Síndroma do pulmão encolhido: Relato de um caso clínico e revisão da literatura
Síndroma do pulmão encolhido: Relato de um caso clínico e revisão da literatura
Introdução
A síndroma do pulmão encolhido é uma manifestação respiratória do LES raramente
descrita, caracterizada pela tríade de dispneia, diminuição dos volumes
pulmonares e alterações funcionais restritivas. A sua verdadeira prevalência é
desconhecida, sendo uma doença raramente descrita na literatura. Os mecanismos
fisiopatológicos envolvidos são múltiplos, estando na base das manifestações
clínicas, funcionais e radiológicas uma disfunção diafragmática de origem
neuromuscular com diferente grau de gravidade. Os autores apresentam o caso
clínico de uma doente lúpica com queixas de dispneia de longa data e de
agravamento progressivo cuja investigação culminou no diagnóstico de síndroma
do pulmão encolhido.
Caso clínico
Doente do sexo feminino, de 24 anos, raça caucasiana, doméstica, com
diagnóstico de LES desde Agosto de 2007, definido segundo os critérios ACR
(derrame pleural e pericádico, úlceras orais, poliartrite, rashmalar,
proteinúria, anticorpos anti-ADN e ANA positivos), medicada com prednisolona 10
mg e difosfato de cloroquina 250 mg. Foi enviada à consulta de Pneumologia em
Março de 2009 para esclarecimento de quadro de dispneia subaguda acompanhada
por toracalgia de cara cterísticas pleuríticas com um ano e meio de evolução,
que tinham motivado múltiplas recorrências a serviços médicos. Ao exame
objectivo a doente apresentava rashmalar em asa de borboleta, eupneica em
repouso com respiração torácica preferencial e um índice de massa corporal >30.
À auscultação cardíaca apresentava taquicardia sinusal. O exame do tórax
mostrava diminuição da amplitude dos movimentos respiratórios e diminuição
global do MV. Os testes de laboratório não mostravam alterações relevantes,
nomeadamente o valor dos D-dímeros estava dentro da normalidade e havia
ausência de anticorpos antifosfolipídicos. As radiografias simples do tórax
durante as várias recorrências ao serviço de urgência revelavam principalmente
diminuição dos volumes pulmonares, opacidades em estria bibasais (que em TAC
mostraram tratar-se de atelectasias laminares, excluindo qualquer outra
alteração pleuroparenquimatosa) e elevação de ambas as hemicúpulas (Figs. 1 e
2). A cintigrafia de ventilação/perfusão apresentava baixa probabilidade de
tromboembolismo pulmonar (não foi realizada angio-TAC pulmonar por alergia ao
produto de contraste). O ecocardiograma transtorácico era normal. A doente foi
submetida a estudo funcional respiratório, cujos resultados estão resumidos no
Quadro I. As alterações funcionais eram compatíveis com uma grave alteração
restritiva, com DLCO ajustada para VA normal e diminuição marcada das pressões
máximas dos músculos respiratórios. A prova de esforço cardiopulmonar mostrou
intolerância ao esforço por limitação ventilatória (restrição grave) com
resposta cardiovascular normal. Face ao diagnóstico de base da doente, as
características clínicas, os achados radiográficos e as alterações funcionais
observadas, fez-se o diagnóstico de síndroma do pulmão encolhido confirmado por
fluoroscopia diafragmática, que mostrou ausência de movimentos diafragmáticos.
Adicionalmente, com a intenção de excluir a presença de miopatia secundária à
corticoterapia, realizou electromiografia, que foi normal. Do ponto de vista
terapêutico, optou-se por incrementar a dose de corticóides para 20 mg de
prednisolona por dia, em desmame prolongado, associando-se azatioprina na dose
de 150 mg por dia, aminofilina 225 mg 2 vezes ao dia e beta2 -agonista de longa
acção (salmeterol 50 mcg) 2 vezes ao dia. Além do tratamento farmacológico, a
doente foi incluída num programa de reabilitação respiratória. A evolução
clínica foi favorável com atenuação gradual das queixas de dispneia e
toracalgia. Do ponto de vista funcional, a doente apresentou melhoria lenta,
mas progressiva, dos valores de FEV1, FVC, VC, MIP e MEP (Figs. 2 e 3). Não
apresentou complicações relacionadas com o tratamento.
