Hemotórax espontâneo em doente com neurofibromatose tipo I: A propósito de um
caso clínico
Introdução
Dos quatro tipos de neurofibromatose, os mais comuns são os tipos I e II. A
neurofibromatose tipo 1 (NF1) (ou doença de Von Recklinghausen) é uma doença
genética autossómica dominante com penetração variável, causada pela mutação do
gene NF1do cromossoma 17 e com uma incidência de 1:4000 nascimentos
2,4,9
. Podem surgir diversos tipos de lesões: neurofibromas cutâneos, lesões
pigmentadas da pele (manchas café au lait), hiperpigmentação em zonas não
expostas, como as axilas e região inguinal, hamartomas da íris (nódulos de
Lisch), macrocefalia, anormalidades articulares e tumores de células de Schwann
(neurofibromas)
5,9
. Os neurofibromas são tumores benignos dos nervos periféricos formados pela
proliferação de células de Schwann e fibroblastos. Apresentam-se como tumores
cutâneos múltiplos de consistência elástica.
Geralmente são assintomáticos, mas podem comprimir estruturas, dependendo da
sua localização e, nessas situações, poderão ocorrer radiculopatias,
neuropatias, hidrocefalia, hipertensão, epilepsia, entre outros
4,2,5
.
Os doentes têm risco aumentado de desenvolver neoplasias do sistema nervoso
(neurofibromas plexiformes, gliomas ópticos, ependimomas, meningiomas,
astrocitomas e feocromocitomas). Os neurofibromas podem sofrer degeneração
secundária maligna
2
.
Encontram-se descritas lesões vasculares em doentes com NF1 em aproximadamente
3,6% dos casos. Estas lesões podem envolver os grandes vasos, como aorta,
carótidas e artérias renais proximais, que se podem encontrar rodeadas por
neurofibromas ganglioneurofibromas, proliferação da camada íntima e
fragmentação do tecido elástico, originando a formação de estenoses e
aneurismas.
Os pequenos vasos podem encontrar-se displásicos, apresentando cinco formas
histológicas diferentes: íntima pura, íntimo-aneurismática, peri arteriolar
nodular, íntima avançada e epitelióide
6,8,9
.
As hemorragias espontâneas e maciças intratorácicas são raras e têm sido
apontadas múltiplas causas: tuberculose pulmonar; embolia pulmonar,
malformações arteriovenosas, neoplasias do pulmão, ruptura de aderências
pleuropulmonares prévias, neoplasias primitivas ou metastáticas pleurais,
endometriose da pleura, fístula arteriovenosa e ruptura de aneurismas
vasculares
3
. Na literatura apenas se encontram descritos cerca de duas dezenas de casos de
hemotórax espontâneo relacionado com a NF1
9
.
Caso clínico
Doente do sexo feminino, 33 anos, raça caucasiana, professora e residente numa
aldeia do distrito da Guarda.
Recorreu ao serviço de urgência no dia 13.09.2002 referindo toracalgia superior
direita, contínua, sem factores de agravamento nem de alívio, irradiando para o
ombro e escápula homolaterais. A dor tinha uma duração de cerca de 8 dias e
havia sido medicada sintomaticamente pelo seu médico de família com anti-
inflamatório não esteróide, sem benefício. A dor era acompanhada de astenia e
tosse seca.
Nos antecedentes pessoais destacava-se neurofibromatose tipo I, que se associou
a astrocitoma cerebral operado em 1992.
Ao exame objectivo apresentava palidez cutaneomucosa, polipneia, TA: 100/62
mmHg, FC: 117 b/min, temperatura axilar: 37ºC e sem adenopatias palpáveis. Na
percussão torácica destacava-se macicez de todo o hemitórax direito, tal como
ausência do murmúrio vesicular na auscultação pulmonar do hemitórax direito e
taquicardia na auscultação cardíaca.
Os exames complementares analíticos realizados revelaram hemoglobina 8,8 mg/dl,
hematócrito 26,2% leucócitos: 24 210/ml, NS (88%), LDH 559 U/L, PCR 10 mg/dl,
VS 69 mm e factores da coagulação sem alterações.
