Risco de reinternamento na doença pulmonar obstrutiva crónica: Estudo
prospectivo com ênfase no valor da avaliação da qualidade de vida e depressão
Introdução
A doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC) é das doenças mais prevalentes no
mundo ocidental, repercutindo-se em cerca de um milhão de anos de vida
potenciais perdidos em todo o mundo1. Em Portugal, e em 2002, 5,3% da população
activa portuguesa apresentava esta doença1. Em 2020, estima-se que será a
quinta principal causa de incapacidade em todo o mundo e é a única das
principais causas de mortalidade cujo crescimento e impacto ainda não
abrandou1.
O curso da doença é pautado por períodos de agudização, sendo o internamento
frequentemente uma inevitabilidade e que geralmente se associa a agravamento
funcional, nem sempre reversível, e a custos elevados2. No nosso país, os
gastos com tratamento hospitalar de doentes com DPOC subiram 10% em cinco anos,
representando em 2002, um consumo superior a 120 mil dias de internamento1.
O Programa Nacional de Prevenção e Controlo da Doença Pulmonar Obstrutiva
Crónica1 tem como objectivos principais inverter a tendência do aumento da
prevalência da DPOC em Portugal, melhorar o estado de saúde e a funcionalidade
dos doentes com DPOC. Elege como metas: (1) a redução do número de episódios de
internamento hospitalar por agudização da DPOC; (2) a diminuição do recurso a
urgência hospitalar por agudização ou complicação da DPOC; e (3) a
racionalização, a prescrição e o consumo de meios terapêuticos.
O aumento da sobrevivência de doentes com DPOC é objectivo do plano nacional
tal como a melhoria da qualidade de vida (QV), efeito provavelmente de maior
importância.
Dos aspectos mais consistentes obtidos em estudos que avaliam o estado de saúde
de doentes com DPOC, sobressai o impacto proeminente da depressão, da disfunção
emocional e da QV na doença3.
Em populações americanas4, doentes com DPOC apresentavam uma pior saúde mental
do que doentes hipertensos, diabéticos, insuficientes cardíacos, doentes
coronários ou com lombalgia crónica. Após agudização de DPOC, os doentes
apresentavam limitação funcional, social e pior saúde mental do que doentes com
neoplasia pulmonar irressecável de tipo não pequenas células5.
Numerosos trabalhos têm vindo a identificar vários factores preditivos de
readmissão hospitalar em doentes com DPOC, como idade, história anterior de
internamento por agudização da doença, valores baixos de VEMS, hipercapnia,
hipertensão pulmonar, oxigenioterapia de longa duração (OLD) e o uso de
ventilação não invasiva (VNI) domiciliária6.
Mais recentemente, tem crescido a evidência do impacto da ansiedade, depressão
e qualidade de vida no risco de agudização e internamento por DPOC
agudizada2,3,6-10.
O objectivo do presente trabalho é analisar o risco de utilização de recursos
de saúde não programados (serviço de urgência e internamento) após alta
hospitalar por agudização de DPOC, com especial ênfase nos factores
modificáveis relacionados com os cuidados médicos, estilo de vida, aspectos
sociodemográficos e clínicos, como a QV e a depressão.
Metodologia
Critérios de inclusão no estudo
Foram admitidos ao estudo 45 doentes internados no Serviço de Medicina Interna
do Hospital de Santo António, Centro Hospitalar do Porto, por DPOC agudizada
durante o período de 66 semanas (15 de Setembro de 2006 a 31 de Janeiro de
2008). Define-se agudização de DPOC como a alteração aguda do estado de base do
doente, segundo os critérios de Anthoniessen et al.11. Foi utilizada a
definição de DPOC constante nas directrizes do Global Initiative for Chronic
Obstructive Lung Disease(GOLD)11. Excluíram-se doentes cuja agudização
estivesse na dependência de outro processo, como: insuficiência cardíaca,
pneumonia, ou de outra doença infecciosa ou inflamatória pulmonar, bem como a
presença de bronquiectasias ou tromboembolismo pulmonar.