Fig. 1 – Radiografi a simples do tórax póstero-anterior que mostra diminuição
dos volumes pulmonares, elevação das hemicúpulas diafragmáticas e opacidades em
estrias bibasais
Fig. 2 – TAC do tórax sem contraste que mostra opacidade em faixas densas
bibasais
Quadro I – Estudo funcional respiratório inicial
Fig. 3 – Evolução dos parâmetros funcionais após início do tratamento
FVC= capacidade vital forçada; FEV1= volume máximo expirado no 1.º segundo;
CPT= capacidade pulmonar total; CV= capacidade vital
Fig. 4 – Evolução dos valores de PI max e PE max após início do tratamento
PI max= pressão inspiratória máxima; PE max= pressão expiratória máxima
Discussão
O shrinking lung syndrome,literalmente síndroma do pulmão encolhido, representa
uma das manifestações do LES de mais complexo diagnóstico, condicionando
repercussões respiratórias incapacitantes. A síndroma é caracterizada por
dispneia não explicada por outra doença ou complicação cardiopulmonar, volumes
pulmonares diminuídos sem alterações pleuroparenquimatosas, padrão funcional
restritivo e elevação do diafragma. A sua exacta prevalência continua
indeterminada. Embora alguns autores refiram uma prevalência de 18-27%1,2,
apenas cerca de 70 casos estão descritos na literatura3, levando à consideração
a importância do conhecimento da síndroma e das suas características. A sua
patogénese continua por esclarecer, embora vários estudos sugiram a interacção
de múltiplos mecanismos fisiopatológicos. Para explicar a disfunção
diafragmática, alguns autores sugerem uma origem neuropática (neuropatia
desmielinizante ou degeneração axonal)4,5,6, outros miopática com a existência
de fibrose diafragmática ou justadiafragmática difusa e atrofia muscular5,7. É
razoável pensar que estes mecanismos possam conjuntamente e em diferente medida
contribuir para o desenvolvimento da síndroma.
A apresentação clínica é caracterizada por dispneia de início subagudo e
progressiva ao longo de semanas ou meses e toracalgia pleurítica inexplicada8.
A radiografia do tórax mostra volumes pulmonares diminuídos sem evidência de
alterações pleuroparenquimatosas, à excepção de atelectasias laminares
bibasais. A TAC do tórax confirma os achados da radiografia simples. O estudo
funcional respiratório revela um padrão restritivo com DLCO ajustada para o
volume alveolar normal. A redução característica do MIP e MEP reflecte as
alterações dos músculos respiratórios. Outros exames complementares para
sustentar o diagnóstico e confirmar o envolvimento diafragmático são a
fluoroscopia e a estimulação eléctrica do nervo frénico, sendo este último um
procedimento doloroso e não disponível em todos os centros. O diagnóstico desta
complicação pulmonar exige um alto índice de suspeita, a presença de
sintomatologia compatível, o despiste de outras complicações pulmonares do
lúpus que se possam manifestar com sintomatologia sobreponível (pleurisia
lúpica, pneumonia infecciosa, pneumonite lúpica, tromboembolismo pulmonar), a
identificação de alterações radiológicas típicas juntamente com padrão
restritivo no estudo funcional respiratório, com diminuição das pressões
musculares.
O curso clínico da doença mostra uma tendência para a estabilização1, embora
ten-ham sido descritos casos de deterioração progressiva da função respiratória
com necessidade de oxigenoterapia e ainda um caso fatal de falência
respiratória. O tratamento desta síndroma é controverso, não existindo um
esquema terapêutico protocolizado, variando fármacos e dosagens entre os
autores. Existem relatos de benefícios com corticoterapia, isoladamente ou
associada a outros agentes imunosupressores8-9, bem como com xantinas10 e
beta2-agonistas de longa acção, devido ao efeito inotrópico positivo sobre os
receptores beta do músculo diafragma2.