Enfisema lobar congénito com apresentação neonatal: Revisão de quatro casos
clínicos
Introdução
O enfisema lobar congénito (ELC) não é um enfisema propriamente dito, isto é,
não apresenta destruição das paredes alveolares que confluem para lesões
císticas1. Trata-se de uma anomalia no desenvolvimento da parede da árvore
pulmonar que origina hiperinsuflação de um ou mais lobos pulmonares
anatomicamente normais, com consequente compressão das estruturas vizinhas1,2.
As crianças afectadas não apresentam, geralmente, sintomas ao nascimento. Na
adaptação à vida extrauterina, com o início da respiração espontânea, surge a
retenção de ar alveolar (air trapping) com distensão gradual2. Habitualmente, a
progressão clínica é lenta e algumas crianças permanecem assintomáticas por
período variável de horas a meses. Cerca de 50% das crianças afectadas
desenvolve sintomas no primeiro mês de vida. Os sintomas iniciais são a
taquipneia e a dispneia, seguidos de cianose quando há agravamento da
insuficiência respiratória. Alguns casos, 10% a 15%, apresentam evolução rápida
para insuficiência respiratória e requerem toracotomia de emergência2.
Os autores procederam à revisão dos casos clínicos de ELC com apresentação
neonatal, após pesquisa na base informática do serviço, nos últimos 10 anos, e
apresentam quatro casos com boa evolução após tratamento cirúrgico.
Casos clínicos
Entre 2007 e 2009 foram admitidos na unidade de cuidados intensivos neonatais
quatro recém-nascidos de termo, nos quais foi confirmado o diagnóstico de ELC.
Três recém-nascidos vinham transferidos de outros hospitais já com a suspeita
diagnóstica de ELC e um recorreu ao serviço de urgência do nosso hospital.
Estes quatro casos, embora tenham sido admitidos nos últimos três anos, foram
os únicos admitidos no serviço nos últimos 10 anos, isto é, em cerca de 4000
admissões. As características demográficas, a apresentação e evolução clínicas
encontram-se representadas no Quadro I. Todos eles apresentavam dificuldade
respiratória moderada. Em todos, a leitura retrospectiva das radiografias de
tórax, efectuadas no primeiro dia de vida, permitia já suspeitar deste
diagnóstico, dado mostrar área de hiperinsuflação pulmonar localizada. O estudo
efectuado, o tratamento e o seguimento encontram-se descritos no Quadro II. O
estudo anatomopatológico das peças operatórias confirmou o diagnóstico nos
quatro casos, tendo revelado hipoplasia da cartilagem da árvore brônquica em
três casos (casos 2, 3 e 4 descritos nos quadros).
Quadro I – Características demográficas e apresentação clínica
Quadro II – Estudo, tratamento e evolução
Fig. 1 – (Caso 1) Imagem radiológica de enfisema no lobo superior direito
Fig. 2 – (Caso 2) Hipertransparência no campo pulmonar direito com atelectasia
do lobo superior esquerdo e desvio do mediastino para a esquerda
Fig. 3 – (Caso 3) Hipertransparência do lobo médio
Fig. 4 – (Caso 4) Suspeita de enfisema lobar congénito no lobo superior direito
Fig. 5– (Caso 3) Imagens de enfisema lobar congénito do lobo médio por
tomografia axial computorizada
Discussão
A causa exacta do ELC é difícil de determinar e não é encontrada causa aparente
em 50% dos casos2,3. A causa mais frequentemente identificada é um defeito
congénito da cartilagem de suporte do brônquio do lobo envolvido. O defeito
varia desde hipoplasia a ausência completa de cartilagem, resultando em colapso
do brônquio e obstrução ao fluxo expiratório3. Em três dos casos foi possível a
demonstração anatomopatológica de anomalia do desenvolvimento dos anéis
cartilagíneos brônquicos. Um significativo número de lesões, quer
endobrônquicas e potencialmente reversíveis (rolhões mucosos, tecido de
granulação), quer compressões extrínsecas (massas mediastínicas, vasos
sanguíneos aberrantes ou dilatados, cardiopatias congénitas e outras
malformações mediastínicas) pode estar na origem do ELC2-4. Deste modo, uma
avaliação ecocardiográfica, bem como broncoscópica, têm indicação antes de se
proceder a uma lobectomia2. Com o advento da tomografia axial computorizada de
alta resolução e a possibilidade de reconstrução tridimensional das imagens, a
broncofibroscopia tem sido cada vez menos usada de rotina na avaliação do ELC,
especialmente em doentes com apresentação neonatal clássica e dificuldade
respiratória, dada a possibilidade de agravamento sintomático.
O ELC tem predomínio no sexo masculino (2 a 3:1) e na raça caucasiana2. O
envolvimento unilobar é o mais frequente, com a seguinte ordem de distribuição:
lobo superior esquerdo, 40% a 50%; lobo médio, 30% a 40%; lobo superior
direito, 20%; lobos inferiores, 1%; múltiplos lobos, menos de 1%2,3.
Encontramos em todos os casos presentes envolvimento unilobar.
Embora não seja comum, estão relatados vários casos de diagnóstico pré-natal de
ELC, mas na presente casuística em nenhum houve suspeita diagnóstica durante a
gestação5. No entanto, as imagens pré-natais por ecografia ou ressonância
magnética não permitem diferenciar de outras lesões como a malformação
adenomatóide cística e o sequestro pulmonar. Após o nascimento, o quadro
clínico e a evolução imagiológica definem o diagnóstico6.
