Osteoartropatia hipertrófica secundária a neoplasia pulmonar: Relato de caso
Introdução
Os primeiros casos de osteoartropatia hipertrófica primária foram relatados por
Friedreich em 1868 e considerados como exemplos de acromegalia1. Em 1935,
Touraine et al.definiram as características desta síndroma como uma entidade
distinta e enfatizaram as semelhanças entre a síndroma e a osteoartropatia
secundária a patologias intratorácicas3.
A osteoartropatia hipertrófica(OAH) é uma síndroma de periostite proliferativa
crónica dos ossos longos, hipocratismo dos dedos das mãos, dos pés ou ambos, e
oligoartrite ou poliartrite4. Uma das características principais da doença é a
paquidermia, espessamento cutâneo causado por hiperplasia endotelial na derme,
infiltrado de linfócitos e histiócitos, além de depósito de fibras colagénias5.
Pode ser classificada em: (1) osteoartropatia hipertrófica primária(OAP),
frequentemente, hereditária, mas com casos idiopáticos em adultos; e (2)
osteoartropatia hipertrófica secundária(OAS), frequentemente associada a
neoplasias torácicas, principalmente brônquicas.
A OAP, ou paquidermoperiostose, é uma doença idiopática, familiar, benigna e
autolimitada, ocorrendo em cerca de 25% a 30% dos familiares nos casos
estudados6 . A desordem parece ser herdada por um mecanismo de transmissão
mendeliano e que acomete principalmente homens (90%)3,7, 8.
A fisiopatologia da paquidermoperiostose ainda é pouco conhecida. Um defeito
primário intrínseco das plaquetas, que poderia facilitar a desgranulação e
libertação de factores de crescimento, foi sugerido por Martínez-Lavin et al.9
Estudos anteriores de Matucci-Cerinic et al.têm reportado um aumento da
actividade fibrinolítica em doentes com afecção de pele e têm sugerido que o
aumento da actividade do plasminogénio activador funciona como um estímulo ao
crescimento do tecido conjuntivo10.
Segundo Bianchi et al., uma alta concentração de receptores de esteróides
nucleares e a ausência de receptores de factor de crescimento da epiderme podem
indicar um comportamento específico do sistema receptor do factor de
crescimento e esteróide na paquidermoperiostose11. Outros autores reportam que
a cultura de fibroblastos da pele afectada de doentes com OAH primária produz
uma maior quantidade de colagénio e alfa-1 procolagénio12. Entretanto,
actualmente, apesar das várias hipóteses fisiopatológicas propostas para
explicar a OAP, não há consenso para explicar os achados clínicos desta
enfermidade.
A OAS é uma alteração sistémica que acomete os ossos, articulações e partes
moles, sendo secundária a alguma patologia intratorácica, presente em 12 % dos
doentes com adenocarcinoma pulmonar13-16.
Caso
PPD, branco, com 36 anos, natural e procedente de Santa Maria-RS, profissional
da construção civil, foi encaminhado ao ambulatório de pneumologia, no Complexo
Hospitalar Santa Casa de Porto Alegre, com queixa de dor nos membros inferiores
e ombro esquerdo e alteração radiológica torácica.
Na anamnese, o doente relatou que há um ano tinha iniciado dor e edema nas
articulações dos joelhos e pés/tornozelos bilateral de forma simétrica, quando
recebeu assistência médica e houve melhoria temporária dos sintomas após uso de
medicamentos(anti-inflamatórios não hormonais). Nos últimos seis meses, além da
dores em MMII, iniciou artralgia no ombro esquerdo associado a perda ponderal
de 10 kg. Ao ser questionado sobre o uso de medicamentos, revelou o uso prévio
de indometacina, com melhoria do quadro álgico.
Nos últimos 20 dias que antecederam a consulta e internação hospitalar houve
início de dor torácica e tosse não produtiva contínua, associado ao
aparecimento de disfonia.
Em relação aos hábitos, é importante ressaltar o tabagismo e o alcoolismo
durante 18 anos/maços. Ao exame físico, constataram-se espessamento cutâneo na
face, pés e mãos, e baqueteamento digital em pés e mãos; também foi registado
edema, dor e calor nos joelhos e tornozelos e nas mãos e pés (Fig. 1).
