Pulmão e transplante renal
Introdução
A transplantação de órgãos (nomeadamente de órgãos sólidos) constituiu um dos
mais significativos avanços da medicina nos últimos 50 anos. A transplantação
renal em particular, pioneira e precursora das outras transplantações, conheceu
um desenvolvimento sem paralelo, atingindo números que já ultrapassam as 500
000, efectuando-se actualmente cerca de 27 500 por ano1,
2
. O transplante renal impõe-se como uma alternativa à hemodiálise, com uma
relação custo–eficácia superior, sendo actualmente a melhor opção terapêutica e
de reabilitação para doentes com insuficiência renal crónica em estádio
terminal, por doenças congénitas, infecciosas e/ou inflamatórias crónico-
degenerativas.
A história mundial do transplante renal teve início em 1902, ano em que foi
realizado o primeiro transplante experimental em animais, na Faculdade de
Medicina de Viena de Áustria. Contudo, só no ano de 1954 foi realizado por
Joseph E. Murray e seus colegas, no Hospital Peter Bent Brigham, em Boston, o
primeiro transplante renal humano com sucesso entre gémeos, sem recurso a
qualquer terapêutica imunossupressora
3
.
Em Portugal, a história da transplantação renal remonta a Junho de 1969, nos
Hospitais da Universidade de Coimbra, quando o médico Linhares Furtado realizou
o primeiro procedimento, apesar de todas as dificuldades técnicas, humanas e
sociais inerentes à época. Contudo, este acto médico não teve seguimento, sendo
retomado com carácter definitivo apenas passados 11 anos, em 1980.
Em 2007 foram realizados mais de 400 transplantes renais em Portugal, a maioria
de rins de cadáver e cerca de 10% de dador vivo
4
.
As rejeições aguda e crónica constituem as principais barreiras ao sucesso
completo da transplantação renal. A prevenção, o diagnóstico e o tratamento da
rejeição aguda assumem uma importância primordial no acompanhamento do doente
transplantado renal, pois a sua cura incompleta pode ser o mecanismo inicial
perpetuador dos processos de rejeição crónica
5
.
Desde 1960, têm sido notáveis os avanços no âmbito da imunobiologia e da
imunossupressão, com o objectivo máximo de diminuir fenómenos de rejeição. Em
1963, a introdução da associação azatioprina com corticoesteróide em alta dose
produziu resultados encorajadores, tornando-se o pilar da imunossupressão até
ao aparecimento da ciclosporina em 1983.
A azatio prina consiste num derivado da 6-mercaptopurina que funciona como um
análogo estrutural das purinas e inibe a síntese dos ácidos nucleicos.
Interfere nas imunidades celular e humoral, dado inibir a proliferação
linfocitária e ter efeito citotóxico sobre os linfócitos activados, para além
de bloquear a produção de anticorpos. Tem como principal efeito lateral a
mielodepressão, manifestada mais frequentemente por leucopenia6 – Quadro I.
Quadro I – Principais imunossupressores e seus efeitos laterais
Os corticoesteróides administrados juntamente com outros fármacos
imunossupressores inibem a acumulação de neutrófilos e monócitos em locais de
inflamação, bloqueando a sua actividade fagocitária, bactericida e processadora
de antigénios6. A ciclosporina é um inibidor da calcineurina, bloqueando a
indução dos genes das citocinas e a activação do linfócito T. A nefrotoxicidade
surge como o seu principal efeito lateral, sendo dependente da dose e duração
do tratamento6-7 – Quadro I. A introdução deste fármaco imunossupressor
permitiu uma melhoria da sobrevida dos transplantados a partir de rins de
cadáveres.
Entretanto, foram surgindo outros fármacos, de utilização crescente, como
anticorpos anticélulas T monoclonais (daclizumabe, basiliximabe) e policlonais
(globulina antitimocítica) indutores de tolerância imunológica, para além de
pequenas moléculas, como tacrolimus, micofenolato mofetil e rapamicina. À
semelhança da ciclosporina, o tacrolimus também consiste num inibidor da
calcineurina, sendo a nefrotoxicidade o seu principal efeito lateral6-7 –
Quadro I. O micofenolato mofetil tem um efeito citostático sobre os linfócitos
B e T, actuando como um potente inibidor da desidrogenase da inosina
monofosfato, enzima crítica para a síntese “de novo” de purinas.
