Biópsia pulmonar cirúrgica em doentes sob ventilação invasiva e com suspeita de
doença difusa do parênquima pulmonar
Introdução
A biópsia pulmonar cirúrgica (BPC) permanece o exame gold standardpara muitas
doen ças pulmonares que se apresentam com insuficiência respiratória aguda e
infiltrados pulmonares difusos1. Contudo, sendo um procedimento invasivo, é
geralmente utilizado quando outros procedimentos menos invasivos já foram
realizados sem que se tivesse estabelecido um diagnóstico, ou quando há
necessidade de um diagnóstico rápido e preciso1.
A evidência disponível relativamente à segurança e utilidade clínica da BPC em
doentes críticos, sob VI, é ainda escassa. Assim, a decisão de realizar BPC
nestes doentes é difícil, pois os estudos publicados não são consensuais
relativamente ao seu benefício. Enquanto alguns autores2,3 verificaram que a
BPC é tanto um procedimento seguro como útil relativamente à informação
diagnóstica, permitindo a instituição de um tratamento adequado, outros4,5
argumentam contra a sua realização devido à ausência de benefício na sobrevida,
assim como à morbilidade e à mortalidade associadas. Devido a estes potenciais
efeitos deletérios da BPC, muitos clínicos têm relutância na realização deste
procedimento nos doentes que já estão sob VI. No entanto, são estes doentes com
doença pulmonar não esclarecida e que não respondem ao tratamento instituído de
forma empírica que mais necessitam de um diagnóstico histológico preciso, de
forma a instituir-se um tratamento específico.
O objectivo deste estudo é avaliar rentabilidade diagnóstica, alterações no
diagnóstico inicial e na orientação terapêutica e segurança da BPC em doentes
sob VI e com suspeita de doença difusa do parênquima pulmonar.
Material e métodos
Foi efectuada uma revisão retrospectiva de processos clínicos de doentes
admitidos em unidades de cuidados intensivos polivalentes (UCI) de adultos de
um hospital central (Hospital de S. João) durante um período de 8,5 anos
(Janeiro de 1999 a Julho de 2007).
Os critérios de inclusão englobaram doentes com insuficiência respiratória, sob
VI e com infiltrados pulmonares difusos, que foram submetidos a BPC. Foram
excluídos os doentes que apenas ficaram ventilados mecanicamente após a
realização da BPC, assim como os doentes que efectuaram toracotomia terapêutica
e simultaneamente BPC.
A informação obtida incluiu a seguinte: dados demográficos, comorbilidades,
suspeita diagnóstica à admissão na UCI, estudo diagnóstico efectuado
previamente à BPC, incluindo tomografia computorizada (TC) torácica e
broncofibroscopia, tratamento instituído previamente à BPC, PaO2/FiO2 e PEEP
antes e após a BPC, diagnósticos histológicos obtidos e o seu impacto na
mudança de estratégia terapêutica, complicações e mortalidade associadas ao
procedimento cirúrgico.
Todas as biópsias foram efectuadas por toracotomia (maioritariamente por
minitoracotomia). Os locais de biópsia foram escolhidos com base nas alterações
imagiológicas. Foram obtidas, no máximo, três amostras de tecido pulmonar para
análise histológica. Após a realização das biópsias pulmonares, a drenagem do
espaço pleural foi efectuada com dois drenos pleurais, em todos os doentes. Os
drenos pleurais foram retirados o mais precocemente possível, na ausência de
fuga aérea.
A análise estatística foi efectuada por SPSS 14.0. Para todos os testes
estatísticos efectuados, p<0,05 foi considerado significativo.
