Serosite tuberculosa em portadora de lúpus eritematoso sistémico: Relato de
caso e revisão de literatura
Introdução
O lúpus eritematoso sistémico (LES) é uma doença inflamatória auto imune
crónica de etiologia desconhecida, que acomete o tecido conectivo, simultânea
ou sucessivamente.
Uma série de factores genéticos, infecciosos, hormonais, ambientais e até
psicológicos podem desencadear a doença1.
A palavra latina lupussignifica lobo e sugere uma comparação entre as lesões
faciais da doença e as marcas observadas na face de alguns lobos1.
O aspecto autoimune do lúpus refere-se à produção de autoanticorpos dirigidos
contra as próprias estruturas do organismo, ou à reacção desordenada de
linfócitos contra autoantigénios, levando a destruição de células do
hospedeiro2, 3, 4. O surgimento de complexos de anticorpos-antigénios e
complemento, somados a uma deficiência na supressão da sua formação, contribuem
em parte para o estado clínico do doente3.
O curso clínico pleomórfico caracteriza-se por episódios de remissão e
actividade da doença, cuja gravidade varia de leve até à forma fulminante, com
risco de vida3. Os doentes portadores de LES possuem uma maior susceptibilidade
de infecção tuberculosa, e principalmente um risco maior de tuberculose
extrapulmonar, do que a população em geral1,2,3.
O motivo pelo qual este relato interessante de caso foi seleccionado dirige-se
a alertar da possível coexistência destas doenças, ressaltando as explicações
mais plausíveis para isso ocorrer, além da imunossupressão pelo corticóide.
Relato do caso
Doente de 17 anos, branca, estudante, natural do Rio de Janeiro.
A doente apresentava diagnóstico clínico e laboratorial do LES que evoluiu com
serosite (derrame pleural bilateral mais volumoso à direita e derrame
pericárdico) (Fig. 1), sendo internada no centro de tratamento intensivo (CTI)
para fins de compensação de quadro cardiorrespiratório e durante essa
internação, foi submetida a pulsoterapia com corticóide.
Fig._1' Fotografi a digital de telerradiografi a de tórax em PA mostrando
serosite, composta por derrame pleural e derrame pericárdico em caso de LES em
actividade
Após alta do CTI, já na enfermaria, manteve altas doses de corticóide por via
oral, além de inibidor de enzima conversora de angiotensina e bloqueadora dos
canais de cálcio.
Uma vez que os sintomas de febre, sudorese vespertina, emagrecimento e serosite
persistiam, a doente foi submetida a toracocentese e a biópsia pleural no
hemitórax direito, além de pericardiocentese de alívio.
A histopatologia do material pleural revelou presença de pleurite crónica
granulomatosa, sem necrose caseosa compatível com tuberculose pleural. Após
alta do hospital, foi encaminhada ao serviço de atendimento especializado, para
iniciar tuberculostáticos, e manteve medicação prescrita pelo CTI.
Em relação aos antecedentes pessoais patológicos, negou alergias
medicamentosas, passado de hipertensão, de doenças pulmonares ou cardíacas
prévias e de cirurgias. Referiu o lúpus há cerca de quatro meses. Relatou
transfusão sanguínea, durante internação no CTI, negou doenças da infância. Dos
antecedentes sociais, negou tabagismo, etilismo, uso de drogas inalatórias ou
endovenosas e também negou uso de anticoncepcionais.
Nos antecedentes familiares, foi contactante de familiar portador de
tuberculose pulmonar, quando tinha quatro anos, negou doenças cardiológicas,
pulmonares e reumatológicas na família.
Na história fisiológica pregressa, a menarca ocorreu aos 12 anos e relatou
ciclos menstruais sem alterações.
No momento do exame físico, no ambulatório de tisiologia, encontrava-se lúcida,
orientada no tempo e no espaço, hipocorada (pelo menos+/++++), acianótica,
dispneica, com turgência jugular a 30 graus, referindo ainda cansaço.