A toxicidade deste fármaco manifesta-se por efeitos gastrintestinais (diarreia)
e hematológicos (anemia, leucopenia), entre outros6 – Quadro I. Recentemente,
surgiram casos descritos na literatura de leucoencefalopatia multifocal
progressiva, alguns fatais, em doentes tratados com este fármaco e que
apresentavam factores de risco para essa entidade, como o uso de terapêutica
imunossupressora e compromisso da função imunitária8. A rapamicina, também
conhecida por sirolimus, pertence ao grupo de antibióticos macrólidos e é
produzida através da fermentação do Streptomyces hygroscopicus.
Este fármaco interfere no ciclo celular, ao impedir a passagem da fase G1 a S,
por intermédio de duas proteínas intra celulares, traduzindo-se no bloqueio da
activação das células B e T pelas citocinas. Este mecanismo de acção difere dos
inibidores da calcineurina, portanto inibidores da produção de citocinas,
tornando-o uma opção nos casos em que é necessária a interrupção ou redução da
dose de um dos fármacos do grupo anterior6,9. O perfilde toxicidade da
rapamicina, presente com concentrações séricas do fármaco superiores a 15 ng/
mL, inclui efeitos hematológicos, metabólicos, gastrintestinais, renais e
pulmonares9 – Quadro I.
Na verdade, apesar de todos os progressos da transplantação nas áreas da
imunossupressão e da imunobiologia, a sobrevivência do enxerto renal, que no
primeiro ano atinge os 85%-90%, diminui progressivamente. Como consequência, a
sobrevida média do enxerto ronda os dez anos2. Um dos riscos da imunossupressão
a longo prazo consiste no desenvolvimento de malignidade. Entre as neoplasias
com elevada incidência nos transplantados de órgãos sólidos salientam -se:
cancro da pele (escamoso, basocelular, melanoma), linfomas Hodgkin e não
Hodgkin, sarcoma de Kaposi, carcinomas genitourinário, renal, da cavidade oral
e hepático10.
Por outro lado, o risco de neoplasias sólidas mais comuns na população geral
(pulmão, próstata, cólon,…) só se encontra ligeiramente elevado na população
transplantada11. O risco de malignidade é cerca de 2 a 4 vezes superior nos
transplantados cardíacos, comparativamente com os transplantados renais.
Estima–se um risco cumulativo de malignidade de cerca de 26% aos oito anos,
sendo a maioria atribuído a neoplasias cutâneas12. Acredita-se que a elevação
do risco nos transplantados cardíacos está relacionada com o maior grau de
imunossupressão a que estes doentes estão sujeitos12. De uma forma geral,
variando de acordo com o tipo de neoplasia, o tempo de latência até à
apresentação clínica de malignidade pode variar entre três a cinco anos pós-
transplante13. O doente transplantado renal, pela imunossupressão a que está
sujeito, também apresenta risco elevado de complicações infecciosas. O risco
individual de infecção é determinado pela relação entre as exposições
epidemiológicas do doente e o seu estado de imunossupressão. Neste contexto, a
profilaxia de infecções em doentes imunodeprimidos assume primordial
importância. Com o advento de novas terapêuticas antimicrobianas, a sobrevida
destes doentes tem vindo a aumentar. A pielonefrite constitui a principal causa
de internamento por infecção nos transplantados renais, seguida da infecção
pulmonar, responsável por cerca de 40% dos internamentos14-16.
Os doentes imunodeprimidos, como os transplantados renais, apresentam um
conjunto de complicações iatrogénicas/tóxicas, neoplásicas e infecciosas
inerentes à terapêutica imunossupressora, as quais constituem, em muitos casos,
um desafio diagnóstico e terapêutico.
O estudo descrito teve por objectivo avaliar o tipo de complicações pulmonares
apresentadas por doentes transplantados renais, no que respeita à sua
apresentação clínica, investigação diagnóstica, abordagem terapêutica e
prognóstico.
