Granulomatose de Wegener: Envolvimento otológico, nasal, laringotraqueal e
pulmonar
Introdução
Em 1936, o patologista alemão Friedrich Wegener
1
publicou um caso clínico de morte por doença das vias aéreas superiores e
insuficiência respiratória. Em 1939, reportou a primeira série de casos da
doença que ficaria conhecida como granulomatose de Wegener (GW). Fiemberg
2
, em 1953, introduziu, conjuntamente com Carrington e Liebow
3
, o conceito de granulomatose de Wegener limitada, em que a doença poderia
restringir-se a apenas um ou mais órgãos e, não necessariamente, apresentar
envolvimento das vias aéreas superiores, inferiores e rins. Este conceito foi
reforçado por Cassan e colaboradores
4
.
A GW é uma doença sistémica rara e idiopática que atinge, preferencialmente, os
pequenos vasos (pequeno e médio calibre) ' vénulas e arteríolas.
Ocasionalmente, pode comprometer artérias de grande calibre.
Caracteriza-se por inflamação granulomatosa dos vasos das vias aéreas
superiores, inferiores e rins, com vasculite e necrose.
Segundo estudos americanos, a prevalência é de 3 casos/100 000 indivíduos. A
maioria dos doentes apresenta-se entre os 20 e os 40 anos
5
. Os homens parecem ser os mais susceptíveis, com uma razão homem/mulher de
1,5:1,0. A doença é rara entre os indivíduos de raça negra.
A forma clássica caracteriza-se por inflamação granulomatosa das vias aéreas
superiores, inferiores e rins. A forma limitada manifesta-se, apenas, nas
vias aéreas superiores ou pulmão. Esta classificação é, no entanto,
controversa, pois a biópsia renal em doentes assintomáticos pode revelar
atingimento renal em 80% dos casos
6
.
A remissão completa pode ser obtida em 75% dos casos. Se não for tratada, a GW
tem uma mortalidade de 80% no primeiro ano. A sobrevivência dos doentes
aumentou significativamente nos últimos anos devido à utilização de
terapêuticas imunossupressoras
7
.
Antes do aparecimento dos corticosteróides, a granulomatose de Wegener (GW)
clássica era uma doença fatal, com uma sobrevida média muito baixa. Mais tarde,
em 1973, a combinação de corticosteróides com ciclofosfamida revelou obter
remissões sustentadas e sobrevida mais prolongada
8
.
Os sintomas gerais são febre, anorexia, emagrecimento, fadiga e fraqueza, além
dos sintomas relacionados com o órgão atingido
7
.
A maioria dos doentes tem envolvimento do tracto respiratório superior e/ou
inferior. Cerca de 90% das queixas envolvem o nariz e os seios perinasais:
obstrução nasal crónica com rinorreia mucopurulenta, ulceração e edema da
mucosa nasal, parosmia, epistáxis e cefaleias. A deformidade do nariz em
sela, devido à destruição da cartilagem nasal, ocorre numa pequena percentagem
dos casos
9
. Estas lesões aumentam a susceptibilidade a infecções, pelo que o diagnóstico
diferencial pode ser dificultado. O envolvimento otológico é de cerca de 35%
10
e relaciona-se com a obstrução da tuba auditiva por atingimento da
rinofaringe. Os sintomas mais frequentes são otite média, com perfuração da
membrana timpânica, otalgia e otorreia
10
. O envolvimento pulmonar é comum (70 a 90% dos casos), sendo as queixas
principais tosse produtiva, dispneia, hemoptise, dor e desconforto torácico. Na
maioria dos casos, os sintomas respiratórios são acompanhados por alterações
radiológicas, nomeadamente opacidades nodulares, por vezes cavitadas, com
dimensões variáveis, múltiplas e bilaterais
11,12
. O envolvimento laringotraqueal pode ser assintomático, mas sintomas, como
dispneia de esforço, estridor, hemoptises e rouquidão, são comuns
13
.
A estenose subglótica é descrita em cerca de 23% dos doentes, podendo em 2,3%
ser o sintoma de apresentação
14
. A glomerulonefrite focal necrotisante é a lesão mais comum e pode associar-se
a insuficiência renal. No sedimento urinário podem estar presentes hematúria e
leucocitúria
15
. O atingimento cutâneo, ocular e articular, também pode ocorrer, mas é menos
frequente.
O achado histológico mais importante inclui a presença de necrose, vasculite e
inflamação granulomatosa. A necrose tende a ser extensa. As lesões
granulomatosas apresentam polimorfonucleares, células plasmáticas, raros
eosinófilos e linfócitos e, especialmente, células gigantes multinucleadas. A
vasculite é caracterizada pelo envolvimento de arteríolas e vénulas, com
consequente obstrução do lúmen vascular
16
.
