Técnicas de dilatação broncoscópica e aplicação tópica de mitomicina C no
tratamento da estenose traqueal pós-entubação - A propósito de dois casos
clínicos
Introdução
As causas benignas mais frequentes de estenose traqueal são as lesões da mucosa
traqueal condicionadas maioritariamente por entubação orotraqueal (EOT)
prolongada e traqueostomia1-4 ou outros traumatismos e doenças inflamatórias
crónicas5.
As estenoses pós-entubação prolongada ocorrem em cerca de 1-4% de todos os
doentes ventilados nas unidades de cuidados intensivos6,
7
. Estas estenoses traqueais sem tratamento apresentam uma morbilidade e
mortalidade consideráveis, uma vez que pequenas alterações no diâmetro das vias
aéreas principais podem condicionar alterações significativas no fluxo aéreo,
com um compromisso importante da via aérea.
Esta patologia representa um desafio em termos terapêuticos, com necessidade de
cirurgias de reconstrução, quando possível, ou tratamento endoscópico com
dilatações sucessivas e outras terapêuticas complementares, com destaque para o
laser.A formação de cicatrizes, tecido de granulação e reestenose são as
principais causas de falência terapêutica.
A mitomicina C é um fármaco em crescente uso como adjuvante da broncoscopia
rígida e laserno tratamento das estenoses traqueais pós-entubação.
Caso clínico 1
Doente de 55 anos, doméstica, com estenose traqueal grave, após EOT prolongada
e traqueostomia durante um mês, na sequência de tiroidectomia total por
carcinoma medular da tiróide em Junho de 2006.
Evoluiu com quadro de dificuldade respiratória progressiva, com estridor
inspiratório marcado.
Referenciada para broncoscopia rígida de intervenção, após a cirurgia torácica
considerar não haver condições técnicas para correcção cirúrgica.
Na primeira broncoscopia rígida, realizada em Novembro de 2006, observada
estenose traqueal complexa aproximadamente a 1 cm das cordas vocais, envolvendo
a parede da traqueia e ocupando três anéis traqueais, com abundante tecido de
granulação. O lúmen da traqueia apresentava-se reduzido a cerca de 25% do seu
calibre normal (Fig. 1).
Fig. 1 – Broncoscopia rígida (Novembro 2006) – estenose traqueal, com marcada
redução do lúmen a cerca de 25% do total, envolvendo a parede da traqueia e
ocupando três anéis traqueais, com abundante tecido de granulação
Foi realizada dilatação mecânica com balão hidrostático e depois com os
broncoscópios rígidos de calibre 7,5 e 8,5 mm (Fig. 2). Após a dilatação,
observa-se duplicação do calibre da zona de estenose.
Fig. 2 – Broncoscopia rígida (Novembro 2006) – Estenose traqueal após dilatação
mecânica com balão hidrostático e sucessivamente com o broncoscópio rígido de
7,5 e 8,5 mm e laser na zona com maior tecido de granulação. Após a dilatação,
estenose traqueal com cerca de 50% do lúmen
A doente manteve necessidade de realização de dilatações frequentes (mensais) e
terapêutica com laserNd YAG nas zonas com mais tecido de granulação, face à
recorrência dos sintomas e reestenose. Nesta altura foi novamente proposta para
cirurgia torácica, mas, perante a exuberância do envolvimento da traqueia e a
proximidade das cordas vocais, não foi aceite, sendo decidido continuar com
terapêutica endoscópica.
Em face das recidivas da estenose por extensa granulação, optou-se por efectuar
terapêutica tópica com mitomicina C em Junho de 2007 (Fig. 3). Esta terapêutica
foi aprovada pela comissão de ética da instituição.
Fig. 3 – Broncoscopia rígida (Junho 2007): após dilatação com broncoscópio
rígido 8,5mm e laser, franca melhoria do calibre traqueal (70% do normal).
Aplicação de mitomicina C tópica, com algodão em estilete metálico, na zona de
estenose traqueal e tecido de granulação, seguida de lavagem com algodão
embebido em sorofisiológico
Foi utilizada solução tópica de mitomicina C na concentração de 0,4mg/ml.
Efectuada aplicação tópica no local da estenose traqueal e tecido de
granulação, com algodão envolvido em estilete metálico longo e embebido na
solução de mitomicina C. A aplicação é feita com controlo visual de lupa
terminal e durante 2 minutos.
