Evolução da mortalidade por cancro do pulmão em Portugal (1955-2005)
Introdução
O cancro do pulmão é um dos tumores malignos mais frequentes em todo o Mundo.
Dada a sua elevada letalidade, é a causa de morte mais comum por cancro
1
. Na Europa, em 2006, foi o terceiro cancro mais incidente, estimando-se que
tenha contribuído para 1/5 dos óbitos por cancro2.
O consumo de tabaco é a principal causa de cancro do pulmão, sendo responsável
por 70 a 92% das mortes por este cancro, em adultos, nos países
industrializados
3
. A relação entre tabagismo e mortalidade atribuível ao consumo tabágico foi
modelada em quatro estádios, sendo sugerido que são necessárias três a quatro
décadas para que as variações no consumo tabágico se reflictam em variações na
mortalidade4.
A prevalência de fumadores tem diminuído na maioria dos países da Europa
Ocidental e na América do Norte
5, 6
. Portugal tem apresentado uma das mais baixas prevalências de tabagismo entre
os países da União Europeia (UE)
7,8
e a sua evolução temporal parece seguir o padrão observado noutros países
desenvolvidos do Sul da Europa, com declínio no consumo tabágico no sexo
masculino e um aumento no sexo feminino ao longo dos últimos 20 anos7,9-11.
Assim, com base em estudos de prevalência de consumo tabágico na última década,
era possível especular que Portugal se posicionasse no início do terceiro
estádio da epidemia tabágica
12
, que se caracteriza pela diminuição na prevalência de homens fumadores e no
aumento da proporção de mulheres fumadoras.
Como esperado pela observação das tendências no consumo de tabaco nas últimas
décadas, observou-se, na maioria dos países europeus, um declínio na taxa de
mortalidade por cancro do pulmão nos homens, sobretudo nos mais jovens,
enquanto nos mais velhos se observou uma estabilização ou um início de
diminuição13.
No entanto, até 1998 não se observava ainda um decréscimo nas taxas de
mortalidade por cancro do pulmão em Portugal13.
O conhecimento da evolução da mortalidade por cancro do pulmão em ambos os
sexos contribui para a classificação correcta de Portugal relativamente à
posição ocupada na evolução da epidemia tabágica. O objectivo do presente
estudo foi descrever a tendência secular da mortalidade por cancro do pulmão em
homens e mulheres portugueses com idades entre 35 e 74 anos, para o período
entre 1955 e 2005, identificando eventuais pontos de inflexão na evolução da
mortalidade.
Métodos
Consultou-se a base de dados da Organização Mundial de Saúde14, recolhendo-se
dados anuais relativos às taxas de mortalidade brutas e número de óbitos por
cancro do pulmão (classificação internacional das doenças (CID) 10: C33-34) em
Portugal para o período 1955-2003. Para os anos de 2004 e 2005, foi consultada
a base de dados do Instituto Nacional de Estatística15,16 para recolha
informação sobre o número de óbitos pela mesma causa e população residente em
Portugal.
A informação organizou-se em grupos etários com cinco anos de amplitude para
idades entre 35 e 74 anos. Calcularam-se as taxas de mortalidade padronizadas
pelo método directo (população mundial, 1960
17
) e respectivo erro-padrão, para os grupos etários 35-74, 35-44, 45-54, 55-64 e
65-74 anos, tilizando o softwareSTATA®, versão 9.1.
Realizou-se uma análise de regressão joinpointpara o cálculo da variação anual
da mortalidade no período 1955-2005, considerando pontos de mudança na evolução
temporal das taxas. Ajustaram-se sucessivamente modelos em que se assumiu um
número diferente de joinpoints, desde zero (caso em que a tendência é
representada por um único segmento de recta) até três. Os modelos mais bem
ajustados para cada grupo etário estudado em homens e mulheres são apresentados
neste estudo. A variação percentual anual (VA%) das taxas de mortalidade, para
cada período, calculou-se assumindo uma distribuição de Poisson, em que o ano é
a variável independente. Utilizou-se o programa Joinpoint, versão 3.3.118.
Resultados
Entre 1955 e 2005, em homens com idades entre 35 e 74 anos, observou-se uma
estabilização da evolução da mortalidade por cancro do pulmão (Quadro I). O
primeiro ponto em que se observaram modificações significativas ocorreu em 1986
(IC 95%: 1976-1988), momento a partir do qual se verificou uma desaceleração da
VA%, passando de 3,77 (IC 95%: 3,53-4,01), entre 1955-1986, para 1,52 (IC 95%:
0,59 -2,46) entre 1986 e 1996 (IC 95%: 1990-2003). De 1996 até 2005, a taxa de
mortalidade variou -0,15%/ano (IC 95%: -0,99 -0,69).
