Síndroma hepatopulmonar: Relato de um caso clínico e revisão do tema
Introdução
A presença de hipoxemia progressiva, num doente com história de patologia
hepática crónica deve levantar a suspeita de síndroma hepatopulmonar (SHP) '
uma complicação frequente de um conjunto diversificado de patologias hepáticas
que têm em comum o aumento de produção ou o défice de metabolização de
substâncias vasotrópicas que, em última instância, serão responsáveis pelo
desenvolvimento de alterações estruturais do sistema vascular pulmonar,
condicionando alterações das trocas gasosas. Esta explicação é apenas uma das
possibilidades, uma vez que os detalhes do mecanismo fisiopatológico desta
síndroma permanecem por esclarecer. O seu reconhecimento clínico reveste-se de
extrema importância, uma vez que as medidas terapêuticas que podem ser
oferecidas a estes doentes podem modificar drasticamente o seu prognóstico a
curto, médio e longo prazo.
Caso clínico
Os autores apresentam o caso de um doente do sexo masculino, 39 anos,
caucasiano, trabalhador numa fábrica de serração de madeira, não fumador, mas
com história de hábitos etílicos marcados de longa duração. Antecedentes
patológicos de cirrose hepática de origem alcoólica (Child-Pugh grau A). Sem
hábitos medicamentosos.
Enviado à consulta de Pneumologia com informação de policitemia secundária. O
doente apresentava queixas de dispneia para esforços de média intensidade nos
últimos 10 anos e com agravamento progressivo. Ao exame objectivo apresentava-
se eupneico em repouso, com eritrocianose facial. Sem baqueteamento digital. O
exame cardiopulmonar era normal. A palpação abdominal mostrava discreta
nodulação do bordo inferior do fígado, sem onda ascítica. Sem edemas
periféricos. A saturação arterial periférica era de 85% (ortostatismo e
decúbito). Analiticamente apresentava Hb 18,5 gr/dl e Htc 53,6%, bilirrubina
total 46,5mmol/L, bilirrubina directa 7,7 mmol/L, ỵGT 186 U/L, FA 139 U/L, ALT
53 U/L, AST 76 U/L. O estudo da coagulação revelou um valor de TP 15' com um
controlo de 12' com INR de 1,3. A radiografia do tórax mostrava opacidades
micronodulares bibasais e aumento do diâmetro do ramo descendente da artéria
pulmonar à direita e procidência do segundo arco mediastínico à esquerda (Fig.
1). As alterações funcionais respiratórias resumiam-se a uma redução marcada da
DLCO (38%) e DLCO/VA (44%). A avaliação gasimétrica mostrava insuficiência
respiratória parcial com hiperventilação e aumento da diferença alveolocapilar
(PaO2 53,1 mmHg, PaCO2 24,5 mmHg; P(A -a)O2 66 mmHg). O ecocardiograma trans
torácico foi normal, permitindo calcular a PSAP em 18 mmHg. Face a estes
achados, procurou-se excluir doença pulmonar intersticial. A tomografia
computorizada (TAC) do tórax com algoritmo de alta resolução foi normal. Tendo
em conta os resultados dos exames realizados foi colocada a hipótese de as
manifestações pulmonares poderem estar relacionadas com a patologia hepática de
base, enquadradas no contexto de uma possível síndroma hepatopulmonar. Para
esclarecimento desta hipótese foi solicitada realização de ecocardiografia
transtorácica com contraste. À injecção da solução salina agitada em veia
periférica, observou -se o aparecimento de microbolhas nas cavidades cardíacas
esquerdas após 6 ciclos cardíacos, confirmando a ausência de comunicação
intracardíaca e sugerindo a existência de vasodilatação intrapulmonar (Figs. 2
e 3). Para identificar a presença de alterações vasculares, o doente foi
submetido a angiografia pulmonar, que revelou micronódulos centrilobulares
difusos conectados por múltiplas veias pulmonares subpleurais em arcada
dilatadas (Figs. 4 e 5). O teste de saturação com 100% O2 mostrou-se positivo
(PaO2 e P(A -a)O2 em ar ambiente, respectivamente 55,4 e 64,2 mmHg e PaO2 e P
(A-a) O2 após 10 minutos a 100% de O2 572,2 e 112,4, respectivamente),
sugerindo presença de vasodilatação pulmonar por alterações vasculares difusas
(tipo I do padrão angiográfico). Face estes resultados e à ausência de
patologia cardio pulmonar concomitante, confirmou-se o diagnóstico de síndroma
hepatopulmonar com grau de gravidade moderado (PaO2<60 mmHg e >50 mmHg). O
doente foi proposto para transplante hepático prioritário (MELD 19),
encontrando-se actualmente em lista de espera.
