Tuberculose doença: Casuística de um serviço de pediatria no século XXI
Introdução
Estima-se, actualmente, que um terço da população mundial esteja infectado por
Mycobacterium tuberculosise que, a cada ano que passa, cerca de 9 milhões de
pessoas desenvolvam tuberculose (TB). Destas pessoas, cerca de um milhão (11%)
tem idade inferior a 15 anos. A incidência da doença a nível mundial, na
infância, é variável, compreendendo percentagens desde os 3% a mais de 25%
1
. Em Portugal, na última década do século xx, verificou-se uma diminuição
progressiva da incidência de TB no grupo etário inferior a 15 anos
2
. Em 2001 registaram-se taxas de incidência de TB na ordem dos 8,3/100 000 na
faixa etária 0-4 anos e de 5,6 /100 000 na faixa etária dos 5 -14 anos
3
.
A TB atinge as crianças através do contágio a partir de doentes bacilíferos,
considerando-se, deste modo, um excelente indicador sentinela para aferir o
nível de TB na comunidade e a eficácia de medidas de controlo epidemiológico
adoptadas.
De facto, a infecção na infância é sempre indicativa de uma transmissão recente
do M. tuberculosis, traduzindo uma falência do sistema de saúde pública para
conter a doença
3,4
.
A tuberculose na idade pediátrica apresenta características próprias,
nomeadamente por ser paucibacilar e pela elevada variabilidade clínica. Tal
condiciona aspectos particulares no diagnóstico, bem como na profilaxia e
tratamento, que devem ser correctamente entendidos por todos os que tem
responsabilidade no tratamento, não só de crianças, como também dos adultos
5,6
.
Objectivo
O objectivo deste estudo foi analisar retrospectivamente os casos de TB doença
internados no serviço de pediatria do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia,
nos primeiros 7 anos do século xxi.
Material e métodos
Realizou-se um estudo longitudinal retrospectivo, descritivo, com base na
revisão dos processos clínicos de crianças internadas por TB doença entre 1 de
Janeiro de 2000 e 31 de Dezembro de 2007.
Foram analisados os seguintes parâmetros: grupo etário, sexo, proveniência,
distribuição anual dos doentes, estado vacinal, prova tuberculínica, fonte de
contágio conhecida, clínica de apresentação, formas anatomoclínicas, meios
complementares de diagnóstico utilizados e isolamento do Mycobacterium
tuberculosisnos diversos fluidos orgânicos, tratamento e evolução clínica.
Considerou-se tuberculose doença as formas de tuberculose com tradução clínica,
laboratorial e/ou radiológica. Subdividiu-se a tuberculose doença na forma
confirmada e provável, de acordo com a existência de isolamento cultural do
agente
1
.
Resultados
No período do estudo foram registados 23 casos de tuberculose doença, com uma
faixa etária compreendida entre os 6 meses e os 16 anos (média: 7,76 +/' 5,19
anos). O sexo masculino foi o mais frequentemente atingido (70%, n=16). A
maioria destas crianças provinha de famílias nível V (Sensuses and Surveys) e,
em mais de um terço dos casos (34%, n=8), pelo menos um dos membros do agregado
familiar encontra'se desempregado
7
.
Do total de doentes, 13 (58%) foram admitidos através do serviço de urgência.
Vinte e uma criança (92%) residiam no concelho de Vila Nova de Gaia, sendo
todas de naturalidade portuguesa.
Tal como previsto no Plano Nacional de Vacinação (PNV) em vigor, todas as
crianças tinham sido previamente vacinadas com BCG. Existia história de
contacto com TB em 57%, correspondendo na sua maioria a familiares em primeiro
grau (46%, n=5).
De entre este grupo de crianças, apenas duas tinham efectuado tratamento de
tuberculose latente.
O ano de 2007 foi aquele em que ocorreu um maior número de internamentos por TB
doença (39% dos internamentos, n=9), associando-se a um maior número de
crianças referenciadas pelo Centro de Diagnóstico Pneumológico (CDP) de Vila
Nova de Gaia (o único a nível nacional que tem um pediatra na sua constituição)
(Fig. 1).
A sintomatologia predominante foi a febre, associada ou não a sintomatologia
respiratória, nomeadamente a tosse (61%), mas também a dificuldade
respiratória. Hipersudorese, astenia e hemoptises foram pouco frequentes e
constataram-se apenas em crianças com idade superior aos 11 anos. Em 26% das
crianças, o exame físico à admissão foi normal.