Material e métodos
Os autores efectuaram uma análise retrospectiva que incluiu todos os doentes em
idade adulta, transplantados renais, admitidos por doença respiratória na
Unidade de Transplante Renal (UTR) do Hospital de S. João, durante um período
de 12 meses. Foram consultados os processos clínicos desses doentes e
seleccionaram-se dados relativos às características demográficas, clínicas,
imagiológicas e microbiológicas, esquemas de imunossupressão e sua duração,
tempo de internamento e diagnóstico final. Considerou-se que o tempo de
imunossupressão seria similar ao tempo decorrido após o transplante.
Os dados foram analisados no programa informático SPSS (Statistical Package for
the Social Sciences) 15.0.
Resultados
Foram incluídos 36 doentes adultos com uma média de idades de 55,2 (±13,4)
anos. Desses, 61,1% (n=22) correspondiam a indivíduos do sexo masculino. Trinta
e um doentes (86,1%) apresentavam sintomatologia respiratóriaà admissão
hospitalar isoladamente ou, na maioria dos casos, acompanhada de sintomas
sistémicos e/ou digestivos. Cinco doentes (13,9%) apresentavam sintomatologia
sistémica isolada – Fig. 1. Em 32 doentes, o quadro clínico tinha mais de 24
horas de evolução. Gasometricamente, 47,2% (n=17) apresentava insuficiência
respiratória tipo 1.
Fig. 1 – Tipo de sintomatologia
A maioria (91,7%) apresentava alterações radiológicas, destacando-se por ordem
decrescente de frequência: opacidade pulmonar (n=16; 44,4%) unilateral ou
bilateral; infiltrado pulmonar (n=13; 36,1%) localizado ou difuso; derrame
pleural (n=2; 5,6%); abcessos pulmonares (n=1; 2,8%); e vidro despolido (n=1;
2,8%) – Fig. 2. O tempo mediano de terapêutica imunossupressora (e
consequentemente de transplante) até à data da doença foi de 23,5 meses. Os
esquemas imunossupressores mais utilizados foram prednisolona e micofenolato
mofetil, em associação com ciclosporina (38,9%) ou tacrolimus (22,2%) ou
rapamicina (13,9%) – Fig. 3.
Fig. 2 – Manifestações radiológicas
Fig. 3 – Esquemas de imunossupressão (PD: prednisolona; MMF: micofenolato
mofetil; CL: ciclosporina; TC: tacrolimus; RP: rapamicina; AZ: azatioprina)
No grupo de doentes estudado os principais diagnósticos foram: infecção (n=31;
86,1%) e iatrogenia medicamentosa (n=5; 13,9%) – Fig. 4. Em 52,8% dos doentes
foi necessário recorrer a técnicas de diagnóstico invasivas, destacando-se 15
broncofibroscopias (BFC) (41,7%), conclusivas relativamente ao diagnóstico
final em 10 casos (66,7%). Um doente foi submetido à realização de biópsia
pulmonar cirúrgica.
Fig. 4 – Tipo de patologia
A patologia infecciosa englobou: 23 casos (74,2%) de pneumonia (18 adquiridas
na comunidade e cinco nosocomiais), duas delas complicadas por empiema e
derrame parapneumónico, respectivamente; cinco (16,1%) infecções respiratórias
oportunistas (micobacteriose atípica, criptococose, aspergilose, pneumocistose,
varicela); duas (6,5%) traqueobronquites; e um caso (3,2%) de abcessos
pulmonares – Quadro II. A identificação do agente etiológico só foi possível em
sete casos (22,6%), através de diferentes produtos biológicos – Fig. 5. Os
agentes isolados foram: Streptococcus pneumoniae, Haemophilus influenzae,
Staphylococcus aureusmeticilinossensível (abcessos pulmonares), Mycobacterium
gordonae, Cryptococcus neoformans, Aspergillus fumigatuse Pneumocystis
jiroveci– Quadro II.