Caracterização da amostra
Os doentes elegíveis responderam de forma autónoma a um questionário escrito
multidimensional. Doentes analfabetos ou com limitações visuais foram
assistidos com leitura dos enunciados. Alguns dados foram retirados do processo
clínico. A base de dados foi construída com base em:
a) Questionário geral que visava a caracterização demográfica da presença de
factores de risco para DPOC (tabagismo e carga tabágica, asma, exposição
laboral e história familiar de doença pulmonar não maligna) e de co-
morbilidades, cujas definições estão listadas no Quadro I;
Quadro I ' Definição de co morbilidades27,28.
b) Caracterização clinicofuncional da DPOC: tempo de diagnóstico; dados
espirométricos mais recentes (VEMS e capacidade de difusão, DLCO);
classificação da severidade da doença de acordo com os critérios do GOLD;
presença de hipercapnia à data da alta; avaliação nutricional através do valor
do índice de massa corporal (IMC) mais próximo da data de entrada a
internamento e doseamento da albumina plasmática;
c) Avaliação da qualidade de vida: foi utilizada, com autorização do autor, o
Saint George Respiratory Questionnaire (SGRQ)12, escala validada em português,
para avaliação da QV em doentes com asma, fibrose cística e DPOC. Esta escala
permite calcular um scoretotal e três subscores: um que reflecte a
interferência dos sintomas respiratórios na prática diária, outro que avalia a
limitação que a doença impõe na actividade quotidiana e um terceiro que permite
perceber a disfunção socioemocional ligada à doença. O questionário é traduzido
numa escala de zero a 100 valores, sendo que valores mais elevados implicam
pior qualidade de vida. Os doentes responderam simultaneamente a uma questão
generalista que solicitava a avaliação da sua qualidade de vida nas últimas
quatro semanas. A taxa de resposta rondou os 55%;
d) Avaliação da presença e severidade de depressão: foi utilizada uma versão
traduzida livremente para português do Beck Depression Inventory ' Short
Form13. Valores mais elevados desta escala indicam maior gravidade de
depressão. A taxa de resposta rondou os 55%;
e) Caracterização social: através da escala de Graffar14 categorizaram-se os
doentes em cinco estratos sociais; quanto mais elevada a classe de Graffar pior
é a situação social;
f ) Caracterização do tratamento da DPOC prévio ao internamento e proposto à
data da alta: broncodilatadores; OLD; VNI; estado vacinal anti-influenza e
antipneumocócica; e nível de gestão dos cuidados (consulta externa hospitalar
ou cuidados de saúde primários).
Período de seguimento dos doentes
Foram monitorizados durante 66 semanas por via dos sistemas informáticos
hospitalares as vindas ao serviço de urgência (SU) e os internamentos não
programados, por todos os motivos e por DPOC agudizada. As datas e motivos de
morte foram obtidas por este método e por consulta de processo hospitalar.
Quando nenhum registo era encontrado, o doente e/ou sua família era contactado
para avaliar a presença dos end-pointsacima referidos. Foram perdidos dois
doentes durante o período de seguimento.
Metodologia estatística
Foi construída uma base de dados no programa informático SPSS 12.0 (SPSS para
Windows, versão 12.0, SPSS Inc., Chicago, Estados Unidos da América) e tratada
para estatística descritiva e inferencial. Para comparação de médias
utilizaram-se os testes t-student(t' teste paramétrico) e o teste de Mann-
Whitney (U ' teste não paramétrico). Médias de dois ou mais grupos foram
realizadas com o teste de Kruskal Wallis (kw 'teste não paramétrico) e o modo
ANOVA (F; teste paramétrico). A correlação entre variáveis foi explorada pelos
testes de correlação de Pearson (r 'teste paramétrico) e Spearman (R 'teste não
paramétrico). Assumiu-se como nível de significância, para os testes
estatísticos efectuados o valor de 0,05.
Resultados
Caracterização demográfica e funcional
Foram incluídos 45 doentes hospitalizados por DPOC agudizada no período em
estudo.
As suas características demográficas e sociais estão representadas no Quadro
II. Oitenta por cento eram, ou tinham sido, fumadores. Outros factores de risco
para DPOC foram identificados: (1) exposição profissional (28,9%), história
pessoal de asma (22,2%) e história familiar de doença pulmonar não neoplásica
(28,9%). Três quartos da população apresentava comorbilidades, principalmente
insuficiência cardíaca, diabetes mellituse alcoolismo. A maioria dos doentes
apresentava DPOC no estádio GOLD III e IV. Os valores médios de albuminemia e
índice de massa corporal estavam dentro do normal. Mais de metade apresentava
actualizado o estado vacinal antigripal (55,8%) e antipneumocócico (51,2%). À
data da alta, verificou-se um aumento da prescrição de broncodilatadores de
longa acção β2-agonistas e anticolinérgicos (Quadro II). 46,5% cumpriam OLD e
11,9% estavam sob VNI domiciliária. Verificou-se uma importante ligação ao
hospital, avaliada pelo frequente seguimento em consulta externa (56,8%
previamente ao episódio índice)
Quadro II ' Caracterização da coorte
Depressão e QV
De acordo com a escala utilizada, 56% dos doentes apresentava um estado
depressivo ligeiro (25%) ou moderado (31%). Valores mais elevados do SGRQ (isto
é, indicativos de pior QV) relacionaram-se com a presença de depressão
(R=0,69;p=0,02). Os valores de VEMS relacionaram-se de forma inversa com a
pontuação total da escala de depressão, ou seja, foi encontrada uma tendência
para a depressão em doentes com pior função pulmonar (r=-0,48; p=0,054).