A radiografia pulmonar foi efectuada em 96% dos casos, sendo as alterações mais
frequentes a presença de adenopatias/infiltrado peri-hilar e a presença de
condensação. A radiografia foi considerada normal em apenas um dos casos.A
prova de Mantoux foi efectuada em todos os casos, com positividade de 91%
(n=21), sendo igual ou superior a 15mm em 61% dos casos (n=14). Apenas dois
casos apresentaram anergia com a prova de Mantoux, correspondendo um a uma
forma grave de doença (TB miliar) e o outro referente a uma criança de 4 anos
com TB doença recente e isolamento de M. tuberculosisconfirmado no suco
gástrico e lavado broncoalveolar (LBA).
Foram efectuados diferentes exames complementares de diagnóstico, de acordo com
a suspeição clínica. A pesquisa de Mycobacterium tuberculosisno suco gástrico
foi a técnica mais vezes utilizada (Fig. 2).
O isolamento cultural de M. tuberculosisfoi possível em 61% dos casos (n=14),
permitindo a confirmação de tuberculose doença.
Pelo contrário, nas restantes nove crianças em que não foi obtido isolamento do
agente, considerou-se o diagnóstico de tuberculose doença como provável (39%).
A colheita de suco gástrico permitiu o isolamento em apenas 1/3 dos casos (33%)
e a broncoscopia contribuiu para o isolamento do M. tuberculosisem 43% dos
casos com suco gástrico negativo (Quadro I, Fig. 3). A realização de TC
torácico permitiu o diagnóstico de TB pulmonar complicada em 93% dos casos,
tratando-se de casos de TB pulmonar cavitária, endobrônquica e com derrame
pleural.
Relativamente ao diagnóstico clínico-radiológico, a doença pulmonar foi
encontrada com maior frequência (78%, n=18), nomeadamente sob a forma
mediastinopulmonar simples. As formas extrapulmonares ocorreram em 22% (n=5)
dos casos, constatando-se uma distribuição estável ao longo dos anos de
internamento (Quadro II).
Em nenhum dos casos em que o isolamento cultural foi possível, bem como a
posterior realização do teste de sensibilidades do Mycobacterium tuberculosis,
foram documentadas resistências aos antibacilares. Na maioria dos casos de TB
pulmonar foi utilizada terapêutica tripla (isoniazida ' INH, rifampicina ' RMP,
e pirazinamida ' PZA) durante dois meses, seguida de quatro meses com dois
antibacilares (I+R). A associação inicial com quatro antibacilares (INH + RMP +
PZA + estreptomicina ' SM) foi utilizada apenas nas formas mais graves (TB
miliar e em algumas formas mediastino-pulmonares complicadas). A duração total
do tratamento dependeu da evolução clínico-radiológica, tendo variado entre um
período mínimo de 6 meses e um máximo de 12 meses. As formas clínicas de
derrame pleural, mediastinopulmonares com compressão brônquica e miliares,
efectuaram corticoterapia com prednisolona oral, com duração nunca superior a
dois meses (18%, n=5).
A evolução para a cura foi constatada em todas as crianças, sem sequelas
significativas.
Após o diagnóstico de TB doença, foi efectuado rastreio dos contactos da
criança, tendo a prova de Mantoux sido positiva em 43% (n=10) dos casos.
Discussão
Na revisão casuística efectuada, ao contrário do que parece ser a tendência
nacional na década anterior, o número de casos de TB doença na criança mantém
uma tendência estável.
É, contudo, de realçar o aumento isolado do número de internamentos por
tuberculose no ano de 2007 no serviço de pediatria sem aumento concomitante do
número total de internamentos/ano, sendo uma das explicações possíveis para
este facto a realização de um rastreio de doença mais eficaz, dado o aumento
significativo de doentes provenientes do CDP, ou mesmo um aumento do número dos
casos de doença em absoluto
3
.
Comparativamente ao verificado nos adultos, o aparente aumento do número de
internamentos por tuberculose em idade pediátrica não significou um aumento das
formas graves ou resistentes à terapêutica
2,8
.