Quadro II – Tipo de infecção, agentes isolados e respectivo modo de confirmação
Fig. 5 – Modo de confirmação do agente infeccioso (HC: hemocultura; LB: lavado
brônquico; LBA: lavado broncoalveolar; STB: secreções traqueobrônquicas)
O esquema de antibióticos mais utilizado para o tratamento da pneumonia
adquirida na comunidade (PAC) consistiu na associação ceftriaxona e
azitromicina (n=11). Foi necessário proceder à alteração do esquema inicial em
dois casos, dado o seu agravamento clínico. A duração média do tratamento desta
entidade foi de 11,1 dias, com necessidade de prolongamento na presença de
complicações, atingindo num caso o máximo de 23 dias.
A patologia iatrogénica englobou cinco casos de toxicidade pulmonar por
rapamicina. Todos os doentes apresentavam concentrações séricas do fármaco
acima do limite superior do normal. O estudo do lavado broncoalveolar (LBA)
revelou alveolite linfocítica em 4 doentes, com diferentes relações CD4/CD8,
para além de neutrofilia em 3 deles – Quadro III. No outro doente, o LBA
revelou hemorragia alveolar grave – Fig. 6, e a investigação diagnóstica
culminou numa biópsia pulmonar cirúrgica. O exame histológico foi compatível
com acutefibrinous and organising pneumonia(AFOP) – Fig 7. Em nenhum destes
casos houve qualquer isolamento de microrganismos patogénicos no LBA. Após a
suspensão da rapamicina, todos os doentes apresentaram uma boa evolução clínica
e radiológica, com um período médio de internamento de 15 dias.
Quadro III – Níveis séricos de rapamicina e características celulares do LBA
nos doentes com patologia pulmonar iatrogénica
Fig. 6 – LBA de doente com hemorragia alveolar induzida pela rapamicina –
presença de hemossiderina na quase totalidade dos macrófagos observados (score
Golden-350)
Fig. 7 – Biópsia pulmonar cirúrgica de doente com hemorragia alveolar induzida
pela rapamicina – Acute Fibrinous and Organising Pneumonia (AFOP)
O tempo médio de internamento global foi de 17,1 (±18,5) dias, variando entre 5
e 111 dias. O internamento mais prolongado correspondeu ao do doente com
criptococose disseminada (pulmonar e cutânea).
Não foi verificado nenhum óbito em ambos os subgrupos de patologias.
Discussão
O transplante renal é o transplante de órgãos sólidos mais frequente. Nas
últimas duas décadas assistiu -se a um grande desenvolvimento farmacológico na
área da imunossupressão, com vista ao aumento da sobrevida do enxerto. Contudo,
à semelhança de outros doentes imunocomprometidos, a patologia pulmonar
(infecciosa, tóxica ou neoplásica) nos transplantados renais é frequente,
assumindo o seu diagnóstico e o tratamento precoces primordial importância. À
semelhança do que está descrito na literatura, a patologia infecciosa
constituiu a principal complicação pulmonar no grupo de doentes estudado14-16.
Os doentes imunodeprimidos estão mais susceptíveis a infecções por
microrganismos de baixa virulência para o hospedeiro normal, sendo o risco de
doença disseminada também superior. A natureza das exposições e o defeito
imunológico do hospedeiro influenciam o padrão de infecção pulmonar,
classificando -se nas seguintes categorias: adquirida na comunidade;
nosocomial; reactivação; e exposição ambiental14.
O espectro de agentes associado à PAC nos doentes imunodeprimidos é semelhante
ao dos imunocompetentes15. Contudo, estes episódios surgem na sequência de
infecções respiratórias víricas e estão associados a maior gravidade e
morbilidade. A resistência antimicrobiana, em parte justificada pelo uso
crescente de vários antibióticos com finalidade terapêutica ou profiláctica,
excede a da população geral, associando-se a uma mortalidade mais elevada15. Na
série apresentada, 86,1% (n=31) dos doentes apresentaram doença infecciosa,
sendo a maioria PAC (n=18). O Streptococcus pneumoniaeisolado em hemocultura
foi o agente responsável por um dos casos de PAC, não sendo possível a
identificação do agente etiológico nos restantes. Na maioria das situações, a
selecção do esquema antibiótico seguiu as normas preconizadas para o tratamento
da PAC em indivíduos imunocompetentes,observando -se uma resposta favorável, à
excepção de dois casos, em que foi necessário proceder à alteração do esquema
inicial, dado o seu agravamento clínico (um deles complicado por derrame
pleural). O tempo médio de internamento por PAC no grupo de doentes estudado
foi semelhante ao descrito em indivíduos imunocompetentes, sendo mais
prolongado na presença de complicações17.