Com FiO2 de 21%: havia hipoxemia (PCO2 30,5 mmHg, PO2 56 mmHg com saturação de
O2 91%).
A telerradiografia do tórax em PA (Fig. 1) e perfil esquerdo (Fig. 2),
realizadas a 13.09.2002, apresentavam condensação homogénea no campo pulmonar
direito, poupando o ápex, e a ecografia torácica mostrou um volumoso derrame
pleural direito, multisseptado.
Efectuou-se toracocentese com drenagem de 500 ml de líquido hemático. O líquido
pleural apresentava amilase 82 U/L, triglicéridos 45 mg/dl, proteínas 10 mg/dl,
LDH 10637 U/L, PMN 82%, linfócitos 18%; o exame directo e cultura foram
negativos, a citologia revelou quadro inflamatório agudo e sem células
neoplásicas.
A telerradiografia do tórax em PA (Fig. 3) pós-toracocentese era sobreponível à
anterior.
Na TC torácica, abdominal e pélvica, realizadas em 17.09.2002, observava-se um
volumoso derrame pleural direito, multisseptado, que condicionava colapso
pulmonar total do pulmão direito. Não havia alterações pleuropulmonares
significativas à esquerda.
O estudo imunológico (ANA, ANCA, dsDNA, ADA, ECA, imunoglobulinas, anti
cardiolipinas e anti -â2 glicoproteína) não revelou alterações.
Na ecografia abdominal, renal e ginecológica, observou-se apenas uma vesícula
biliar litiásica, sem outras alterações.
Foi submetida a intervenção cirúrgica (VATS) em 19.09.2002, que revelou a
presença de um volumoso derrame hemático, com cerca de 2,3 litros. No espaço
pleural havia múltiplas septações, com fibrina e colapso pulmonar total.
Após a expansão pulmonar direita, o pulmão não apresentava alterações
macroscópicas. Ao exame histológico microscópico observou-se pleurite com
proliferação fibroblástica e intenso infiltrado inflamatório agudo, bem como
massas de fibrina e coágulos sanguíneos.
Houve uma boa evolução clínica e radiológica. Na telerradiografia do tórax em
PA (Fig. 4), realizada a 28.09.2006: não havia alterações pleuropulmonares.
Discussão
No caso apresentado pelos autores, uma doente com antecedentes de NF1 surgiu
com hemotórax espontâneo, cuja evolução terá ocorrido insidiosamente durante
cerca de uma semana, o que poderá explicar o facto de a doente se apresentar
hemodinamicamente estável, mas com significativa redução do hematócrito.
O hemotórax espontâneo é uma complicação rara, mas potencialmente fatal, da NF1
7,9
. As alterações vasculares descritas podem originar ruptura calibre. Numa
revisão japonesa de hemotórax espontâneo em doentes com NF1, os vasos intra
torácicos mais frequentemente envolvidos foram os intercostais e os subclávios
6
.
Nestes doentes, o hemotórax pode também ter origem no sangramento de tumores
benignos ou malignos intratorácicos, como shwannoma, neurofibroma ou
neurofibrosarcoma, ou pela invasão vascular directa pelos tumores
7,9
.
No caso relatado, não se encontrou causa evidente de hemorragia intratóracica.
Os exames de imagem realizados não revelaram a existência de tumores ou
aneurismas vasculares.
Num doente com NF1 e hemotórax espontâneo súbito hemodinamicamente instável é
necessária toracotomia imediata
6,7
. Nos casos em que se encontra o vaso sangrante em angiografia, estará indicada
embolização desse vaso para controlo temporário da hemorragia.
Não é consensual a necessidade de toracotomia em doentes hemodinamicamente
estáveis
6,9
.
A doente descrita foi submetida a toracoscopia, que revelou um volumoso
hemotórax multisseptado com colapso pulmonar total.
A evolução clínica foi favorável. Numa série de 12 casos descritos por Miura H
et al, 6 faleceram.