ausência de diálise peritoneal,
cirurgia abdominal recente, ou factores de risco para candidíase disseminada,
favorece o diagnóstico de perfuração gastrointestinal3. Por outro lado, a
cirrose hepática (ao contrário da infecçãoVIH) foi identificada como um factor
de risco independente para peritonite por Cryptococcus (um fungo ubiquitário do
solo)5,6 . São apontados como factores predisponentes para peritonite fúngica
espontânea nos doentes cirróticos, a insuficiência hepática grave (Child-Pugh
C), o internamento hospitalar e a realização de antibioterapia de largo
espectro6,7. Em doentes com cirrose hepática não hospitalizados, a peritonite
fúngica espontânea constitui uma entidade extraordinariamente rara, com um
número limitado de casos descritos na literatura7-13. O habitual baixo índice
de suspeição clínica desta entidade, associado às dificuldades no isolamento de
fungos nos exames culturais (que, na generalidade, apresentam um crescimento
lento), condicionam o atraso do seu diagnóstico e contribuem para a elevada
mortalidade associada.
CASO CLÍNICO
Uma mulher de 64 anos, empregada de limpeza, que vivia sozinha num ambiente
higieno-sanitário precário, com história de consumo excessivo de álcool
(superior a 150 g/dia), recorreu ao SU na sequência de um quadro clínico, de
agravamento insidioso, de aumento do volume abdominal, icterícia, astenia e
anorexia, com cerca de 1 mês de evolução. Havia ainda referência ao
aparecimento de dor abdominal moderada, persistente, mais intensa nos flancos,
sem factores de agravamento ou alívio, acompanhada de agravamento da astenia e
mal-estar geral, nas 48 a 72 horas prévias ao internamento. Manteve até ao
momento do internamento consumo excessivo de álcool. Negava a ocorrência de
febre, alterações do trânsito intestinal ou das características das fezes. Não
apresentava seguimento médico regular ou registo de internamentos anteriores.
Desconhece-se a toma de medicamentos, nomeadamente antibióticos.
Objectivamente, encontrava-se hipotensa (PA 88/61mmHg), taquicárdica,
apirética, pálida, desidratada,ictérica, com hálito etílico, sintomas de
encefalopatia hepática grau II e vários estigmas de doença hepática crónica. O
abdómen eragloboso, com circulação colateral visível, facilmentedepressível,
com dor moderada à palpação profunda (difusa), sem dor à descompressão, com
timpanismo central emacicez nos flancos, sinal de onda líquida positivo e
ruídos hidro-aéreos mantidos. Não apresentava alterações no toque rectal, tendo
fezes de características normais. Analiticamente, apresentava: anemia
macrocítica (hemoglobina 8,8 g/dL, VGM 112 fl), leucocitose (19.300 x 106/L)
com neutrofília (91,2%), trombocitopenia (91.000 x 106/L), PCR elevada (15,2
mg/dL), prolongamento do tempo deprotrombina (26,2/11,0 s), hiperbilirrubinémia
(9,2 mg/dL), hipoalbuminémia (2,0 mg/dL) e aumento das aminotransferases (AST
126 UI/L, ALT 29 UI/L). Na ecografia, salientavam-se aspectos sugestivos de
cirrose hepática (fígado dismórfico, com atrofia relativa do lobo hepático
direito e contornos bosselados), esplenomegália homogénea e ascite em
quantidade moderada, sem alterações da vesícula, vias biliares, pâncreas, baço
e rins. Radiograficamente (incidências AP e abdómen tangencial), apresentava
pequeno derrame pleural bilateral, sem evidência de pneumoperitoneu. Foi
realizada paracentese, com drenagem de líquido turvo, purulento, cuja análise
revelou: 16.900 leucócitos/mm3 (69% neutrófilos), LDH 1740 UI/L, proteínas 3,3
g/dL, glicose 1,0 mg/dL, amilase e bilirrubina normais. O exame directo
(coloração deGram) foi negativo.
