Tiróide ectópica: A propósito de um caso clínico
Introdução
A definição de tiróide ectópica consiste na presença de tecido tiroideu não
localizado na sua topografia habitual, ou seja, anteriormente ao segundo,
terceiro e quarto anéis traqueais, na linha média cervical. Existem casos
descritos na literatura de tiróide ectópica no sistema porta-hepático, vesícula
biliar e ovário
1,2
.
Durante a terceira ou quarta semanas do desenvolvimento intrauterino, surge uma
bolsa na transição dos dois terços anteriores com o terço posterior da base da
língua que dará origem à glândula tiroideia
1
.
O lobo mediano da tiróide inicia a sua descida caudalmente, de seguida divide-
se em istmo e dois lobos. Por volta da sétima semana adquire a sua localização
clássica sobre a traqueia.
Do quarto e quinto arcos branquiais forma-se o restante tecido tiroideu que se
une à tiróide em posição lateral, completando a sua formação
3
.
Tipicamente, o tecido tiroideu ectópico está localizado na linha mediana do
pescoço, desde a base da língua até ao mediastino
3
.
A localização mediastínica é muito rara
4
, sendo responsável por apenas 1% dos casos.
Normalmente trata-se de uma massa assintomática; no entanto, se possuir um
tamanho considerável poderá dar sintomas resultantes da compressão venosa ou da
traqueia.
Várias anomalias podem ocorrer para justificar a presença de tecido ectópico,
nomeadamente a ausência de descida de parte ou do total da glândula, formando-
se a tiróide na base da língua, na região supra-hióide, infra-hióide ou
intratraqueal. Por outro lado, se a glândula descer mais do que o normal,
poderão ocorrer situações de tiróide no mediastino superior, retroesternal,
adjacente ao arco aórtico, entre a aorta e o tronco pulmonar, na porção
superior do pericárdio e mesmo no septo intraventricular do coração
5
.
Outras teorias tentam explicar o aparecimento de tecido ectópico, como:
sequestro de nódulos tiroideus (em decorrência de tiroidites), traumatismo ou
hiperplasia nodular, presença de tecido tiroideu sem aspecto neoplásico na
cápsula dos gânglios linfáticos cervicais, formação teratomatosa, implantação
intraoperatória de células tiroideias benignas ou outros locais do pescoço ou
anomalias branquiais
6,7
.
Caso clínico
Doente do sexo masculino, raça caucasiana, 45 anos, não fumador, operário
fabril (de peças para automóveis), referenciado à consulta externa de
Pneumologia do Centro Hospitalar entre Douro e Vouga EPE pelo médico assistente
por alargamento do mediastino, detectado em radiografia pulmonar de rotina
(Fig. 1).
Fig. 1 – Radiografi a pulmonar (incidência postero-anterior e perfi l esquerdo)
realizado na primeira consulta no hospital, onde se evidencia um alargamento do
mediastino
Clinicamente, o doente apresentava-se assintomático. Negou dispneia, tosse,
expectoração, hemoptises, pieira, astenia, anorexia, emagrecimento ou febre.
Sem outras queixas dos restantes aparelhos e sistemas.
Relativamente aos antecedentes pessoais e familiares não apresentava nenhum
dado relevante. Referia consumo de álcool apenas socialmente; sem medicação
crónica habitual, sem história de exposição a aves exóticas/poluentes
ambientais ou viagens para o estrangeiro. Ao exame objectivo, apresentava um
bom aspecto geral, com auscultação cardíaca e pulmonar sem alterações.
Relativamente aos exames subsidiários pedidos para estudo do doente, o
hemograma, bioquímica com parâmetros da função hepática e renal, função
tiroideia, anticorpos antitiroideus e doseamento da enzima conversora de
angiotensina, encontravam'se normais. Realizou TAC torácica que evidenciou a
nível do grupo pré-traqueal e paratraqueal direito duas formações nodulares,
respectivamente com 31 × 27 mm (Fig. 2) e 5 × 39 mm (Fig. 3); no parênquima
pulmonar não foram observadas lesões com características evolutivas.