Fig. 1 – Opacidades micronodulares com predomínio bibasal. Aumento do diâmetro
do ramo descendente da artéria pulmonar direita e procidência do segundo arco
mediastínico direito
Fig. 2 – Ecocardiografia trastorácica com contraste mostrando preenchimento das
cavidades direita por microbolhas imediatamente após injecção de solução salina
agitada
Fig. 3– Ecocardiografia transtorácica com contraste mostrando preenchimento das
cavidades cardíacas esquerda por microbolhas após 6 ciclos cardíacos
Fig. 4 – AngioTAC pulmonar mostrando micródulos centrilobulares difusos,
conectados por múltiplas veias pulmonares subpleurais em arcada dilatadas
Fig. 5– Corte coronal da mesma AngioTAC pulmonar
Discussão
A associação entre doença hepática e hipoxemia foi inicialmente referida por
Fluckiger em 1884 que descreveu o caso de uma mulher com cianose, hipocratismo
digital e cirrose. A síndroma hepatopulmonar deve o seu nome aos trabalhos de
Kennedy e Knudsen em 19771 e é definida pela presença de hipoxemia, no contexto
de doença hepática, resultante de vasodilatação intrapulmonar ' característica
da doença2,3. A vasodilatação ocorre a nível pré-capilar, capilar e pós-capilar
determinando efeito de shuntpulmonar direito-esquerdo, possibilitando que o
sangue venoso comunique com a circulação arterial4-6. A hipoxemia tem sido
atribuída a várias causas, nomeadamente a alterações da V/Q, alteração da
difusão e aumento da fracção de shuntintrapulmonar. Mais recentemente, um novo
mecanismo fisiopatogénico foi proposto, definido pela alteração da difusão -
perfusão causada pelas dilatações vasculares e consequente aumento do diâmetro
dos capilares pulmonares. De acordo com esta teoria, a alteração estrutural
vascular dificultaria a difusão das moléculas de O2 para o centro da corrente
sanguínea determinando uma redução da oxigenação da Hb. O estado circulatório
hiperdinâmico determinado por um elevado débito cardíaco encontrado em 30 -50%
dos doentes com cirrose hepática contribuiria para a ocorrência da hipoxemia,
reduzindo ulteriormente o tempo de hematose. Acredita-se que na patogénese dos
shuntsestejam implicados possíveis desequilíbrios entre substâncias
vasodilatadoras e vasoconstritoras produzidas e/ou metabolizadas pelo fígado.
Neste domínio tem sido dada crescente atenção ao papel do óxido nítrico (ON) na
patogenia da SHP. Alguns autores referem aumento de ON no ar exalado de doentes
com SHP, por comparação com doentes cirróticos sem SHP7-9. Embora possa ocorrer
na hepatite aguda ou crónica6,10, ou mesmo na hipertensão portal sem doença
hepática4,5. A SHP ocorre com mais frequência no contexto de doença hepática
cirrótica, com uma prevalência de 16 a 24%11. Do ponto de vista clínico, as
manifestações da doença hepática de base geralmente dominam o quadro. O
hipocratismo digital e as telangectasias cutâneas (spider naevi),propostas como
marcadores de SHP12, são achados pouco frequentes, o mesmo se aplicando à
cianose, rara e de aparecimento tardio. A sintomatologia respiratória, quando
presente, consiste de dispneia (em cerca 20% dos doentes13, inicialmente de
esforço e tardiamente em repouso), platipneia, que se refere à dispneia que
surge em ortostatismo e é aliviada pelo decúbito e ortodeoxia (queda da
saturação do O2>5% ou da PaO2 >4 mmHg na passagem de decúbito à posição
erecta). O diagnóstico da SHP é baseado na demonstração de anormalidades nas
trocas gasosas e na identificação de dilatações vasculares intrapulmonares. A
única alteração funcional tipicamente observada é a redução da DLCO14. A
avaliação gasimétrica em ar ambiente, que deverá ser realizada após 10 minutos
em ortostatismo, é obrigatória para fundamentar o diagnóstico e definir a
gravidade do quadro de acordo com a classificação proposta pelo ERS task