Exceptuando homens entre 45 e 64 anos, observaram-se estimativas pontuais da
VA% negativas (embora não significativamente inferiores a zero) nas tendências
mais recentes de todos os grupos etários considerados (Quadro I). Os pontos de
mudança ocorreram em 1993, 1990 e 1997, para os grupos etários 35-44, 55-64 e
65-74 anos, respectivamente (Fig. 1).
Fig. 1' Variação da taxa de mortalidade por cancro do pulmão, para o sexo
masculino (taxas de mortalidade padronizadas para a idade, método directo,
população mundial entre 1955 e 2005, por escalão etário) (escala
semilogarítmica)
Nas mulheres com idades entre 35 e 74 anos, a taxa de mortalidade por cancro do
pulmão aumentou de forma constante 1,6%/ano (IC 95%: 1,40 -1,77) de 1955 a 2005
(Tabela II).
Numa análise estratificada por grupo etário, a VA% foi de 1,20 (IC95%: 0,64 -
1,77), 1,65 (IC95%: 1, 31 -1,98) e 1,46 (IC95%: 1,17-1,76) para mulheres entre
35 e 44 anos, 45 e 54 anos e 55 e 64 anos, respectivamente, no mesmo período
(Fig. 2).
Fig. 2' Variação da taxa de mortalidade por cancro do pulmão, para o sexo
feminino (taxas de mortalidade padronizadas para a idade, método directo,
população mundial entre 1955 e 2005, por escalão etário) (escala
semilogarítmica)
Discussão
Entre 1955 e 2005, verificou-se uma estabilização da mortalidade por cancro do
pulmão em homens entre 35 e 74 anos, mas no mesmo período e grupo etário a
mortalidade aumentou de forma constante no sexo feminino.
Segundo o modelo proposto por Lopez em 199419, a epidemia do tabaco é
constituída por quatro estádios, baseados na mortalidade atribuída ao tabaco,
na prevalência de adultos fumadores regulares e no consumo de tabaco
(quantidade de cigarros por adulto num determinado período de tempo). O estádio
1 marca o início da epidemia numa população, caracterizando-se pela baixa
prevalência de fumadores, baixo consumo de cigarros e morbilidade causada pelo
tabaco ainda não observável, sendo o cancro do pulmão praticamente inexistente.
Durante o segundo estádio, a prevalência de homens fumadores aumenta
rapidamente. O aumento da prevalência de mulheres fumadoras é também rápido,
ocorrendo uma a duas décadas depois. Nesta altura, a frequência de casos de
cancro do pulmão aumenta dez vezes.
No estádio 3, inicia-se uma diminuição na prevalência de homens fumadores, o
mesmo acontecendo, no final deste estádio, à prevalência de mulheres fumadoras.
A estabilização da mortalidade por cancro do pulmão em homens começa a notar-se
no final do estádio 3. No estádio 4, continua a decrescer a prevalência de
fumadores em ambos os sexos e é atingido o pico da mortalidade atribuída ao
tabaco, considerando ambos os sexos. Cerca de uma década depois de atingido o
pico, a mortalidade atribuída ao tabaco desce a valores inferiores a 30%,
continuando progressivamente a decrescer. Contrariamente, nas mulheres, a
mortalidade atribuída ao tabaco sobe rapidamente, atingindo o máximo de cerca
de 20-25% de todas as mortes, inferior ao pico atingido pelos homens cerca de
20 anos antes.
Apesar do aparecimento de novos meios de diagnóstico e tratamentos20, a
letalidade do cancro do pulmão decresceu pouco nas últimas décadas1. Na Europa,
entre 2000 e 2002, a sobrevivência relativa aos 5 anos por cancro do pulmão foi
aproximadamente de 11%
21
. Assim, as taxas de mortalidade continuam a fornecer uma boa aproximação das
taxas de incidência desta doença. Embora o cancro do pulmão seja menos
frequente em Portugal do que noutros países da UE, verificou-se, entre 1971 e
1998, um aumento na taxa de mortalidade por esta causa em ambos os sexos, de
forma mais acentuada nos homens do que nas mulheres
13
. Adicionalmente, em 2000, na UE, o número observado de mortes por cancro do
pulmão em homens foi 15% inferior ao esperado na maioria dos países, sendo
Portugal uma das excepções, com um aumento de 34%22.
No presente estudo, apresentamos pela primeira vez em Portugal uma
estabilização da mortalidade por cancro do pulmão em homens entre os 35 e os 74
anos. O cenário é, no entanto, diferente no sexo feminino, no qual a
mortalidade continua a aumentar sem sinal de abrandamento.