Pelo contrário, verificou-se que as formas graves e disseminadas têm uma
frequência estável, mesmo quando comparadas com as frequências obtidas em
casuísticas semelhantes relativas a outros hospitais
9
.
Relativamente à imunização neonatal com BCG, esta foi de 100% na nossa
casuística, o que está de acordo com o previsto no plano nacional de vacinação.
Este valor significa uma melhoria relativamente aos anos de 1991-1996, altura
em que foi realizado um estudo semelhante neste hospital, que descreve uma
percentagem de vacinação com BCG de apenas 63% em doentes com TB5. É
pertinente, contudo, salientar que todos os cinco casos com formas
extrapulmonares de TB se encontravam vacinados com BCG. Este facto obriga, mais
uma vez, a reflectir sobre a real protecção dada pela BCG, que varia de 31 a
90%, de acordo com os vários autores
10
.
Ao contrário de casuísticas semelhantes, neste estudo, a faixa etária média de
doentes com TB foi mais tardia, centrando-se nos 7,7 anos
5,9,11
.
Importa também salientar que, desde 2003, a idade de internamento na pediatria
foi prolongada até aos 16 anos, tendo esse facto contribuído para a elevada
percentagem de adolescentes observada na nossa casuística, que representa
próximo de um terço dos casos.
Na população infantil, a clínica é inespecífica, sendo a febre e a tosse os
sintomas mais frequentemente encontrados, tal como foi constatado na presente
série. Tal implica, consequentemente, um maior índice de suspeição para o
diagnóstico de TB na criança
12
.
Foram identificadas fontes de contágio em mais de metade dos casos, sendo na
sua maioria familiares directos. Por outro lado, a maioria das crianças foi
levada, por iniciativa dos familiares, ao serviço de urgência, já em fase de
tuberculose doença. Esta constatação revela-se preocupante, dado poder
relacionar-se com eventual falha no rastreio de contactos do caso-índice ou na
sua profilaxia
4
.
O isolamento do Mycobacterium tuberculosiscontinua a ser um aspecto
preponderante no diagnóstico, tendo sido possível em 61% dos casos. Este valor
contém uma positividade superior à obtida na casuística anterior deste serviço
e de outras séries publicadas
5,13-15
. Para esta percentagem contribuiu a rentabilidade obtida pela conjugação de
vários exames, em que o mais utilizado foi o suco gástrico, seguido da
broncoscopia. De facto, constatou-se que a broncoscopia contribuiu para o
isolamento do M. tuberculosisem 43% dos casos com suco gástrico negativo, daí
que a análise do LBA deva ser encarada como um recurso útil na confirmação
diagnóstica de doença quando a pesquisa no suco gástrico é negativa. Pertinente
é também o facto de, relativamente ao LBA, ser sempre de valorizar um exame
directo positivo, enquanto, no suco gástrico, o exame directo positivo pode ser
justificado também pela presença de micobactérias não tuberculosas.
Os esquemas de tratamento de curta duração foram os mais utilizados. Optou-se
pela associação com corticoterapia na fase inicial em casos de TB mediastino-
pulmonar complicada e TB miliar, tendo havido evolução favorável em todos os
casos.
Apesar da emergência mundial de estirpes com resistência múltipla ou isolada
aos antibacilares, nomeadamente após o aparecimento da infecção pelo VIH, tal
não foi verificado na nossa amostra
2,6
.
Após o diagnóstico de tuberculose na criança, o rastreio dos familiares e
conviventes permitiu a sinalização de novos casos de doença, o que confirma o
conceito-sentinela da tuberculose infantil
3
.
Conclusão
A tuberculose mantém-se um problema actual.
Neste estudo, o número de casos de TB doença na infância mantém-se estável, o
que não corrobora a tendência nacional decrescente verificada na década
anterior. Para aferir se esta tendência será persistente, impõe-se a
necessidade de acompanhar a evolução nos próximos anos.
Por outro lado, e admitindo a tuberculose infantil como um barómetro social,
torna-se imperativa a adopção de estratégias concertadas e multidisciplinares
para o controlo efectivo da doença a nível nacional. Estas estratégias passam
necessariamente pela estruturação de uma rede de diagnóstico e rastreio de
contactos mais eficaz e com capacidade de acompanhamento terapêutico adequado,
além da melhoria global das condições socioeconómicas, culturais e sanitárias
das populações.