O quadro clínico é caracterizado por graus diferentes de dificuldade
respiratória, podendo incluir assimetria torácica, desvio do impulso apical
cardíaco, diminuição do murmúrio vesicular e hipertimpanismo no local
afectado1,2. O diagnóstico é feito, na maioria das vezes, pela radiografia
simples de tórax, que revela hiperinsuflação lobar, desvio do mediastino,
achatamento do hemidiafragma e compressão, ou mesmo atelectasia dos lobos
adjacentes. É necessário que a imagem radiológica seja de boa qualidade técnica
para que possa identificar as finas trabéculas do pulmão enfisematoso na área
de hiperinsuflação e, assim, permitir diferenciar de situações de
pneumotórax1,2. Não é raro algumas crianças serem submetidas a drenagem
torácica, com o diagnóstico erróneo de pneumotórax hipertensivo1,7.
Chamamos a atenção para os aspectos radiológicos típicos de ELC, pelo facto de
a tomografia computorizada não ser facilmente acessível em todos os centros.
Nesta série, apesar de a apresentação clínica e radiológica ser altamente
sugestiva de ELC, houve atraso no diagnóstico, justificável pela raridade desta
patologia, o que dificultou a interpretação das imagens iniciais, de qualidade
técnica sofrível. Este problema é frequentemente relatado na literatura; a
raridade e o carácter evolutivo, na maioria dos casos, leva à realização de
radiografias de tórax seriadas, muitas vezes com erros na sua interpretação e
no diagnóstico diferencial com outras anomalias pulmonares, nomeadamente com a
malformação adenomatóide cística pulmonar congénita. Todos os doentes estudados
efectuaram tomografia axial computorizada, para confirmação do diagnóstico e
definição da extensão da lesão no pré-operatório, dado que esta, tal como a
ressonância magnética, dá excelente informação quando a radiografia é
duvidosa2. O cintilograma de ventilação-perfusão pode ter interesse nos casos
envolvendo múltiplos lobos2,7. Já foi descrito um caso de ELC com retenção de
líquido, em que o estudo imagiológico por ecografia torácica e tomografia axial
computorizada revelou uma lesão sólida8.
A história natural do ELC é geralmente progressiva, levando a insuficiência
respiratória, pelo que o tratamento de eleição é a lobectomia1,2. O ELC
corresponde a cerca de 3,5% das afecções cirúrgicas do tórax na criança9. O
recém-nascido e as crianças pequenas toleram bastante bem o procedimento1,2.
Nos casos de envolvimento multilobar, a ressecção cirúrgica acarreta maiores
riscos e complicações a longo prazo, nomeadamente de escoliose, pelo que a
decisão terapêutica é mais complexa e deve ser tomada em centros com maior
experiência10.
Na última década, alguns grupos têm optado pela videotoracoscopia para
ressecção de malformações pulmonares congénitas, no intuito de minorar o
desconforto do doente e ter melhores resultados estéticos11. No caso concreto
do ELC, a experiência é escassa e a execução técnica mais difícil,
comparativamente a outras malformações pulmonares, pela maior dificuldade em
induzir colapso pulmonar e obter visualização correcta, pelo que alguns autores
abandonaram esta opção cirúrgica12.
Nos casos assintomáticos ou minimamente sintomáticos é possível manter atitude
conservadora, sob vigilância médica adequada13-17. Embora no nosso centro
outros casos tenham sido mantidos apenas sob seguimento regular em consulta,
nesta série de doentes com apresentação neonatal, a gravidade da dificuldade
respiratória não permitiu a opção não interventiva.
Os estudos de seguimento de três a 11 anos de Frenckner e Freyschuss, em
doentes pós-lobectomia neonatal, demonstraram função pulmonar (volume residual,
capacidade vital, capacidade pulmonar total e volume expiratório forçado no
primeiro segundo) na ordem dos 90% dos valores esperados, com ausência de
disfunção a longo prazo18. Adultos que sofreram lobectomia no período neonatal
mostraram crescimento tecidular compensador, conferindo um excelente
prognóstico para estas crianças19.
Em resumo, a presente casuística está de acordo com a literatura em quase todos
os aspectos, nomeadamente no predomínio no sexo masculino, forma de
apresentação, tempo variável do nascimento até ao diagnóstico, envolvimento
unilobar e não identificação de causa evidente num dos casos.
O tratamento cirúrgico foi universal, devido à gravidade dos sintomas, e
decorreu com complicação (neuropraxia do nervo frénico) num dos casos. Embora
não tenhamos seguimento a longo prazo, as crianças encontram-se clinicamente
bem, com bom desenvolvimento estatoponderal e psicomotor.
Fig. 6 – HE 40X – Arquitectura pulmonar preservada com aumento e dilatação dos
alvéolos (caso clínico 1)
Fig. 7 – HE 40X– Morfologia anómala dos anéis cartilagíneos da árvore brônquica
Fig. 8 – HE 40X – Arquitectura pulmonar preservada com aumento e dilatação dos
alvéolos (caso clínico 2)
Fig. 9 – HE 40X – Morfologia anómala dos anéis cartilagíneos da arvore
brônquica (setas) e dilatação dos espaços alveolares (caso clínico 3)
Fig. 10– HE 40X – Morfologia anómala dos anéis cartilagíneos da árvore
brônquica (caso clínico 4)
Fig. 11 – HE 40X – Arquitectura pulmonar preservada com aumento e dilatação dos
alvéolos (caso clínico 4)