Resultados
Dados demográficos e clínicospreviamente à BPC
A BPC foi um procedimento raro, com uma incidência anual de 0,2% a 0,6% dos
doentes admitidos em UCI do Hospital de S. João. Dezanove doentes preencheram
os critérios de inclusão. A idade média foi de 58 ± 16,3 anos e 10 doentes
(53%) eram do sexo masculino. Cinco doentes (26,3%) estavam imunodeprimidos e
doze (63,2%) apresentavam comorbilidades diagnosticadas previamente. Todos
efectuaram TC torácico antes da biópsia e 15 (79%) realizaram broncofibroscopia
previamente à BPC. Doze doentes (63,2%) estavam com antibioterapia e catorze
(73,7%) sob corticoterapia. Quatro doentes (21,1%) estavam sob suporte
inotrópico na altura da biópsia. O PEEP (n=16) e o PaO2/FiO2 (n=18) médio
previamente à BPC foram de 9 cmH2O e de 171 mmHg, respectivamente. A média de
dias de internamento em UCI antes da realização da BPC foi de 13±7 dias. O
tempo de ventilação invasiva antes da realização da BPC entre o grupo de
sobreviventes e não sobreviventes foi de 11,8 e 14,9 dias, respectivamente, não
tendo sido esta diferença significativa (p=0,6).
Complicações intra e perioperatórias e alterações fisiológicas
Não se observou nenhuma complicação intra operatória. Quatro doentes (21%)
apresentaram complicações deste procedimento, tratando-se em todos os casos de
fuga aérea prolongada (4 a 27 dias). Apenas um doente necessitou de iniciar
suporte inotrópico após a realização da BPC. O PaO2/FiO2e o PEEP médio após a
BPC foram de 202 mmHg e de 8 mmHg, respectivamente, não se verificando
diferenças significativas relativamente aos valores apresentados previamente à
biópsia.
Diagnósticos histológicos
A rentabilidade diagnóstica foi de 95%. Apenas num doente a análise histológica
foi inconclusiva devido à exiguidade da amostra.
Os diagnósticos histológicos obtidos estão representados na Quadro I, tendo
sido a lesão alveolar difusa (DAD) o diagnóstico mais comum (Fig. 1),
encontrada em sete doentes. Destes, seis encontravam-se na fase
fibroproliferativa e um na fase exsudativa. Em dois doentes, sem patologia
pulmonar prévia conhecida, o exame histológico revelou alterações compatíveis
com lesão alveolar difusa e pneumonia intersticial usual, permitindo
estabelecer o diagnóstico de exacerbação aguda de fibrose pulmonar idiopática
(FPI), após a exclusão de causas de descompensação da FPI (Fig. 2). Uma doente,
internada por insuficiência respiratória e tomboembolismo pulmonar (TEP), foi
admitida na UCI após paragem cardiorrespiratória (PC-R) e, após valorização de
alteração imagiológica sugestiva de doença pulmonar difusa, foi submetida a BPC
por suspeita de doença subjacente predisponente ao quadro clínico apresentado,
não tendo no entanto a biópsia revelado outras alterações para além da presença
de trombos recentes e organizados. Os três casos de pneumonia em organização
(OP) estiveram associados a infecção por Pseudomonas aeruginosanum caso e a
infecção por Legionellanoutro (Fig. 3). Foi diagnosticada pneumonia
eosinofílica em dois doentes, tendo sido efectuada previamente
broncofibroscopia num deles, não tendo havido contudo a possibilidade de
efectuar a contagem celular total e diferencial do lavado broncoalveolar (LBA),
devido a recuperação insuficiente do mesmo. No outro doente não foi efectuado o
estudo celular do LBA, por ausência de suspeita clínica relativamente a este
diagnóstico.
Quadro I - Doentes incluídos no estudo
Fig. 1' Lesão alveolar difusa. A ' Marcado espessamento intersticial à custa de
proliferação de fi broblastos e discreto infiltrado infl amatório mononucleado,
condicionando irregularidade dos espaços alveolares (HE 40X). B ' Presença de
membranashialinas (HE 400X)
Fig. 2' Lesão alveolar difusa sobreposta a pneumonia intersticial usual. A '
Espaços irregulares, cisticamente dilatados e contendo muco, num fundo com fi
brose (HE 40X). B ' Marcado espessamento dos septos interalveolares, à custa de
proliferação de fi broblastos, a traduzir agudização (HE 400X)
Fig. 3' Pneumonia organizativa. A e B ' Fibrose intraluminal, envolvendo o
bronquíolo respiratório e espaços alveolares adjacentes. O processo é bem
limitado em relação ao parênquima pulmonar adjacente (A' HE 40X; B' HE 400X)
Uma doente foi admitida na UCI após PC-R durante a realização de
broncofibroscopia para estudo de DPD. Como não apresentava diagnóstico
definido, foi submetida a BPC, cujo exame histológico foi compatível com
sarcoidose. O diagnóstico de pneumonia vírica foi obtido por análise
histológica num doente e por técnicas de bio logia molecular (positividade do
ADN do Cytomegalovirus(CMV) no fragmento de biópsia pulmonar) no outro doente.