A pneumonia nosocomial ou adquirida no hospital (PAH) constitui uma causa
importante de morbilidade e mortalidade. Consiste no segundo tipo mais comum de
infecção nosocomial e a primeira causa de morte por infecção adquirida em meio
hospitalar
18
. A realização de LBA ou escovado brônquico protegido em combinação com
culturas quantitativas e detecção de microrganismos intracelulares são as
melhores técnicas de diagnóstico que permitem distinguir entre colonização e
infecção do tracto respiratório inferior16,18, sendo o aspirado traqueal uma
boa alternativa, nomeadamente nos casos de pneumonia associada ao ventilador18.
Segundo estudos epidemiológicos, os agentes mais frequentemente envolvidos na
PAH são: Enterobacteriaceae, Haemophilus influenzae, Streptococcus pneumoniaee
Staphylococcusaureus
18-19
. Dentro das bactérias multirresistentes destacam-se: Staphylococcus
aureusmeticilinorresistente, Pseudomonas aeruginosa, Acinetobacter
calcoaceticus -baumannii, Stenotrophomonas maltophilia, entre outras18-19. Os
doentes com início tardio da PAH (≥ 5 dias após a admissão), uso recente de
antibioterapia e com necessidade de ventilação mecânica têm risco acrescido de
infecção por estes agentes18-19. Na série apresentada destacaram-se cinco casos
de pneumonias nosocomiais ou PAH. Um deles referia -se a um doente
transplantado há cerca de 6 meses internado com disfunção do aloenxerto por
rejeição aguda humoral, cujo internamento se complicou com um quadro de choque
séptico com necessidade de ventilação mecânica e suporte de aminas. Esse doente
foi submetido a BFC, com posterior isolamento de Haemophilus influenzaeno
lavado brônquico (LB) e LBA. Nos restantes casos não foi possível a
identificação do agente etiológico. Os transplantados renais, sendo doentes
imunodeprimidos, estão sujeitos à reactivação de infecções latentes por
micobactérias, fungos, vírus e parasitas.
A tuberculose (TB) é uma patologia infecciosa relativamente frequente nos
doentes submetidos a transplante de orgãos sólidos, apresentando uma incidência
de 0,35% a 15%
20
. Nos transplantados renais, o risco de infecção por Mycobacterium
tuberculosisé 100 vezes maior do que o da população geral
21-22
. Neste grupo de doentes, a apresentação clínica da TB é muitas vezes atípica e
o envolvimento extrapulmonar e a forma miliar ocorrem mais frequentemente do
que na população geral21-22. Na série apresentada não foi identificado nenhum
caso de TB.
Por outro lado, a infecção por micobactérias atípicas ou não tuberculosas (MNT)
é rara nos transplantados renais (< 1%), apesar da sua elevada morbilidade,
sendo mais comum em doentes com infecção pelo vírus da imunodeficiência humana
(VIH)
23-25
.
Surge muitas vezes com quadros clínicos atípicos e insidiosos, sendo mais
frequente o atingimento da pele e tecidos moles, embora estejam também
descritas as infecções pulmonar, genitourinária e gastrintestinal23.
O diagnóstico é cultural e o isolamento da espécie num fluido normalmente
estéril significa, geralmente, doença23,25. Na série apresentada, foi
confirmado, por cultura de secreções traqueobrônquicas, um caso de
micobacteriose atípica por Mycobacterium gordonaenuma doente VIH negativa. O
Mycobacterium gordonaeé uma MNT de crescimento lento e habitualmente não
patogénica23,25.
Contudo, tem sido reconhecido ocasionalmente como agente causal de infecção,
sobretudo em situações clínicas predisponentes ou de imunossupressão já
estabelecida (transplante, diálise peritoneal, neoplasia), bem como em
crianças23. No caso descrito, dado o contexto de imunossupressão e a
positividade das baciloscopias, foi iniciado tratamento, a princípio dirigido
ao Mycobacterium tuberculosise posteriormente ajustado após confirmação do
agente atípico em causa por exame cultural de secreções traqueobrônquicas.