A interpretação das evoluções na mortalidade em ambos os sexos e na prevalência
de fumadores permite inferir que Portugal terá avançado para a fase final do
estádio 3 da epidemia tabágica, ao longo da última década.
Nos homens, a estabilização das taxas de mortalidade por cancro do pulmão
ocorreu durante a década de 90, independentemente da classe etária considerada.
Assumindo que são necessários 30 a 40 anos para que uma diminuição no consumo
tabágico se reflicta na mortalidade por cancro do pulmão, podemos especular que
entre os anos 50 e 70 terá tido início uma diminuição no consumo tabágico no
sexo masculino. Na ausência de estudos de prevalência de base populacional que
permitam descrever com validade a evolução na proporção de fumadores do sexo
masculino na segunda metade do século xx, é possível avaliar a evolução no
consumo aparente de cigarros per capita: (produção nacional de tabaco +
importação de tabaco - exportação de tabaco)/população total com mais de 15
anos). Entre 1970 e 1990, o consumo aparente de cigarros per capitaaumentou
cerca de 50%, ocorrendo uma ligeira diminuição a partir de então. Embora não
exista informação anterior a 1970, o aumento observado a partir desta altura
não é aparentemente concordante com a evolução da mortalidade por cancro do
pulmão observada nos anos 90. Contudo, o consumo aparente per capitaé uma
estimativa da quantidade de tabaco disponível no país, que não terá a mesma
tradução em termos de consumo em todos os períodos e que não contempla a
disponibilidade de cigarros contrabandeados, com pesos também variáveis ao
longo do tempo.
Assim, um aumento na prevalência de mulheres fumadoras no período considerado
poderá compensar um eventual decréscimo na proporção de homens fumadores. Para
além disto, este indicador também não é sensível a variações da intensidade
individual do consumo tabágico, que também influenciam o risco de desenvolver
cancro do pulmão.
As mudanças observadas na tendência da mortalidade por cancro do pulmão no sexo
masculino poderiam resultar, pelo menos parcialmente, da adopção de sucessivas
revisões da classificação internacional das doenças (CID) no período em análise
23-26
. A 9.ª revisão da CID foi utilizada entre 1980 e 2001 e a CID-10 começou a ser
usada a partir de 2002. No presente trabalho, é durante a década de 90 que se
verifica a estabilização da mortalidade por cancro do pulmão. Adicionalmente, a
razão de comparabilidade entre a CID -9 e a CID -10 para neoplasias de
traqueia, brônquios e pulmão é próxima de 0,97
27
, sugerindo que a mudança no sistema de classificação teve pouca influência nos
presentes resultados.
Outros aspectos metodológicos deste estudo merecem consideração. O cancro do
pulmão é uma doença rara, especialmente em pessoas jovens. Assim, incluíram-se
neste estudo apenas indivíduos com idade superior a 35 anos.
Por outro lado, a exclusão de sujeitos com idade superior a 74 anos relacionou-
se com a previsível diminuição na qualidade dos registos de óbito e com o
aumento da mortalidade por causas competitivas nos mais velhos.
Os modelos de regressão ajustados permitem identificar os segmentos de recta e
os respectivos pontos de mudança, joinpoints. O resultado final é uma regressão
composta por segmentos lineares na escala semilogarítmica, cada um
correspondente a um período com variação constante. Os pontos de mudança
identificam os momentos em que se produzem alterações significativas na
velocidade ou na direcção das taxas. No período de 1993 a 1996, ocorreu uma
inversão momentânea na tendência de crescimento da mortalidade por cancro do
pulmão nas mulheres entre os 65 e os 74 anos. É pouco provável que uma variação
na qualidade dos registos de mortalidade tivesse contribuído para esta
observação, dado que tal flutuação não se observou nas restantes classes
etárias estudadas.
Por outro lado, o número relativamente pequeno de casos de cancro do pulmão no
sexo feminino e a inexistência de uma explicação biológica ou ambiental
plausível para esta variação apontam para um problema de precisão do modelo
estatístico utilizado. A retoma da VA% para valores próximos dos observados
antes de 1993 sugere também a mesma interpretação.
Conclusão
Os resultados deste estudo colocam Portugal na fase final do terceiro estádio
da epidemia tabágica. Assim, prevê-se que durante a próxima década se assista
ao início do declínio da mortalidade por cancro do pulmão no sexo masculino. O
panorama é contudo diferente no sexo feminino, sendo expectável que nos
próximos anos ainda continuemos a observar um aumento importante da mortalidade
por esta causa. Do ponto de vista da saúde pública, continua a ser fulcral
investir em campanhas de cessação tabágica dirigidas a ambos os sexos e,
especialmente, aos grupos etários mais jovens.