Fig. 2 – TAC torácica: formação nodular com dimensões de 31 x 27 mm, no grupo
pré-traqueal
Fig. 3 – TAC torácica: formação nodular com dimensões de 45 x 39 mm no grupo
paratraqueal direito
Fig. 4 – Cintigrafi a com iodo-131: tiróide com os dois lobos e o istmo bem
defi nidos e na sua localização clássica e ainda duas outras áreas arredondadas
de captação específi ca de radiofármaco no mediastino superior
O doente realizou broncofibroscopia, não tendo sido encontradas alterações
morfológicas ou topográficas em ambas as árvores brônquicas; foi realizada
punção transtraqueal direita e lavado brônquico para anatomia patológica e
microbiologia; a punção foi efectuada com a agulha de Wang (citologia), cujo
resultado foi: elementos figurados do sangue. O exame citológico do lavado
brônquico foi negativo para células malignas, e o exame micobacteriológico
também foi negativo.
Posteriormente, foi realizada broncoscopia rígida com punção transtraqueal
direita. O exame histológico mostrou apenas retalho de tecido adiposo,
insuficiente para diagnóstico conclusivo. O exame citológico das 21 lâminas
enviadas mostrou fundo hemático dando suporte a pequenos retalhos de tecido
fibroadiposo, a par de escassas células cilíndricas ciliadas e caliciformes
mucossecretoras, próprias do epitélio respiratório inferior, sem desvios
morfológicos significativos.
Perante a ausência de diagnóstico, foi pedida colaboração a Cirurgia Torácica,
tendo realizado minitoracotomia no Serviço de Cirurgia Torácica do Hospital dos
Covões, com biópsia da massa mediastínica.
O exame anatomo-patológico revelou tratar-se de tecido tiroideu.
Perante este resultado foi enviado à consulta de patologia cirúrgica tiroideia
do Centro Hospitalar entre Douro e Vouga EPE para estudo da glândula tiroideia.
Foi requisitada ecografia da tiróide e cintilograma com iodo-131.
A ecografia demonstrou a presença de um nódulo com 2 cm no terço inferior do
lobo direito, bem delimitado, isoecogéneo com o restante parênquima, com fino
halo hipoecogéneo envolvente e com pequenas áreas líquidas; no istmo observou-
se um nódulo hipoecogéneo bem delimitado com 6,6 mm, também com pequenas áreas
líquidas.
Foi realizada punção aspirativa do nódulo que revelou hiperplasia nodular
tiroideia, em transformação pseudoquística.
O cintilograma demonstrou morfologia habitual da glândula tiróide com os dois
lobos e o istmo bem definidos e na sua localização clássica. No entanto, foram
também evidentes duas outras áreas arredondadas de captação específica de
radiofármaco que aparecem no mediastino superior, uma mais central e outra
sobre o lado direito.
Foi decidido na consulta de patologia tiroideia manter vigilância da situação
clínica.
Foi solicitado novo parecer a outro Centro de Cirurgia Torácica, que de acordo
com a descrição prévia o tratamento proposto foi vigilância clínica e
radiológica.
O doente manteve-se sempre assintomático do ponto de vista respiratório, sem
alterações no exame físico e sem outras queixas.
Em 2007 repetiu radiografia pulmonar que revelou imagem sobreponível a 2005
(Fig. 5).
Fig. 5 – Radiografi a pulmonar (incidência posteroanterior e perfi l esquerdo)
que demonstra alargamento do mediastino sobreponível à imagem de 2005
A TAC torácica confirmou a presença das duas massas mediastínicas (Figs. 6 e 7)
com dimensões semelhantes às relatadas na TAC torácica de 2005.
Fig. 6 – TAC torácica: formação nodular com 35 mm de maior eixo no grupo pré-
traqueal
Fig. 7 – TAC torácica: formação nodular com 46 mm de maior eixo no grupo
paratraqueal direito
Realizou ecografia de controlo que demonstrou a presença de dois nódulos
justapostos com degenerescência quística, no pólo inferior do lobo direito, na
transição para o istmo, com 16 mm e 18 mm de maiores eixos; no lobo esquerdo
identificaram-se ainda dois nódulos justapostos mais pequenos, com 9 mm e 7 mm.
A função tiroideia encontrava-se normal. Decidido manter vigilância.
Em Junho de 2008, mantinha-se assintomático e radiologicamente apresentava a
mesma imagem na radiografia pulmonar (Fig. 8), pelo que teve alta da consulta
de Pneumologia, com indicação de realização de análises da função tiroideia,
ecografia da tiróide e radiografia pulmonar anualmente no seu médico
assistente, e, no caso de surgir alguma alteração, reenviar o doente à consulta
de patologia tiroideia e Cirurgia Torácica.
Fig. 8 – Radiografi a pulmonar (incidência posteroanterior e perfi l esquerdo)
mostrando alargamento do mediastino sobreponível aos exames anteriores
Discussão
A apresentação clínica de tiróide ectópica com localização mediastínica é rara
(1%) e o tratamento habitual de acordo com a literatura é controverso
8
.