As infecções fúngicas, sobretudo por Aspergillus, constituem complicações
graves nos doentes imunodeprimidos devido ao seu elevado risco de disseminação.
A aspergilose consiste na causa mais frequente de infecção fúngica sistémica
nos transplantados renais, com uma incidência de 0,4 a 2,4% e com uma
mortalidade elevada, variando entre 56 a 100%26. O risco de aspergilose
pulmonar invasiva aproxima-se de 50%, na presença de colonização dos tractos
respiratórios superior e inferior e manutenção do tratamento imunossupressor16.
O curso clínico desta infecção é determinado pelo aparecimento de
broncopneumonia necrotizante com invasão vascular e consequente enfarte
tecidular, hemorragia e metastização. Até prova em contrário, o tratamento
específico para aspergilose invasiva está preconizado perante a presença de
espécies de Aspergillusnas secreções traqueobrônquicas ou LBA16,26. Na presente
série foi documentado um caso de aspergilose invasiva com atingimento pulmonar
e ocular. O atingimento pulmonar foi confirmado por cultura de LB e LBA e
biópsia pulmonar transbrônquica, que revelou “esporos, hifas e fungos com
características compatíveis com Aspergillus”. O doente foi submetido a
terapêutica com voriconazol, com melhoria clínica, analítica e radiológica.
O Cryptococcus neoformansfoi responsável por outro caso de infecção fúngica
oportunista, também de carácter disseminado, com atingimento pulmonar e
cutâneo. Mais uma vez, a confirmação etiológica foi possível pelo exame
citológico do LB e LBA que revelou “estruturas fúngicas ramificadas sugestivas
de criptococos”, para além de um título sérico elevado de antigénio do
Cryptococcus neoformans(1/8192) e resultado de biópsia cutânea. O doente fez
tratamento com anfotericina B (15 dias), seguido de terapêutica de manutenção
com fluconazol, até completar 12 meses de terapêutica antifúngica.
Os doentes com atingimento extrapulmonar concomitante têm maior probabilidade
de apresentar positividade para o antigénio do criptococos, com títulos séricos
mais elevados, tal como se verificou no caso descrito27.
O risco de infecção por Pneumocystis jirovecié superior nos primeiros seis
meses pós-transplante e durante os períodos de maior imunossupressão.
Clustersde infecções têm sido documentados em doentes VIH positivos,
transplantados renais e com neoplasias hematológicas. Nos doentes
transplantados, a pneumocistose consiste numa infecção aguda ou subaguda,
caracterizada por hipoxemia grave, dispneia e tosse, com achados físicos e
imagiológicos por vezes frustres16. Neste contexto, a sua profilaxia impõe-se,
excepto na presença de contraindicações, de modo a evitar a reactivação de uma
infecção latente. No grupo de doentes estudado, destaca-se um caso de
pneumocistose numa doente transplantada há cerca de 69 meses e imunodeprimida
com a associação prednisolona, micofenolato mofetil e tacrolimus, este último
desde há 12 meses em substituição da ciclosporina. A doente foi medicada com
cotrimoxazol e o tacrolimus foi suspenso. A confirmação da infecção por
Pneumocystis jirovecifoi feita por exame citológico do LB e LBA. Relativamente
às infecções víricas nos transplantados, o Cytomegalovirus(CMV) consiste no
agente patogénico mais comum.
A incidência de infecção pulmonar por CMV depende do tipo de enxerto e regime
de imunossupressão, atingindo cerca de 50% nos transplantados pulmonares16. Até
70% dos doentes transplantados renais com seropositividade para CMV apresentam
reactivação do vírus no pós-transplante, contudo só 20% apresentam doença por
CMV16. Do quadro clínico de infecção pulmonar por CMV fazem parte achados como
hipoxemia, infiltrados difusos e detecção do CMV no LBA. Na série apresentada
não foi identificado nenhum caso de doença por CMV, o que pode estar
directamente relacionado com o tamanho reduzido da amostra.