O diagnóstico de pneumonia fúngica foi efectuado pela presença de estruturas
fúngicas (confirmado por estudo histoquímico pelos métodos de PAS, PAS-D e
Grocott) com características de Cândida spp.
Impacto do diagnóstico histológico no tratamento e nos resultados
O resultado da BPC condicionou alteração no diagnóstico inicial em catorze
doentes (74%) e mudança da estratégia terapêutica em oito (42%). De salientar
que três doentes faleceram antes de o resultado da biópsia ser conhecido. A
mortalidade global foi de 47% (9 doentes). Dos dez que tiveram alta, 4 (40%)
tiveram alteração do tratamento após o resultado da biópsia e, dos nove doentes
que faleceram, quatro (44,4%) tiveram igualmente mudança da estratégia
terapêutica após o diagnóstico histológico. Dos quatro doentes que tiveram
complicações, três faleceram e um teve alta. As causas de morte foram
exacerbação aguda de FPI, trombos cardíacos e pulmonares (resultado obtido por
autópsia) e sépsis com disfunção multiorgânica.
Discussão
A BPC é um procedimento pouco frequente em UCI, com uma incidência anual, nos
EUA, de 0 a 0,9%6. A decisão de a realizar em doentes sob VI é baseada não só
na necessidade de se obter um diagnóstico preciso, e deste modo oferecer um
tratamento específico, evitando efeitos deletérios de um tratamento empírico
ineficaz, mas também para se obter uma informação prognóstica6.
A rentabilidade diagnóstica da BPC neste estudo foi de 95% (diagnóstico
histológico não conclusivo num doente devido à exiguidade da amostra). Apesar
de este valor ser semelhante ao descrito na literatura7-8 (> 92%), é importante
referir que as amostras ideais devem ter pelo menos 3 cm de maior eixo e
obtidas em mais do que um lobo9. Apesar de a rentabilidade diagnóstica ser
semelhante
10
, a biópsia por toracotomia foi preferida à biopsia por videotoracoscopia,
devido ao menor tempo do procedimento, associado ao facto de não haver
necessidade de troca de tubo orotraqueal por um de duplo lúmen, nem a
necessidade de se ventilar selectivamente um pulmão.
De salientar, também, que a rentabilidade diagnóstica da BPC em doentes sob VI
não difere da encontrada em doentes com patologia pulmonar difusa em estudo no
ambulatório e que são orientados para BPC, sem necessidade de suporte
ventilatório prévio
3,10-13
. Apesar de haver mudança do diagnóstico inicial em catorze doentes (74%), o
resultado da BPC apenas condicionou a mudança de tratamento em oito (42%). Este
valor é inferior ao encontrado noutros estudos6;11-13 (64 a 75%) e pode ser
explicado, em parte, pelo facto de três doentes terem falecido antes do
resultado da biópsia (dois com diagnóstico posterior de exacerbação aguda de
FPI e um com pneumonia eosinofílica) e que, nos casos descritos, poderiam ter
implicações terapêuticas e até prognósticas importantes, nomeadamente no último
caso.
Em sete doentes o diagnóstico histológico foi de DAD. Nestes casos, a
histologia não revelou a causa subjacente, contudo o conhecimento da fase de
evolução da DAD tem implicações terapêuticas importantes, pois Meduri et al
14
mostrou que o uso de corticóides na fase fibroproliferativa poderá melhorar a
sobrevida destes doentes. Na presença de um contexto clínico adequado e na
ausência de uma causa subjacente ou um factor predisponente ao aparecimento de
DAD, efectua-se o diagnóstico de pneumonia intersticial aguda (AIP)
15
. Alguns dos casos descritos poderão corresponder a AIP, contudo a ausência de
um estudo microbiológico exaustivo do fragmento de biópsia, nomeadamente no
estudo virulógico, não permitiu excluir, com certeza, causas infecciosas.