force15 (ligeira (PaO2 >80 mmHg), moderada (PaO2 >60 e <80 mmHg), grave (PaO2
>50 mmHg e <60 mmHg) e muito grave (PaO2 <50 mmHg). A diferença alveolocapilar
é sempre >15 mmHg. Deve ser realizada também prova de saturação com 100% de O2,
sendo que habitualmente, nos doentes com SHP, esta prova proporciona correcção
da hipoxemia. A presença de dilatações vasculares intrapulmonares pode ser
demonstrada por três modalidades de exames de imagem: ecocardiografia com
contraste, cintigrafia com macroagregados de albumina marcados com Tc-99 e
angiografia pulmonar. A ecocardiografia com contraste TT ou ET é um método
simples e não invasivo considerado o gold standardpara o rastreio e diagnóstico
de vasodilatação intrapulmonar16. Em indivíduos saudáveis, as microbolhas
geradas pela agitação da solução salina injectada em veia periférica são
absorvidas pelos capilares pulmonares e não aparecem nas cavidades cardíacas
esquerdas. Por outro lado, o seu aparecimento nas cavidades esquerdas após o
mínimo de três ciclos cardíacos implica a existência de vasodilatação
intrapulmonar. No mesmo princípio é baseado o método da cintigrafia com
macroagregados de albumina marcados com Tc-99, que permite quantificar o grau
de vasodilatação intrapulmonar (fracção de shunt) através da medição de produto
marcado que, não sendo absorvido pelo sistema vascular pulmonar, se deposita a
nível sistémico (principalmente cerebral). A fracção de shuntem doentes com SHP
é de 10-71% (indivíduos saudáveis 3-6%). Ambos os métodos descritos são
válidos, sendo a ecocardiografia mais sensível e a cintigrafia mais específica.
A escolha entre um ou outro método é fundamentada na existência de doença
cardiopulmonar subjacente. Na sua ausência, a ecocardiografia é o método de
eleição, assumindo a SHP como causa de hipoxemia17. Na presença de doença
cardiopulmonar concomitante, a cintigrafia permitirá determinar
quantitativamente o contributo da vasodilatação na perturbação de oxigenação17.
Dois padrões angiográficos foram descritos por Krowka: tipo I difuso e tipo 2
focal, tendo, estes últimos, indicação para embolização. A radiografia do tórax
e a TAC de alta resolução podem mostrar, respectivamente, opacidades
micronodulares ou reticulonodulares com predomínio basal com ectasia das
artérias pulmonares centrais e dilatação dos vasos pulmonares periféricos
basais18. A SHP tem um carácter progressivo, podendo ocorrer mesmo face a
estabilidade da doença hepática, constituindo um factor independente de mau
prognóstico. A sua presença traduz -se por significativa morbilidade, aumento
da mortalidade e marcada redução da sobrevida média (10,6 meses em doentes com
SHP versus40,8 meses em doentes sem SHP), o que atesta a importância da sua
identificação19-22. Estes doentes devem ser submetidos a avaliação adicional de
acordo com o modelo de doença cirrótica terminal (MELD), com o objectivo de
determinar o grau de prioridade nas listas de espera para transplante
hepático23,24. O tratamento da SHP inclui oxigenioterapia geralmente com
carácter paliativo em doentes com PaO2 <60 mmHg ou com dessaturação induzida
pelo exercício. Várias medidas farmacológicas têm sido testadas, mas até hoje
nenhum estudo realizado mostrou benefícios. Hoje em dia a SHP é considerada
indicação para transplante hepático23,25 , o que sublinha a importância do seu
diagnóstico. A resolução completa da SHP tem sido observada em >80% dos doentes
após transplante26. A normalização dos valores de O2 arterial pode demorar
entre 2 semanas até 14 meses27. A mortalidade pós-operatória é proporcional ao
grau de gravidade da SHP, sendo que uma PaO2<50 mmHg e uma fracção de shunt>20%
representam os factores preditivos mais importante de mortalidade pós-
operatória21.