Posteriormente, foram efectuadas lavagens com algodão humedecido em soro
fisiológico aplicado no mesmo estilete, para remover os possíveis restos do
fármaco no local da aplicação.
A doente teve redução franca do tecido de granulação e melhoria do grau de
estenose traqueal, ficando com lúmen da traqueia a cerca de 60% do normal e com
melhoria marcada dos sintomas de dificuldade respiratória, nomeadamente do
estridor. Constatado ainda um alargamento do tempo livre de sintomas, com
necessidade de nova broncoscopia em Novembro de 2007 (após 5 meses). Realizada
nova aplicação de mitomicina C nessa data, de acordo com o protocolo descrito.
Desde essa altura, mantém-se em vigilância, realizando broncofibroscopias de
revisão semestrais, sem novo agravamento de sintomas e mantendo o lúmen da
traqueia com calibre de 60%, sem tecido de granulação (Fig. 4). Sem
complicações decorrentes da aplicação de mitomicina C durante todo o período de
18 meses de vigilância.
Fig. 4 – Broncovideoscopia (Maio de 2008): franca melhoria da estenose, lúmen
da traqueia com cerca de 60% do total, sem tecido de granulação. Franca
melhoria dos sintomas, apenas com estridor ligeiro com o esforço
Caso clínico 2
Doente de 81 anos, reformado de marceneiro, com estenose traqueal grave, após
entubação orotraqueal durante cerca de um mês, na sequência de hemicolectomia
por neoplasia do cólon em Agosto de 2006, complicada no pós-operatório por
peritonite.
Após a alta hospitalar, no início de Outubro de 2006, evoluiu com um quadro de
dificuldade respiratória progressiva, com estridor inspiratório, tendo sido
reinternado através do serviço de urgência no final desse mês.
Na primeira broncoscopia rígida, realizada em Outubro de 2006, observada
marcada estenose traqueal, com lúmen da traqueia reduzido a 30% do normal,
localizada a 1 cm das cordas vocais, ocupando dois anéis traqueais e com
abundante tecido de granulação (Fig. 5). Foi realizada dilatação mecânica com
broncoscópio rígido de 6,5 mm e, posteriormente, de 7,5 e 8,5 mm. Efectuada
terapêutica com laserna zona de maior granulação.
Fig. 5 – Broncoscopia rígida (Outubro 2006) – estenose traqueal em anel
fibroso, com abundante tecido de granulação, com redução do lúmen a cerca de
30% do total, ocupando dois anéis traqueais
Após esta terapêutica, dilatação fácil com passagem sem dificuldade do
broncoscópio rígido de 8,5 mm.
Após esta técnica, franca melhoria da dificuldade respiratória, já sem
estridor.
No entanto, o doente evoluiu com recorrência dos sintomas e em broncoscopias
subsequentes foi constatada formação de abundante tecido de granulação e
reestenose, mantendo necessidade de novas dilatações.
Efectuada broncoscopia rígida para nova dilatação e terapêutica com mitomicina
C tópica em Março de 2008 (Fig. 6), de acordo com o protocolo já descrito.
Fig. 6 – Broncoscopia rígida (Março 2008): após dilatação mecânica com
broncoscópio rígido 8,5mm, aplicação de mitomicina C, de acordo com a técnica
descrita, na zona de estenose traqueal e tecido de granulação
Desde essa data, mantém-se em vigilância, sem novo agravamento de sintomas e
mantendo o lúmen da traqueia com 70% do calibre normal, sem tecido de
granulação (Fig. 7).
Fig. 7 – Broncovideoscopia (Dezembro 2008): franca melhoria da estenose
traqueal com calibre de 70% do lúmen normal da traqueia, sem tecido de
granulação
Sem complicações decorrentes da aplicação de mitomicina C decorridos 10 meses.
Discussão
O tratamento cirúrgico das estenoses traqueais graves após entubação traqueal
continua a ser o tratamento de eleição.
Desde 1985, o tratamento broncoscópico das estenoses traqueais evoluiu de forma
considerável, sendo frequentemente utilizado, mesmo nas estenoses severas, em
substituição das cirurgias reconstrutivas, uma vez que apresenta menos
complicações e menor morbilidade8. As técnicas endoscópicas permitem ainda, se
necessário, procedimentos repetidos com uma maior tolerância do doente. Foram
descritas várias técnicas endoscópicas, como dilatação mecânica,
microcauterização, crioterapia, laserCO2 e Nd-YAG e colocação de próteses
traqueais.