Fig. 1' Imagem dos membros inferiores evidenciando edema, espessamento cutâneo
e baqueteamento digital
A avaliação laboratorial do doente mostrou: hemácias, 4 700 000/mm³;
hemoglobina, 14,8 g/dl; hematócrito, 44,5%; plaquetas, 358 000/mm³; leucócitos,
5800/mm³. Velocidade de hemossedimentação superior a que 120 mm na primeira
hora, proteína C reativa de 4,51 mg/dl, alfa-1 glicoproteína ácida de 144 mg/
dl, ureia de 35 mg/dl, creatinina de 1,1 mg/dl, glicemia de 88 mg/dl, TGO de 25
U/l, TGP de 28 U/l, gama-GT de 51 U/l.
Exame de urina sem alterações. Factor reumatóide e anticorpo antinuclear
negativos. Na radiografia (Rx) e na tomografia(Tc) (Figs. 2 e 3) do tórax foi
constatada massa pulmonar extensa à esquerda.
Fig. 2' Radiograma de tórax evidenciando massa pulmonar e atelectasia no pulmão
esquerdo
Fig. 3' Tomografi a de tórax, mostrando massa pulmonar extensa à esquerda
A radiografia dos ossos longos mostrou espessamento das camadas corticais, com
alargamento das diáfises. Notou-se reacção periosteal contínua, espaços
articulares conservados e edema de partes moles (Figs. 4 e 5).
Fig. 4' Radiograma de membros inferiores evidenciado reacção periosteal
contínua, espaços articulares conservados e edema de partes moles
Fig. 5' Radiograma evidenciando reacção periosteal contínua, espaços
articulares conservados e edema de partes moles das mãos
A fibrobroncoscopia evidenciou paralisia de corda vocal esquerda, presença de
lesão vegetante que se protrui da emergência do brônquio lobar superior
esquerdo, causando obstrução quase completa da sua luz. Realizada biópsia na
lesão o anatomopatológico evidenciou: mucosa respiratória com carcinoma de não
pequenas células, tipo adenocarcinoma.
Discussão
A artralgia é um sintoma relativamente comum, com ocorrência de aproximadamente
40%, chegando a ultrapassar 70% em alguns relatos de osteoartropatias
hipertróficas. A artrite é descrita com menor frequência, variando em 10% a 30%
dos casos7,17-19. As articulações mais acometidas são as dos membros
inferiores, principalmente joelhos, seguidos por tornozelos17-18.
No caso descrito, o doente apresentou artralgia e artrite inicialmente nos
joelhos, pés e tornozelos, e foram essas manifestações que o levaram a procurar
auxílio médico.
Como descrito, a OAS é uma alteração sistémica que acomete os ossos,
articulações e partes moles, sendo secundária a alguma patologia intratorácica,
e acomete 12 % dos doentes com adenocarcinoma pulmonar13-16.
A diferenciação da forma primária e secundária pode ser feita sabendo-se que na
OAP o início é gradual na adolescência, há história familiar e não há causa
base que a justifique, enquanto na OAS não há antecedentes familiares,
geralmente há uma causa, como uma neoplasia torácica ou outra manifestação
crónica no tórax, e ocorre remissão dramática com a retirada do factor
causal20-21.
O diagnóstico é essencialmente clínico, baseado na anamnese, no exame físico e
na história familiar22.
Os achados laboratoriais da OHP são similares aos da OHS; a velocidade de
hemossedimentação (VHS) pode estar elevada; os testes urinários e sanguíneos,
incluindo nível de complemento, são normais; factor reumatóide (FR) e
anticorpos antinucleares (FAN) negativos22.
Quando há neoformação óssea considerável, os níveis de marcadores da
remodelação óssea podem estar aumentados.
O líquido sinovial é caracteristicamente não inflamatório, com predomínio de
células mononucleares22.
O diagnóstico de OAS é realizado basicamente com achados radiológicos, da
anamnese, manifestações clínicas e constatação do factor causal. As
manifestações radiológicas consistem na proliferação periosteal com neo
formação óssea (em camadas finas), simétrica e bilateral nos ossos longos, mais
evidentes nas inserções de tendões e ligamentos.
Os espaços medulares mostram-se normais. Radiologicamente, deve-se fazer o
diagnóstico diferencial com doenças que produzem periostites simétricas, como
leucemia, acromegalia, doença de Engelman, doença metastática e osteomielite
crónica, artrite reumatóide e doença de Paget7,21.
O tratamento da OAS é a remoção da causa; no presente caso, consiste no
tratamento da neoplasia pulmonar, já que a ressecção foi contraindicada devido
à extensão da neoplasia pulmonar. Medicações, como analgésicos, anti-
inflamatórios não esteróides, corticóides e anestésicos, apresentam resultados
temporariamente satisfa tórios19-22. Várias medicações já foram estudadas para
o tratamento, mas até ao momento não apresentam resultados promissores.