O tempo que mediou entre o início do internamento em UCI, sob VI, e a
realização de BPC (média ' 13 dias) foi superior aos descritos em outros
trabalhos semelhantes
13,16-17
(3 a 8 dias). A influência do tempo de VI previamente à realização de biópsia
pulmonar nos resultados clínicos ainda não está bem esclarecida.
Contudo, alguns estudos sugerem um benefício na realização precoce da BPC.
Warner et al5 verificaram que o tempo entre a instalação da insuficiência
respiratória e a realização da BPC era significativamente menor nos
sobreviventes (4,4±2,9 dias) do que nos não sobreviventes (6,1±3,6 dias). No
estudo realizado por Lim et al16, apesar de não haver diferenças no tempo de VI
entre o grupo dos sobreviventes e o dos não sobreviventes, verificou-se que os
doentes que efectuaram a BPC até uma semana após o início da VI tiveram maior
probabilidade de sobreviver (63% vs11%; p=0,018). Pelo contrário, Araby et al
18
não encontraram nenhuma diferença entre sobreviventes e não sobreviventes
relativamente ao tempo de ventilação prévio à biópsia. No presente estudo
também não houve diferença significativa no tempo de VI até à BPC entre os dois
grupos (sobreviventes ' 11,8 dias vsnão sobreviventes ' 14,9 dias; p=0,6).
A comparação entre os valores médios de PEEP e PaO2/FiO2 antes e após a biopsia
não mostrou diferenças significativas e apenas um doente necessitou de iniciar
suporte inotrópico após a BPC, pelo que se pode concluir que este procedimento
cirúrgico não originou grandes transtornos ventilatórios ou hemodinâmicos.
As complicações associadas a este procedimento em doentes ventilados variaram
consideravelmente entre estudos, provavelmente devido à heterogeneidade das
populações estudadas.
A complicação mais frequentemente descrita foi a fuga aérea prolongada6,11-
12,17, com frequências tão elevadas como 42%18. Outras complicações menos
comuns foram hemotórax11,17, empiema2,11, infecção de ferida operatória2,
hipotensão intraoperatória6,16, entre outras. Neste estudo surgiram
complicações em quatro doentes (21%), tendo-se tratado em todos de fuga aérea
prolongada. Cho et al19 efectuaram um estudo para determinar factores de risco
de fuga aérea prolongada em doentes ventilados com ARDS que foram submetidos a
BPC. A pressão de pico da via aérea (Ppico) foi o único factor preditor
identificado (o risco de fuga aérea prolongada foi reduzido em 42% por cada
redução de 5 cm H2O na Ppico), portanto, a adopção de estratégias ventilatórias
protectoras que limitem a Ppico está fortemente associada a uma redução do
risco pós-operatório de fuga aérea prolongada.
Devido ao número reduzido de doentes incluídos e de complicações observadas,
não foi possível determinar, neste estudo, a influência da Ppico no risco de
fuga aérea.
A mortalidade global foi de 47%, semelhante ao descrito noutros estudos3,6,11-
13,16-18 (46% a 67%). A mortalidade associada ao procedimento é rara, mesmos
nos doentes ventilados3,6,11-13,16-18. Estão descritos casos de morte por
paragem cardíaca17, hemorragia6 e pneumotórax de tensão6. No presente estudo,
nenhum doente faleceu devido à reali zação da biópsia.
Este estudo tem várias limitações inerentes à metodologia retrospectiva
utilizada, ao tamanho reduzido e à heterogeneidade da amostra, para além do
viés de selecção. Apesar de um estudo prospectivo e randomizado poder fornecer
conclusões mais fiáveis, a sua execução em doentes críticos é de difícil
implementação.
Contudo, a análise desta amostra sugere que a BPC poderá ser um procedimento de
extrema utilidade em situações de diagnóstico indeterminado no contexto de
doentes com DPD sob VI, para o que contribui a alta rentabilidade diagnóstica,
os diminutos transtornos ventilatórios e hemodinâmicos e a baixa incidência de
complicações reveladas. A realização mais precoce da BPC poderia, em alguns
casos, originar resultados ainda mais significativos.