Apresentava a frequência respiratória de 25 incursões por minuto, a temperatura
axilar de 36,7 graus centígrados, a pressão arterial de 110 por 60 mmHg e a
frequência cardíaca de 105 batimentos por minuto. Na ausculta
cardiorrespiratória, o murmúrio vesicular estava abolido nas bases, ritmo
cardíaco era regular, em dois tempos, com as bulhas hipofonéticas sem sopros ou
extrassístoles.O abdome estava pouco dolorido no quadrante superior direito,
sem sinais de irritação peritoneal, o espaço de Traube era livre. Membros
inferiores apresentavam pulsos palpáveis e simétricos. A panturrilha direita
estava um pouco empastada(trombose venosa?), porém o sinal de Hommans estava
ausente no momento do exame.
Os exames complementares realizados durante internação no CTI revelaram
inicialmente: hemograma completo com 6400 leucócitos/ 8 bastões/ 72
segmentados/ 13 linfócitos/ hematócrito de 25,4 %/ VGM=81,7 %/ CHCM=32,3 %/
hemoglobina de 8,2. A bioquímica mostrava: glicemia de 74 mg/dl; ureia de 24
mg/dl; creatinina de 0,5 mg/dl; sódio de 143 mEq/l; potássio de 2,9 mEq/l. A
dosagem de hormónios da tiróide mostrou tiroxina livre igual a 1,6 ug/dl
(valores de referência 0,8 a 1,9 ug/dl); TSH correspondendo a 2,81 mcUI/dl
(valores normais entre 0,27 e 4,20 mcUI/dl); valores de T3 e T4 totais
respectivamente de 162 ng/dl (valores normais de T3 entre 70 a 90 ng/dl) e 11,6
ug/dl (limites normais de T4 entre 4,5 e 12 ug/dl). As provas de função
reumática mostraram presença de células LE, anticorpos anti-ADN e anticorpos
antinucleares (valores normais mostram ausência desses marcadores). O valor do
FAN foi de 1:480 (limites normais para o FAN inferior à titulação 1:80). Havia
presença de cilindrúria na urina.
A doente foi submetida a toracocentese à direita, sendo retirados cerca de
400ml de líquido e realizada biópsia da pleura. A análise do líquido pleural
revelou líquido de aspecto amarelo-citrino, exsudativo com valores aumentados
da proteína pleural (5,0 g/dl) e glicose baixa (cerca de 25 mg/dl), havendo
predomínio linfocitário e ausência de células mesoteliais. A pesquisa de
adenosinadeaminase (ADA) não foi realizada. O líquido pericárdico era de
aspecto similar, porém um pouco mais sanguinolento. Não foi feita a análise do
líquido pericárdico.
Os estudos de imagem mostraram derrame pleural bilateral, mais bem visualizado
à direita e aumento da área cardíaca (Fig._1). O ecocardiograma realizado na
UTI confirmou a presença de grande volume líquido pericárdico anterior e
posterior ao coração e derrame pleural também à esquerda. Os exames de US
abdominal, dos rins e vias urinárias, estavam sem alterações.
Foi iniciado tratamento com tuberculostáticos (dois meses de
rifampicina+isoniazida+pirazinamida e quatro meses de rifampicina e
isoniazida), em virtude do resultado da histopatologia do material pleural.
Após uso de tuberculostáticos, houve regressão da serosite, recebendo alta por
cura pela tisiologia. (Figs. 2A e 2B) O hemograma completo e EAS normalizaram,
porém manteve positividade para células LE e FAN de 1:320. Manteve terapia com
corticóide (predinisona 20mg/dia) e bloqueador dos canais de cálcio 10mg/dia.
Fig. 2 (A e B)' Fotografi as digitais de telerradiografi a de tórax em PA e
perfi l, após tratamento para serosite tuberculosa com total regressão das
lesões radiológicas
Discussão
Os sinais e sintomas do LES são febre, fadiga, emagrecimento, artrite,
artralgia, erupção tipo borboleta, fotossensibilidade, alopecia,
linfadenopatia, pleurite, pericardite, diarreia, anemia vasculite, síndroma
nefrótica, doenças do sistema nervoso central e alterações da personalidade1.
Para fins científicos de definição da doença, foram estabelecidos onze
critérios de classificação para LES. O seu diagnóstico fundamenta-se apenas na
presença de quatro desses critérios
4,5,6,7,8
. Na maioria das vezes, mais de metade dos casos de LES não encontram os quatro
critérios no momento do diagnóstico4,5,6,7,8.