Dada a evidência de peritonite complicada de choque séptico, em doente com
cirrose e insuficiência hepática grave (com provável hepatite alcoólica
sobreposta), a doente foi admitida na Unidade de Cuidados Intensivos de
Gastrenterologia e Hepatologia. Por suspeita de peritonite secundária (com base
na análise bioquímica do líquido ascítico)14, foi iniciada antibioterapia com
meropenem (após colheitas para exames culturais). No entanto, a
instabilidadehemodinâmica não permitiu a realização imediata de tomografia
computadorizada (TC), iniciando-se reposição volémica e suporte aminérgico. As
primeiras horas de internamento foram complicadas de falência respiratória (com
insuficiência respiratória global) e renal (anúrica), comacidémia mista grave,
pelo que foi iniciada ventilação mecânica invasiva e, posteriormente,
hemodiafiltração veno-venosa contínua. Apesar de conseguida estabilização
hemodinâmica (sob perfusão decatecolaminas), manteve-se dependente de elevadas
concentrações de oxigénio (Fi O2 100%), com aparecimento de padrão radiológico
de síndrome de dificuldade respiratória aguda (ARDS). Analiticamente, manteve
parâmetros inflamatórios elevados e alterações diagnósticas de coagulação
intravascular disseminada. Dada a gravidade do quadro clínico, com falência
multiorgânica (já sobantibioterapia de largo espectro), não foi
repetidaparacentese às 48 horas. Registouse refractariedade do choque a doses
sucessivamente mais elevadas de catecolaminas, tendo-se verificado o óbito ao
4º dia de internamento.
Foi isolada em cultura de líquidoascítico (postmortem, 6 dias após a admissão)
Candida albicans. Não foram isolados outros microrganismos (aeróbios/
anaeróbios). Aurocultura e hemoculturas foram negativas. A serologia VIH e o
estudo etiológico para despiste de outras causas de doença hepática crónica
(incluindo hepatites víricas) foram negativos. Foi realizada colheita
percutânea de fragmento hepático postmortem, onde se observaram fragmentos de
material fibrino-granulocitário com esporos e hifas de um fungo tipo Cândida.
Foi realizada autópsia (primariamente direccionada para a exclusão de uma
potencial fonte de infecção peritoneal), que revelou aspectos macroscópicos de
cirrose micronodular, com ascite não loculada (1800 cc), baço séptico,
congestão e edema pulmonar, não tendo evidência de perfuração do tubo digestivo
(parede gástrica e intestinal sem sinais de isquémia ou perfuração) ou outra
causa identificável de peritonite secundária.
DISCUSSÃO
A peritonite fúngica é uma entidade rara na prática clínica, reconhecendo-se
como grupos de maior incidência os doentes em diálise peritoneal, os doentes
com perfuração (primária ou iatrogénica) do tubo digestivo e os doentes com
factores de risco para candidíase disseminada (doentes imunosuprimidos,
habitualmente sob antibioterapia de largo espectro)4,7.
Se, por um lado, o isolamento de espécies deCandida no líquido ascítico aumenta
a suspeita de peritonite secundária (por perfuração gastrointestinal)4, por
outro lado, a presença de cirrose hepática avançada com ascite constituí o
único factor de risco independente identificado para peritonite fúngica
espontânea, em detrimento de outras causas de imunosupressão (nomeadamente, a
infecção VIH)5,6. Aperitonite fúngica espontânea encontra-se, então, definida
na literatura como uma complicação rara da cirrose com insuficiência hepática
grave, na presença de elevados índices de gravidade, muitas vezes no contexto
deantibioterapia prévia6,7. A Candida albicans constitui o agente etiológico
mais frequente3, estando também descritas séries de casos de peritonite
espontânea por Cryptococcus neoformans5,12 e casos clínicos isolados por
Candida glabrata,Candida tropicalis eCandida parapsilosis7,8.
A exemplo do caso apresentado, as manifestações clínicas da peritonite fúngica
espontânea são inespecíficas, surgindo no contexto de descompensação grave da
cirrose hepática, sendo clinicamente indistinguível da peritonite bacteriana
espontânea (ou de causa secundária) em doentes cirróticos6,7. Dado o habitual
baixo índice de suspeição clínica, em conjugação com a maior dificuldade no
isolamento de fungos nos meios de cultura (devido ao seu crescimento lento),
cuja pesquisa não é realizada por rotina na maioria dos centros, a peritonite
fúngica é habitualmentesubdiagnosticada ou de diagnóstico tardio6'8. No
presente caso, o perfil bioquímico do líquido ascítico favorecia o diagnóstico
de peritonite secundária14. Foi demonstrado prospectivamente14 que a presença
de pelo menos 2 dos 3 critérios classicamente propostos para peritonite
secundária (proteínas no líquido ascítico > 1 g/dL, glicose < 50 mg/dL, LDH >
limite superior do normal no soro) é altamente sensível, mas pouco específico
para peritonite secundária (especificidade, 45%), podendo estas alterações
estar presentes naperitonite espontânea de diagnóstico tardio. No entanto, na
sua presença torna-se necessário excluir uma causa secundária de peritonite14.
