O papel dos enfermeiros na equipa multidisciplinar em Cuidados de Saúde
Primários: Revisão sistemática da literatura
Introdução
Nos cuidados de saúde no século XXI surgem como palavras-chave a capacidade de
adaptação, a flexibilidade, a autonomia e a criatividade, interligadas à
complexidade imposta pelas mutações populacionais e padrões de morbilidade. As
novas tecnologias em uso na saúde, a globalização da informação e o incentivo
ao auto cuidado e autorresponsabilidade pela saúde, orientam cada vez mais para
uma ajuda qualificada pelo que as políticas de saúde atuais colocam desafios
para a mudança de paradigma na prestação de cuidados de saúde. Esta é uma
oportunidade que a Enfermagem deve aproveitar, emergindo como grupo
profissional privilegiado para redesenhar cuidados inovadores, capazes de gerir
os problemas de saúde da população de forma mais eficaz e de acordo com a
situação local e os recursos disponíveis (Swiadek, 2009; ICN, 2010).
As tendências internacionais indicam que em muitos países está em curso o
desenvolvimento de equipas multidisciplinares como principal recurso de
prestação de serviços em todas as áreas da saúde, em especial nos Cuidados de
Saúde Primários, que abrangem uma ampla gama de necessidades de saúde e sociais
da população. Portugal segue esta tendência com a reforma dos Cuidados de Saúde
Primários, cuja reorganização estrutural assenta no desenvolvimento de equipas
de saúde multidisciplinares, oriundas das equipas multiprofissionais
existentes, baseadas num modelo de auto-organização contratualizada, expressa
no compromisso assistencial e contextualizado num plano de ação, sendo os
enfermeiros implicados no seu planeamento e implementação.
Neste contexto em que impera a lógica da interdisciplinaridade, com estratégias
de intervenção participativas, que fazem apelo a novos papéis interventivos em
Enfermagem, fez sentido conhecer o papel dos enfermeiros na equipa
multidisciplinar de saúde, no contexto dos Cuidados de Saúde Primários.
Enquadramento
O trabalho multiprofissional em saúde coloca em análise os conceitos centrais
de equipa, de multidisciplinaridade e de papel profissional.
Diversos estudos sobre o processo de trabalho em saúde demonstraram que é
dinâmico e tem uma flexibilidade que pode configurar equipas que expressam o
mero agrupamento de profissionais ou equipas de trabalho integradas. Assim, a
modalidade de trabalho pode ser multiprofissional, referente à recomposição de
diferentes processos de trabalho fundamentada na interdependência técnica do
exercício profissional para a qualidade da intervenção em saúde, ou
interdisciplinar, com integração das várias disciplinas e áreas do conhecimento
profissional na resolução dos problemas de saúde. A multiprofissionalidade diz
respeito à atuação conjunta de várias categorias profissionais, e a
multidisciplinaridade refere-se à conjugação dos vários saberes disciplinares
na compreensão dos problemas de saúde e na parceria nos processos decisórios
(Rocha e Almeida, 2000; Humphris, 2007). As parcerias geralmente começam porque
alguns cuidados não podem ser prestados por um único profissional, disciplina
ou organização. Ao fornecer complementaridade e integração de cuidados, as
parcerias podem melhorar oportunidades, recursos e resultados em saúde. Há uma
crescente necessidade de parcerias a estabelecer entre os profissionais e o
grande desafio é desenvolver a capacidade de trabalhar em equipas eficazes
(Humphris, 2007).
Diferentes autores são concordantes em que uma equipa de saúde é uma realidade
constituída por profissionais individuais com liberdade para agir de modo nem
sempre totalmente previsível e cujas ações se encontram interligadas a tal
ponto que a ação de um profissional modifica o contexto para os outros.
Concluem que a multiprofissionalidade e interdisciplinaridade se baseiam na
possibilidade de comunicação não entre campos profissionais e disciplinares
(entidades abstratas) mas entre os sujeitos que os constroem na prática e que
interagem entre si. A equipa tem de compreender a diversidade dos seus
componentes, as competências e os saberes dos seus profissionais, e tirar
partido disso no benefício de todos. A prática não deverá ser apenas
multiprofissional, em que num mesmo contexto trabalham vários profissionais,
mas multidisciplinar, em que as várias disciplinas aprendem das outras, com as
outras e sobre as outras. O trabalho em equipa multidisciplinar exige não só
colaboração mas sobretudo interação e negociação entre os seus membros, visando
o desenvolvimento de capacidades de entrelaçamento multidisciplinar na
construção de uma interdisciplinaridade pensada e executada na práxis de saúde
e no cuidado ao ser humano. Esta interdisciplinaridade pressupõe um olhar
transversal capaz de revelar aspetos antes inexplorados que se tornam presentes
na interligação entre as disciplinas que compõem o mesmo "todo" de
conhecimentos. É necessário diluir o conhecimento das diferentes disciplinas
num todo de relações que podem contribuir para compreender a complexidade do
ser humano. Só uma equipa multidisciplinar permite uma prática potenciadora e
promotora de desenvolvimento pessoal, profissional e organizacional, conducente
à resolução de problemas em rede, tirando o máximo de proveito dos saberes e
competências de cada profissão e de cada profissional num caminho para a
transdisciplinaridade, isto é, a capacidade de produzir e usar de forma
adequada e efetiva o conhecimento, num projeto de construção participada dos
cuidados (Rocha e Almeida, 2000; Humphris, 2007; Nunes et al., 2010).