Estas técnicas apresentam algumas limitações e as taxas de sucesso referidas na
literatura rondam os 50%
9
. A necessidade de dilatações frequentes aumenta o risco de complicações e a
colocação de próteses traqueais no tratamento das estenoses também apresenta
elevado número de complicações.
Qualquer que seja a técnica utilizada, a causa mais frequente de falência
terapêutica é a formação de tecido de granulação e reestenose.
Para prevenir este fenómeno, foram já testados vários agentes com capacidade de
modular o processo cicatricial e inibir a formação de cicatrizes
10-12
.
Recentemente, a mitomicina C despertou atenção devido à sua potente acção como
inibidora da proliferação de fibroblastos e na modulação do processo
cicatricial
9
,
13
.
A mitomicina C é um antibiótico isolado de Streptomycescaespitosusque apresenta
propriedades antineoplásicas (agente alquilante) e antiproliferativas, inibindo
a proliferação dos fibroblastos, suprimindo a fibrose e a formação de
cicatrizes
14
,
15
.
Utilizada desde a década de 60 como agente de quimioterapia nos adenocarcinomas
gástricos, do pâncreas e da mama, entre outros
16
.
A sua primeira utilização como agente antiproliferativo foi na área da
oftalmologia, no tratamento do pterygium
17
.
Existem vários estudos em animais que demonstraram os efeitos benéficos da
mitomicina C no tratamento das estenoses das vias aéreas18-22. A primeira
utilização em humanos na prevenção de cicatriz traqueal após reconstrução da
traqueia foi descrita em 1998
23
. Actualmente já existe experiência com a utilização da mitomicina C no
tratamento das estenoses subglóticas, traqueais, brônquicas e esofágicas, entre
outros
24
,
25
.
Existem vários relatos de casos clínicos, alguns estudos retrospectivos e
outros prospectivos, mas poucos com grupos de controlo, a demonstrar os efeitos
benéficos da mitomicina C nas estenoses das vias aéreas 9,
26-31
. As taxas de sucesso relatado variam entre 75 e 85% no tratamento das
estenoses traqueais recidivantes, sem relato de efeitos secundários
significativos9,
27
,
28
,
30
.
O mecanismo exacto através do qual a mitomicina C exerce a sua actividade
antiproliferativa não está bem esclarecido, mas foi demonstrado em estudos
invivoe invitro14,15.
Não existem actualmente dados consensuais no que respeita às doses ideais,
duração ou frequência da aplicação. As doses utilizadas nas estenoses traqueais
são equivalentes às utilizadas em oftalmologia (estudos randomizados em
humanos), sendo muito inferiores às utilizadas em estudos animais
(concentrações de 2-10 mg/ml). Relativamente à duração da aplicação, os estudos
publicados variam entre 1 a 5 minutos.
Nos dois casos clínicos apresentados, a concentração utilizada (0,4mg/ml) e a
duração da aplicação (2 minutos) foram escolhidas pelos relatos prévios na
literatura9,13. Esta dose foi eficaz e não foram observados até à data efeitos
secundários no seguimento dos doentes.
A maioria dos estudos não reportou efeitos secundários significativos com a
aplicação tópica de mitomicina C, à excepção de um estudo que reportou
obstrução da via aérea principal em 4 de 85 casos
32
. No entanto, este estudo apresenta algumas limitações. É um estudo
retrospectivo, em dois dos doentes com complicações foram utilizadas doses
muito elevadas de mitomicina C (10mg/ml) e um dos outros doentes apresentava
insuficiência renal terminal, que poderia ter limitado a eliminação do fármaco
e foi entubado orotraquealmente durante 2 horas após a aplicação da mitomicina
C32.
É necessário, no entanto, ter em consideração os efeitos a longo prazo da
utilização da mitomicina C, sendo necessários mais trabalhos que permitam
compreender melhor o mecanismo de acção deste fármaco e a sua segurança a longo
prazo.
Conclusão
O tratamento cirúrgico das estenoses traqueais pós-entubação continua a ser a
técnica de eleição. Contudo, nos casos em que esta não é possível ou é
tecnicamente difícil, o recurso às técnicas de dilatação broncoscópicas tem
tido, nalguns casos, boa resposta.
No entanto, pode por vezes induzir maior reacção cicatricial, formação de
granulação e reestenose. A associação às técnicas de dilatação broncoscópica de
um agente modulador do processo cicatricial, como a mitomicina C, parece ser
eficaz e segura nos casos de estenoses traqueais de difícil resolução.