O valor mediano da pontuação total do SGRQ foi de 50,6 pontos (Fig. 1). Quanto
menor a idade do doente, maior foi o impacto negativo dos sintomas
respiratórios sobre a QV (r=-0,43; p=0,04). Baixos valores de VEMS também se
relacionaram com pior QV (r=-0,54; p=0,036).
Fig. 1 ' Qualidade de vida de doentes com DPOC (SGRQ)
O sexo, o estrato social de Graffar, o tabagismo activo, a presença de cor
pulmonale, a hipercapnia crónica, o índice de massa corporal e a albuminemia
não se relacionaram com a saúde mental ou com a QV.
Quase metade dos inquiridos tinha uma percepção de que a QV sentida nas últimas
quatro semanas era muito má ou má. Esta sensação subjectiva do estado geral
de saúde relacionou-se apenas com a vertente psicossocial do SGRQ (R=-0,49;
p=0,02).
Doentes medicados com broncodilatadores inalatórios anticolinérgicos de longa
acção previamente ao internamento apresentavam valores médios da pontuação
total do SGRQ mais baixos, indicativos de melhor QV (t= -2,66; p=0,02). O mesmo
resultado foi encontrado em doentes a quem estavam prescritos corticóides
inalatórios (t= -2,25; p=0,04).
Quadro III ' Resultados estatísticos mais relevantes
Período de seguimento
Durante o período de seguimento de 66 semanas, 84% dos doentes utilizaram o SU,
com uma média (±desvio-padrão) de 5,4±4,3 episódios por doente. Vinte e nove
por cento das vindas foram motivadas por agudização da DPOC (Fig.2).
Fig. 2 ' Tempo até readmissão ao serviço de urgência (todos os motivos)
A taxa de reinternamento, por todos os motivos, no período de seguimento foi de
64,4%, com um consumo médio de 17,9 dias internados. Cerca de 33% dos doentes
foram readmitidos por DPOC agudizada, implicando um dispêndio médio de 10,3
dias de internamento (Fig.3).
Fig. 3 ' Tempo até reinternamento (todos os motivos e por DPOC agudizada)
O número de reinternamentos por todos os motivos correlacionou-se com a idade
(R=0,48; p=0,003), cor pulmonale(R=-0,46; p=0,03) e inversamente com a
qualidade de vida (R=0,67; p=0,004). A média do número de dias internados por
todas as causas foi maior nos doentes com valores de DLCO mais baixos (R=-
0,447; p=0,04) e com hipercapnia crónica (R=0,443; p=0,01).
Doentes deprimidos (R=0,51;p=0,04), com baixo valor do VEMS em relação ao
teórico (R=-0,413; p=0,04) e com cor pulmonale(R=-0,46; p=0,005) consumiram
mais dias de internamento por agudização da DPOC.
O sexo, o estrato social de Graffar, o índice de massa corporal, a albuminemia,
o tabagismo activo, o número de agudizações no ano anterior à inclusão ao
estudo, o tipo de terapêutica broncodilatadora e a oxigenioterapia de longa
duração não se relacionaram com o risco de reinternamento.
A taxa de mortalidade geral rondou os 15,5% (n=7). Dois doentes faleceram no
internamento inicial (4,4%). Em dois doentes, a agudização da DPOC foi causa
directa da morte; outro morreu por neoplasia do pulmão, dois por insuficiência
cardíaca e os restantes por causas não respiratórias ou cardiovasculares. O
número reduzido de óbitos não permitiu realizar inferências estatísticas.
Discussão
Identificamos uma população com DPOC agudizada internada idosa, com doença
pulmonar avançada, de baixo estrato socioeconómico e com elevado número de
comorbilidades. Este perfil demográfico, embora extraído de uma pequena
amostra, aproxima-se do apresentado noutras coortes6,7,15,16. Apesar disso,
verifica-se uma boa cobertura de vacinas que mostraram reduzir o risco de
hospitalização e de morte por causas respiratórias17,18 e encontramos um bom
estado nutricional. A frequência da consulta externa hospitalar e a utilização
dos internamentos como oportunidades para optimizar a estratégia farmacológica
e não farmacológica terá contribuído para estes resultados.