Neste caso, a autópsia excluiu peritonite perfurada e peritonite secundária não
perfurante (dada a ausência de infecção intra-abdominal loculada). A presença
de contagens muito elevadas de leucócitos no líquido ascítico é, igualmente,
inespecífica em relação à etiologia da peritonite15, embora contagens mais
elevadas sejam mais frequentes na peritonite secundária15. A punção aspirativa
de líquido ascítico turvo, acastanhado ou purulento, com concontagens muito
elevadas de leucócitos (de predomínio polimorfonuclear), encontra-se descrita
em outros casos bem documentados de peritonite fúngica espontânea7,9,10. Cure
et al 7, descreveu um caso de peritonite espontânea porCandida albicans numa
doente com cirrose criptogénica, com uma contagem inicial de 20.000 leucócitos
no líquido ascítico (95% dos quaispolimorfonucleados), tratada eficazmente
comcaspofungina (50 mg/dia).
Considera-se que a hipótese de peritonite fúngica espontânea deve ser
valorizada na ausência de uma resposta clínica e analítica à antibioterapia
recomendada para aperitonite bacteriana espontânea, às 48 horas, e em que as
culturas de líquido ascítico permanecem negativas10. Nestas condições e,
particularmente, na presença de outros factores de risco para candidíase
disseminada (como a realização deantibioterapia prévia), justifica-se o início
de terapêutica anti-fúngica empírica9,10, bem como a pesquisa do antigénio
criptocócico no soro e no líquido ascítico5. Salienta-se, no entanto, que não
existem normas de consenso estabelecidas para o início da terapêutica anti-
fúngica na cirrose hepática.
A terapêutica, no caso de suspeita ou confirmação de peritonite fúngica
espontânea, também não está definida. A anfotericina B é o antibiótico de
primeira linha na peritonite secundária porCandida albicans10. No entanto, o
fluconazol (400 mg/dia)9 e, também, a caspofungina (70 mg/dose inicial e 35 mg/
dia, na insuficiência hepática)7 já demonstraram ser eficazes, sendo
alternativas empiricamente aceitáveis, dado que aCandida albicans constitui o
agente mais frequente. Na peritonite criptocócica, a anfontericina B é o
antibiótico mais usado6. Neste caso clínico, perante a suspeita clínica de
peritonite secundária, foi iniciada monoterapia commeropenem, cuja eficácia foi
demonstrada prospectivamente nas infecções intra-abdominais complicadas de
peritonite16.
No caso apresentado, o baixo índice de suspeição (pela raridade da peritonite
fúngica einespecificidade das manifestações), a gravidade da situação clínica
subjacente (acuteon chronic liver failure, por hepatite alcoólica sobreposta) e
o atraso no isolamento cultural, resultou na falência da terapêutica e morte.
Pela presença habitual dos factores mencionados, a taxa de mortalidade
daperitonite fúngica espontânea reportada na literatura é muito elevada. Numa
revisão recente de 33 casos de peritonite criptocócica em doentes cirróticos17,
a taxa de mortalidade intra-hospitalar foi de 81,0%, com umasobrevida média de
13 dias. Num estudo retrospectivounicêntrico de 10 doentes com cirrose hepática
eperitonite espontânea por espécies de Cândida3, a mortalidade intrahospitalar
foi de 50% aos 6 meses de 90% e ao 1 ano de 100%. O maior índice de suspeição
clínica desta entidade poderá diminuir a sua mortalidade a curto prazo. Neste
caso, o recurso ao hospital numa fase tardia de evolução da doença, numa mulher
com apoio social precário, foi determinante para a evolução desfavorável.