Os doentes imunodeprimidos também apresentam risco acrescido de infecção por
vírus respiratórios adquiridos na comunidade (Influenza, adenovírus, vírus
sincicial respiratório) e de maior gravidade, porém com variabilidade sazonal
semelhante à da população geral14.
Os doentes imunodeprimidos com doença cutânea por vírus Herpes simplex(VHS) e
Varicella zoster(VVZ) apresentam um risco de disseminação da doença para outros
órgãos de cerca de 10%. O envolvimento pulmonar primário pela varicela ocorre
na primeira semana da doença, com uma taxa de mortalidade de 18%
28
. Cerca de 10 a 25% dos doentes são sintomáticos28. Radiologicamente,
manifesta-se pela presença de infiltrados intersticiais ou nodulares (16%)28. O
atingimento pulmonar por VHS e VVZ em doentes imunodeprimidos constitui uma
emergência médica. Na série apresentada destaca -se um caso de varicela com
atingimento pulmonar. O doente apresentava-se sintomático com febre, lombalgias
e exantema maculopapular com dois dias de evolução.
A imagiologia pulmonar revelava uma acentuação difusa da trama broncovascular.
O doente fez tratamento com aciclovir, inicialmente por via endovenosa (8 dias)
e, posteriormente, por via oral, com boa resposta clínica e radiológica.
Aproximadamente 90% dos casos de abcesso pulmonar são causados por bactérias
anaeróbias, contudo outros agentes, nomeadamente aeróbios, podem estar
envolvidos, como Staphylococcus aureus, Escherichia coli, Pseudomonas
aeruginosa, Haemophilus influenzaetipo b, espécies de Legionellae Nocardiae,
raramente, de estreptococos
29
. A maioria dos abcessos pulmonares constituem infecções polimicrobianas,
estritamente anaeróbias ou mistas, e só cerca de 10% são causados unicamente
por agentes aeróbios29-30.
Os abcessos pulmonares podem ser caracterizados em agudos e crónicos, consoante
a duração dos sintomas. Contrariamente à doença crónica, os agentes aeróbios
estão mais frequentemente envolvidos na infecção aguda29. Esta é geralmente
detectada numa fase de pneumonite, com posterior desenvolvimento de cavitação à
medida que a necrose do parênquima pulmonar progride até estabelecer
comunicação com o brônquio, com consequente formação de nível hidroaéreo, sendo
a imagiologia fundamental para o diagnóstico desta entidade. A duração do
tratamento é controversa. Bartlett defende uma estratégia conservadora que
preconiza manter a antibioterapia até resolução total da imagem ou até a lesão
residual permanecer estável e pequena30. Neste contexto, muitos doentes
requerem 6 a 8 semanas de tratamento, constituindo, actualmente, a estratégia
adoptada na maioria das situações clínicas. Na série apresentada destaca-se um
caso de abcessos pulmonares por Staphylococcus aureusmeticilinossensível
(SAMS). A doente tinha um internamento prévio por PAC à esquerda devido a SAMS,
cuja confirmação etiológica só fora possível através do exame microbiológico do
produto obtido por biópsia aspirativa transtorácica guiada por tomografia
computorizada de um nódulo pulmonar. O exame histológico foi compatível com
AFOP. A doente completou 14 dias de antibioterapia com vancomicina e
piperacilina-tazobactam, com franca melhoria clínica e analítica. Cerca de duas
semanas depois desenvolveu um quadro clínico constitucional e respiratório,
apresentando na telerradiografia do tórax duas imagens cavitadas com nível
hidroaéreo no campo pulmonar esquerdo, compatíveis com abcessos pulmonares –
Fig. 8. A identificação do agente etiológico foi possível por exame
microbiológico de secreções traqueobrônquicas, LB e LBA. A doente foi medicada
com flucloxacilina e clindamicina, com evolução clínica e radiológica
favoráveis, esta última mais evidente a partir da 4.ª semana de tratamento.