Esta situação clínica poderá estar associada a baixo potencial de malignização,
daí alguns autores optarem por vigilância; a compressão das estruturas
mediastínicas implica uma orientação diferente, ou seja, tratamento cirúrgico
8
.
A localização mais frequente de tecido tiroideu ectópico é na base da língua
(90% dos casos), seguida da região submandibular, nódulos linfáticos cervicais,
laringe, traqueia, esófago, mediastino e coração
9
.
A maior parte dos casos descritos de tiróide no mediastino não são verdadeiras
anomalias do desenvolvimento, mas apenas extensões intratorácicas de uma
tiróide com localização habitual
3
.
Este caso clínico retrata um verdadeiro caso de tiróide ectópica, uma vez que
não há história de cirurgia da tiróide, a glândula tiroideia cervical e o
tecido ectópico não têm o mesmo processo patológico e, pela TAC torácica,
verificou-se que não existia continuidade entre a glândula cervical e o tecido
ectópico
1,9,10
.
Na maior parte destes casos (incluindo o presente caso clínico), o doente
encontra-se assintomático e eutiroideu; no entanto, podem surgir sintomas
respiratórios como tosse, dispneia e hemoptises. Menos frequentemente podem
apresentar disfagia ou síndroma da veia cava superior
1,9
.
A apresentação na radiografia pulmonar pode ocorrer sob a forma de desvio e/ou
compressão da traqueia, calcificações ou massa de tecidos moles.
A cintigrafia é útil para o diagnóstico diferencial com outras massas, como o
timoma ou teratoma, e para excluir outros locais de tecido ectópico
9,11
.
No estudo dos doentes com alargamento mediastínico, nada faria pensar na
coexistência de tecido tiroideu.
Este artigo serve para avaliar e discutir abordagens clínicas e de diagnóstico,
confrontando com diferentes pontos de vista na sua abordagem multidisciplinar.
Neste caso, as hipóteses diagnósticas a colocar em face de um doente com
alargamento do mediastino, seriam os diagnósticos diferenciais de massa do
mediastino anterior (timoma, tumores de células germinativas e linfoma)
12,13, 14,15
.
Foram ainda colocadas como hipóteses de diagnóstico, a sarcoidose, pelo facto
de poder cursar com quadro de adenopatias hilares bilaterais
16,17,18,19
, e a tuberculose devido à sua elevada prevalência no nosso país, apesar da
história e exame físico não serem sugestivos
20, 21,22, 23
.
No caso relatado, a cintigrafia detectou duas outras áreas arredondadas de
captação específica de radiofármaco no mediastino superior separadas da
glândula tiroideia cervical.
Um resultado positivo confirma o diagnóstico de tecido tiroideu, mas um
resultado negativo não exclui o diagnóstico1.
Por vezes a cintigrafia pode não detectar pequenas conexões entre a tiróide
cervical e o tecido ectópico no mediastino; no entanto, a TAC torácica
realizada permitiu-nos excluir essa possibilidade. Vários casos foram relatados
relativamente ao uso da TAC torácica e em todos os casos esta fez um
diagnóstico correcto em 100% dos casos
2,11
.
Vários autores defendem o tratamento cirúrgico em todos os doentes com bócio
retroesternal, mesmo que se encontrem assintomáticos devido à incidência
relativa de malignidade e risco de obstrução aguda das vias aéreas superiores
24,25
. Por outro lado, outros autores concluíram que é preciso avaliar os aspectos
clínicos do doente e a necessidade real de submetê-lo a um procedimento
cirúrgico de algum risco, com possíveis complicações
26
.
Em relação a esta situação clínica foram ponderadas as duas hipóteses de
abordagem, ou seja, médica/cirúrgica
8
.
Foram contactados dois centros diferentes de Cirurgia Torácica em Portugal e um
centro de patologia da tiróide, com posturas diferentes e igualmente
aceitáveis.
Pelo facto de o doente ter sido submetido inicialmente a minitoracotomia
diagnóstica, optou-se por não intervir uma segunda vez, visto estar
assintomático.
Neste caso, a distribuição da glândula tiroideia ectópica não interferia com a
via aérea, não existindo risco aparente de compressão vascular ou obstrução da
via aérea, pois então neste a indicação cirúrgica seria consensual
27, 28
.
Este caso clínico serve para ilustrar a raridade da patologia encontrada,
salientando a necessidade a alargar o leque de patologias como diagnóstico
diferencial em doente com alargamento mediastínico.