Caso clínico
Doente de 33 anos, sexo feminino, raça caucasiana, sem antecedentes pessoais
relevantes, referenciada à consulta de ORL por quadro de otalgia e hipoacusia à
direita, tendo sido diagnosticada otite média com efusão, sujeita a
miringotomia e medicada com antibioterapia, sem melhoria significativa, ficando
em vigilância na consulta de ORL.
Além das queixas localizadas ao ouvido direito, iniciou queixas da nasofaringe
com aparecimento de úlceras faríngeas e nasais, cujas biópsias foram
inconclusivas. Progressivamente, iniciou quadro de artralgias de predomínio nos
membros inferiores, astenia e mal-estar geral, além de úlceras cutâneas, tendo
sido internada para estudo após o início da sintomatologia. Apresentava-se
pálida, emagrecida e apirética, com várias lesões ulcerativas da pele. Não
apresentava outras alterações no exame físico, nomeadamente na auscultação
pulmonar. O exame otorrinolaringológico apresentava mucosa nasal íntegra, com
algumas crostas e escassas úlceras na orofaringe. O exame anatomopatológico das
biópsias realizadas às úlceras cutâneas e valvulares revelou um processo
ulcerativo sugestivo de vasculite sistémica, salientando-se a presença de
lesões vasculares de vasos de pequeno calibre de tipo venoso, na ausência de
lesões granulomatosas.
As biópsias da nasofaringe foram inconclusivas por serem constituídas
predominantemente por material necrótico. Analiticamente, apresentava anemia
hipocrómica (Hb ' 10 mg/dl), proteína C reactiva e VS elevada (289 mg/L e 110
mm 1ª hora, respectivamente).
A função renal estava preservada. O exame de urina não demostrava sedimento
activo. A titulação do ANCA PR3 era positivo (99U/ml). A tomografia
computorizada (TC) do torax demonstrava a presença de dois nódulos pulmonares à
direita, com imagem em vidro despolido no lobo superior direito (Fig. 1). A
endoscopia digestiva alta mostrava úlceras orofaríngeas, sem outras alterações,
e a broncofibroscopia não mostrava alterações significativas, além de mucosa
friável. No exame cultural da expectoração isolaram-se os seguintes
microrganismos: Pseudomonas aeruginosa, Staphylococcus aureusresistentes à
meticilina (SAMR) e Candida albicans. A situação clínica da doente evoluiu
desfavoravelmente, apesar da antibioterapia de largo espectro instituída
(vancomicina, piperacilina/tazobactan e fluconazol). Doze dias após o
internamento, a doente desenvolveu insuficiência respiratória com falência
respiratória, pelo que foi entubada e admitida em unidade de cuidados
intensivos (UCI). Embora sem diagnóstico histológico confirmado, iniciou pulsos
de metilprednisolona e ciclofosfamida.
A broncofibroscopia realizada nessa altura evidenciava mucosa recoberta, em
toda a extensão, por película translúcida e acastanhada, parecendo necrose
generalizada (Fig. 2). Ainda na UCI, realizou biopsia pulmonar cirúrgica das
lesões pulmonares descritas, confirmando tratar-se de granulomatose de Wegener.
Já com terapêutica instituída, ciclofosfamida e metilprednisolona, a doente
melhorou progressivamente, tendo tido alta da UCI após 15 dias de internamento
e do hospital após 70 dias.
Um mês após a alta, recorreu ao SU por dificuldade respiratória e estridor,
tendo sido demonstrada estenose subglótica (Fig. 3) a cerca de 2 cm abaixo das
cordas vocais, com cerca de 6 cm de extensão, condicionando obstrução do lúmen
traqueal em cerca de 80%, com necessidade de dilatação mecânica e colocação de
prótese traqueal. As sequelas otorrinolaringológicas foram a destruição
completa do septo nasal (Fig. 4) e surdez à direita (Fig. 5). Encontra-se em
seguimento em consulta de ORL, pneumologia (vigilância clínica e endoscópica da
estenose e da prótese) e medicina interna (doenças autoimunes).
Discussão
A granulomatose de Wegener é uma vasculite granulomatosa, cuja etiologia é
desconhecida, provavelmente mediada imunologicamente.
Os eventos inflamatórios têm uma afinidade invulgar para o epitélio
respiratório ciliado da cavidade nasal, seios perinasais e árvore
traqueobrônquica. As manifestações otorrinolaringológicas são frequentes.
A estenose traqueal é menos comum, podendo surgir como manifestação inicial,
numa fase avançada ou até de resolução da doença e mesmo sob terapia
imunossupressora
17
.