Fig. 8 – Abcessos pulmonares por SAMS a nível do hemitórax esquerdo
(telerradiografia do tórax e tomografia computorizada)
Os cinco casos de patologia pulmonar iatrogénica, ou induzida por fármacos,
tiveram como agente responsável a rapamicina. Actualmente encontram-se
descritos cerca de 80 casos de toxicidade pulmonar induzida pela rapamicina em
doentes submetidos a transplante de órgãos sólidos. Na maioria dos casos, os
doentes apresentam sintomas respiratórios e sistémicos associados a imagens
radiológicas de infiltrados pulmonares, mimetizando um quadro de infecção
respiratória num doente imunocomprometido. O LBA é frequentemente utilizado
quando o quadro clínico não responde à terapêutica prescrita, nomeadamente à
antibioterapia, não só para a tentativa de isolamento de microrganismos, como
na pesquisa de outra etiologia diferencial, nomeadamente inflamatória/
imunológica ou neoplásica9,
31
. O estudo celular nos casos descritos de toxicidade pulmonar secundária à
rapamicina apresenta geralmente linfocitose, que por vezes é intensa e
habitualmente de predomínio CD4+
32-33
. O LBA também pode revelar sinais de hemorragia alveolar, como a presença de
hemossiderina nos macrófagos, a qual constitui uma forma mais rara de
toxicidade pela rapamicina
34
.
Caracteristicamente, estas alterações regridem com a suspensão do fármaco,
habitualmente num período de três meses. Nos cinco casos estudados, a ausência
de isolamento de qualquer microrganismo e a observação de linfocitose no LBA
(em quatro deles) sugeriram apresença de um quadro de pneumonite. O facto de se
observarem diferenças na contagem celular total, contagem celular diferencial
com diferentes graus de linfocitose e presença de neutrofilia em alguns casos,
como também na relação CD4/CD8, poderá ter como causa a presença de diferentes
quadros fisiopatológicos associados. Neste contexto, alguns autores defendem a
confirmação anatomopatológica do diagnóstico de pneumonite9,31.
Contudo, a apresentação clínica, o resultado do LBA e a evolução clínica e
radiológica favoráveis após a suspensão do fármaco questionam a necessidade de
uma abordagem diagnóstica mais invasiva. No entanto, pela sua raridade, foi
decidido efectuar uma biópsia pulmonar cirúrgica no doente que apresentava
hemorragia alveolar. Esta foi compatível com AFOP, entidade anatomopatológica
associada a patologia pulmonar de início agudo ou subagudo, podendo surgir de
forma idiopática, associada a infecção ou após exposição a fármacos (como a
rapamicina). Na série apresentada não se verificou nenhum caso de patologia
pulmonar maligna, justificado em parte pelo tamanho reduzido da amostra e
também pelo risco modesto, neste tipo de doentes, de neoplasia sólida do
pulmão, comparativamente com outro tipo de neoplasias10-11.
No que respeita aos casos de infecção, não foi possível correlacionar o tipo de
alterações pulmonares com o esquema de imunossupressão, situação que não se
confirmou com a toxicidade associada à rapamicina. É de referir, ainda, a
impossibilidade de correlacionar o grau e o tempo de imunossupressão com o tipo
de manifestações pulmonares e respectiva gravidade (como por exemplo no caso
descrito de pneumocistose que ocorreu numa fase tardia pós-tranplante), uma vez
que na população estudada os casos mais graves não se associaram ao período de
pós -transplante imediato, momento em que o grau de imunossupressão é maior.
Conclusão
À semelhança dos dados da literatura, a infecção constituiu a principal
complicação pulmonar no grupo de doentes estudado, sendo os agentes bacterianos
e oportunistas os mais frequentes.
A toxicidade pulmonar induzida pela rapamicina tem sido descrita de forma
crescente, destacando-se a importância de monitorizar rigorosamente os níveis
séricos deste fármaco ou de outro potencialmente tóxico.
De salientar a necessidade de uma abordagem diagnóstica invasiva em alguns
casos, a qual foi determinante para a instituição precoce de uma terapêutica
específica. Apesar do tamanho reduzido da amostra, a inexistência de óbitos
está de acordo com o gradual decréscimo da mortalidade por infecção em doentes
imunodeprimidos, dados os avanços no âmbito do diagnóstico, terapêutica,
prevenção e imunossupressão.