No caso clínico em questão, a doente apresentou cinco critérios dos onze do
Colégio Americano de Reumatologia. Os sinais e sintomas da tuberculose são
febre de origem indeterminada, emagrecimento, perda de peso, anorexia,
linfonodomegalia e sudorese vespertina. Em relação à sintomatologia
respiratória, foram citados tosse, dispneia e mais raramente hemoptóicos
8,9,10,11,12
.
Para o diagnóstico da tuberculose é necessário o achado do Mycobacterium
tuberculosis, através das baciloscopias ou culturas positivas ou
histopatológico de material biopsiado que mostre granuloma e necrose caseosa
comprovando tuberculose doença13.
O diagnóstico de serosite tuberculosa no caso clínico estudado foi conseguido,
a partir do achado de granuloma na biópsia de pleura. A associação tuberculose
e lúpus eritematoso sistémico já foi descrita em várias séries, em locais
endémicos para tuberculose, como na Ásia, e uma série ocorreu na América
Central2,3,8,9,10,11,12. Houve predomínio das formas extrapulmonares de
tuberculose, quando associada ao LES, sendo que a tuberculose pleural foi a
segunda forma mais prevalente de doença tuberculosa extrapulmonar. Nestas
séries não houve menção do acometimento pericáridico2,3,8,9,10,11,12. Algumas
condições clínicas e práticas são inerentes aos doentes portadores de LES e
tuberculose (TB) e, para facilitar a compreensão, essas serão discutidas
separadamente.
Inerentes ao lúpus:
1) Uso de corticóides seja em altas ou uso por tempo prolongado, e a produção
de autoanticorpos do lúpus causam défices de imunidade humoral e celular,
favorecendo a predisposição de infecções, inclusive pelo bacilo de Koch8,9,14;
2) Doentes portadores de LES com quadro de artrite e nefrite são mais
predispostos a tuberculose15.
Referentes a tuberculose:
1) Maior prevalência das formas extrapulmonares, associadas a colagenoses em
geral, principalmente no LES, ressaltando o quadro miliar e de derrame
pleural9;
2) No caso das formas pulmonares, estas são mais extensas bilateralmente, sendo
raras as cavitações16;
3) São descritas maiores recidivas de TB nos casos de LES, quando comparados as
populações em geral e doentes com artrite reumatóide15.
Ao analisar o caso clínico e compará-lo às condições supracitadas, observa-se
que a doente apresentou artrite, cilindrúria e serosite tuberculosa (forma
extrapulmonar) e fez também uso de altas doses de corticosteróides.
Condições comuns tanto ao lúpus, quanto à tuberculose:
As teorias das proteínas de choque térmico, do mimetismo molecular e de
receptores Toll estão relacionadas com a associação LES-TB e de certa maneira
tentam esclarecer e corroborar o papel das micobactérias como um factor
desencadeante de doenças autoimunes, e no caso do lúpus. As proteínas de choque
térmico envolvidas na associação LES-TB são: as famílias HSP70kDa e HSP65kDa
(referentes ao bacilo de Koch) e a família HSP90kDa (referentes ao lúpus) 17.
Os receptores Toll que se destacam no LES são TLR7, TLR8 e, principalmente, o
TLR9. Uma produção excessiva deste últi mo induz a uma resposta adaptativa
autoimune, incapaz de diferenciar os autocomponentes do hospedeiro. Quanto à
tuberculose, os receptores Toll relacionados no reconhecimento dos componentes
da micobactéria são o TLR2 e o TLR418.
O tratamento do doente com lúpus apresentando tuberculose concomitante deve ser
direccionado tanto para a doença de base, usando corticosteróides e fármacos
imunossupressores, como para a infecção tuberculosa, empregando
tuberculostáticos, na dose adequada, segundo o peso do doente, durante seis
meses6,13,14.
É mister concluir que as infecções secundárias em condições autoimunes são
frequentemente consideradas, diante de um quadro clínico persistente, mesmo com
a terapia imunossupressora apropriada, e representam factor de risco
desfavorável para a evolução da doença. Chama-se a atenção para o diagnóstico
de infecção pelo bacilo de Koch associada a lúpus, em áreas endémicas para a
tuberculose, conforme ocorreu no estudo do caso, sendo mister que o diagnóstico
da infecção tuberculosa seja precoce e o seu tratamento iniciado o mais rápido
possível.