Os sintomas podem variar de tosse e dispneia de esforço a estridor com
compromisso da via aérea
13
. Pode ser suspeitada na tomografia computorizada da traqueia (reconstrução
tridimensional) e na espirometria (achatamento do ramo inspiratório e
expiratório da curva débito/volume) e confirmada por broncofibroscopia A
estenose subglótica ou da traqueia proximal com cicatrização circunferencial e
obstrução luminal pode surgir entre 10 a 16%
18
e em algumas séries até 26%
14
dos casos, em qualquer momento da evolução da doença. A causa poderá ser o
próprio processo inflamatório imunomediado, embora não se possa excluir a
hipótese de complicação de entubação orotraqueal ou infecção das vias aéreas
superiores, sendo o diagnóstico de certeza apenas fornecido por estudo
anatomopatológico
17
.
O tratamento pode implicar dilatação mecânica, infiltrações intralesionais com
corticóide, colocação de prótese ou até tratamento cirúrgico
17,18
.
O diagnóstico de granulomatose de Wegener torna-se um verdadeiro desafio para o
médico.
A hipótese deve ser colocada perante sintomas relacionados com atingimento das
vias aéreas superiores, inferiores e do rim. O diagnóstico deve ser
estabelecido logo que possível e o tratamento instituído com a maior brevidade,
de modo a permitir a remissão, reduzindo a morbilidade e a mortalidade da
doença.
Neste caso, apesar da suspeita clínica, as biopsias do tecido nasal e da
nasofaringe foram inconclusivas e a ausência de atingimento renal afastaram, de
inicío, a possibilidade de granulomatose de Wegener. No entanto, perante a
positividade do anticorpo anticitoplasma do neutrófilo contra o antigénio
proteinase 3 (ANCA-PR3) e o agravamento clínico (necessidade de entubação e
ventilação invasiva), foi decidido o início de tratamento imunossupressor, com
resposta favorável.
Cerca de 90% dos doentes têm ANCA-c positivos, a maioria produzindo um padrão
com especificidade PR3 (proteinase 3) e menos de 5% com especificidade MPO
(mieloperoxidase).
A sensibilidade e especifidade da titulação destes autoanticorpos é maior para
forma clássica da doença. Cerca de 40% dos doentes com forma limitada têm ANCA
negativos, pelo que a ausência destes não exclui a doença
19
. Por este motivo, os novos critérios da Chapel Hill Consensus Conference
Nomenclature,de 1994, não incluem os ANCA como critério de diagnóstico
20
.
O tratamento instituído consistiu na administração de pulsos de
metilprednisolona (equivalente a 1 mg/kg/dia prednisolona) e ciclofosfamida
(1g/dia). As recomendações para o tratamento da granulomatose de Wegener
21
privilegiam o uso combinado de prednisolona (ou equivalente) e ciclofosfamida,
especialmente nos casos com compromisso vital, ou seja, elevação dos valores de
creatinina superiores a 2mg/dl, envolvimento pulmonar com hipoxemia,
atingimento do sistema nervoso central e perfuração/isquemia intestinal. As
doses recomendadas de são de 1,5-2 mg/kg/dia, sendo a leucopenia um efeito
colateral previsível.
Esta doente efectuou um esquema de ciclofosfamida 1g/dia devido ao
desenvolvimento de neutropenia iatrogénica, com necessidade de administração de
factores de crescimento.
Relativamente à corticoterapia, a dose recomendada é de 1mg/dia (com um máximo
de 60-80 mg) de prednisolona oral (ou equivalente), com o objectivo de reduzir
a inflamação até ao início da acção da ciclofosfamida (estimado em cerca de 7 a
14 dias). Vários esquemas têm sido utilizados, mas em geral o mais utilizado é
o uso inicial de doses elevadas durante 2 a 4 semanas. A redução poderá ser
iniciada com o início de melhoria clínica até um basal de 20 mg/dia, durante
cerca de 6 a 9 meses. O uso de metilprednisolona nos 3 primeiros dias poderá
estar indicado quando existe atingimento renal grave e respiratório como forma
de apresentação.
Novos estudos têm recomendado a substituição de ciclofosfamida por
metrotrexato. No tratamento inicial, o metotrexato pode ser usado em
monoterapia ou associado à corticoterapia em doentes sem compromisso orgânico
vital. No entanto, ainda está por demonstrar a eficácia a longo prazo deste
fármaco
22
.
Uma vez atingida a fase de remissão, estes doentes devem permanecer sob
vigilância, devendo estar sempre presente a possibilidade de recaída
23,24
.
O advento de novos imunossupressores como agentes biológicos (ex. infliximab)
parecem promissores no tratamento de vasculites, estando ainda por comprovar a
sua eficácia e segurança
22
.
Este caso demonstra, pela gravidade e morbilidade que acarretou, que, ao
contrário do que está descrito na literatura, a forma limitada da GW pode ter
uma evolução mais agressiva do que a esperada.