As taxas de mortalidade intra-hospitalar e no seguimento, bem como as taxas de
reinternamento são semelhantes às descritas noutros trabalhos6,10,15,19,20. O
declive das curvas de Kaplan-Meier para o tempo até à readmissão ao SU ou ao
reinternamento são mais acentuadas nas primeiras 12 semanas após alta,
mostrando que estes reencontros com a instituição são precoces. Este aspecto
salienta a importância e oportunidade de melhoria dos modelos de gestão de alta
hospitalar, desde a elaboração do plano de seguimento até à comunicação das
vias de acesso aos cuidados médicos, passando pelo treino e readaptação às
exigências funcionais do ambiente domiciliário, privilegiando a comunicação
eficaz com os cuidados de saúde primários. Contudo, embora este modelo seja
preconizado na gestão de doenças crónicas, o seu impacto em termos de redução
de custos, na poupança de internamentos ou mesmo na mortalidade, carece ainda
de evidência científica21.
Este trabalho mostra a importância e o impacto da QV e depressão na DPOC.
Verificou-se uma elevada prevalência de depressão e uma QV deteriorada, sendo
que a perturbação induzida pelos sintomas respiratórios não controlados foram
dominantes, principalmente em doentes mais jovens. Estimativas de prevalência
de depressão na DPOC variam amplamente, desde os 10-42% em doentes com DPOC em
fase estável, até 19,4-50% em doentes em recuperação de agudização22. Uma
revisão sistemática mostrou uma prevalência de depressão em doentes com DPOC de
37% a 74%, igual ou superior a outras doenças crónicas avançadas, como a
síndroma de imunodeficiência humana adquirida, o cancro ou doenças cardíacas23.
Van Manen mostrou que doentes com DOPC moderada a grave, em fase estável, têm
um risco relativo de depressão 2,5 vezes superior à população geral24.
Alguns factores têm vindo a demonstrar relacionar-se com a depressão em doentes
com DPOC agudizada, como intensidade da dispneia, sexo feminino, viver só,
baixo estrato social, a presença de comorbilidades, para além dos valores
baixos do indicie de massa corporal e do VEMS22.
O presente estudo prospectivo sugere relação entre a depressão e valores
elevados do scoretotal do SGRQ, indicativos de má qualidade vida, aspectos em
concordância com a literatura6,8,22. A qualidade de vida, por seu turno, foi
influenciada pelo estado funcional dos doentes. A escolha de terapêutica tem
como objectivo incrementar a função pulmonar, sendo que o uso de
anticolinérgicos de longa acção e de corticóides inalatórios mostraram
beneficiar a qualidade de vida, em acordo com evidência prévia10,25.
Um dos resultados mais relevantes aqui apresentados é a tendência encontrada
para a relação entre QV e depressão com o número de reinternamentos por todos
os motivos e com o consumo de dias internados por DPOC, respectivamente. Estes
parâmetros foram mais importantes a predizer a readmissão, que a classe social,
o estado nutricional e o tipo de terapêutica efectuada.
Apesar da diferença de metodologia encontrada na literatura na caracterização
da QV e da depressão, um corpo consistente e crescente de dados aponta para a
relação entre a má qualidade de vida e a presença de depressão e os elevados
custos com cuidados médicos relacionados com episódios de urgência e com
readmissões e o prolongamento dos tempos de internamento3,7,8,22. A depressão
mostrou predizer o risco de morte após hospitalização por DPOC agudizada26. A
versão mais recente das orientações diagnósticas e terapêuticas do GOLD
recomendam que doentes com DPOC sejam avaliados quanto à presença de
depressão11. A reduzida dimensão da amostra deste trabalho não permite retirar
conclusões definitivas, mas aponta para possíveis associações entre as
variáveis estudadas.
Em conclusão, a qualidade de vida e a depressão são variáveis que devem ser
consideradas na avaliação de doentes com DPOC e na escolha da terapêutica
apropriada. Estas estão a par de um conjunto de variáveis clínicas, analíticas
e funcionais que ajudam a predizer o risco de reinternamento após alta por DPOC
agudizada, constituindo, no seu todo, oportunidade de intervenção para reduzir
os contactos não programados com o sistema de saúde.