Os enfermeiros são o grupo profissional mais amplamente distribuído ao nível
dos Cuidados de Saúde Primários em todo o mundo, assumindo os mais diversos
papéis, funções e responsabilidades (ICN, 2010). O papel profissional diz
respeito a um conjunto de conceitos que predizem como os enfermeiros exercem a
sua função e a uma variedade de comportamentos que podem ser esperados em
certas circunstâncias (Brookes et al., 2007). Nesta delimitação conceptual, o
papel profissional é uma construção histórico-social em permanente evolução,
antevendo uma diversidade de construções que são formuladas em função dos
atributos da prática do enfermeiro que são socialmente aceites e esperados,
quer pelos seus pares, outros profissionais de saúde e da comunidade em que o
papel está incorporado. Tendencialmente, a essência da prática da enfermagem
surge associada ao cuidado, com exacerbação da face formal do seu conhecimento
(instrumentalidade técnica),mas a advocacia, a promoção de um ambiente seguro,
a participação na definição de políticas de saúde e na gestão dos doentes e
sistemas de saúde, são também papéis fundamentais da enfermagem (Pires, 2007;
ICN, 2010). Diversos estudos da Organização Mundial de Saúde (cit. ICN, 2010)
demonstram que a natureza e a prática da enfermagem são influenciadas pela
realidade que compreende a política, a economia e a cultura, diferindo essa
realidade de país para país, e de região para região. A prática do enfermeiro é
socialmente complexa e contraditória, permeada por mitos históricos que compõem
o universo de símbolos e o imaginário que se tem da profissão (Pires, 2007),
mas é possível distinguir o saber como' e o saber que': o primeiro reflete o
domínio de uma habilidade, expressando o saber fazer; o segundo é um saber
teórico, articulado através da linguagem (Benner, 2001). A explicitação e
utilização destas diferentes formas de saber, perante utentes e situações
concretas e inseridas em determinados contextos, poderão contribuir para
representações diversas do papel profissional do enfermeiro, que tende a ser
analisado à luz de determinantes culturais que moldam as experiências das
pessoas. Uma revisão da literatura realizada por McFarland e Eipperle (2008)
indicia que a competência para contextualizar culturalmente os cuidados de
enfermagem e a abordagem dos cuidados de saúde, contribui para uma modelagem do
papel profissional dos enfermeiros em Cuidados de Saúde Primários. O
conhecimento excessivamente técnico, sendo poder, conquista espaços e garante
certa autonomia, embora restrita e submetida a macroestruturas conjunturais. O
reconhecimento do papel do enfermeiro no contributo para o estabelecimento de
relações sociais na produção de serviços em saúde, enquanto capacidade de
intervenção humana, inscreve-se no plano subjetivo das relações sociais,
reconstruindo-se no quotidiano através da produção de ideias compartilhadas
pelos diversos atores profissionais e sociais (Rocha e Almeida, 2000; Pires,
2007). O estudo desenvolvido por Swiadek (2009) concluiu que quanto mais
conscientes estiverem os enfermeiros do papel profissional que se pode
conquistar, mais próximos ficam dos poderes institucionais para cuidar
(enquanto profissional de saúde) e de quem é cuidado (utente, família e
comunidade) conduzindo ao redimensionar das relações de trabalho e de
autoridade partilhada, necessária aos processos participativos numa efetiva
equipa multidisciplinar.
Metodologia
A estratégia metodológica foi guiada pela pergunta ' Como é percebido o papel
do enfermeiro na equipa multidisciplinar dos Cuidados de Saúde Primários?
Desenhou-se um protocolo de pesquisa sistemática de estudos a partir da
enunciação da questão de investigação: Como é percebido pelos diversos
profissionais e pelos utentes o papel profissional do enfermeiro na equipa
multidisciplinar dos Cuidados de Saúde Primários?
Refletindo a questão de investigação, para a seleção de estudos definiram-se
como critérios de inclusão apenas artigos de estudos com paradigma qualitativo
não só porque se consideram metodologicamente mais adequados para fornecer as
melhores evidências, uma vez que os dados primários potenciam a identificação
de atributos ou domínios significativos do papel do enfermeiro, mas também
porque não se pretende identificar toda a literatura sobre o assunto mas os
estudos mais relevantes para o fenómeno. Procuraram-se estudos publicados no
horizonte temporal de 2000-2010, disponíveis em texto integral e nos idiomas
português, inglês, francês ou espanhol. Como critérios de exclusão estipulou-se
que os estudos que tivessem como participantes apenas estudantes (de enfermagem
ou outras áreas da saúde) ou fossem referentes ao papel do enfermeiro
exclusivamente em equipas comunitárias de saúde mental ou geriátrica seriam
excluídos pela possibilidade de as suas vivências, os seus papéis e
competências específicas poderem contaminar os achados dos estudos.
Considerando a viabilidade de acesso iniciou-se uma pesquisa prévia pela
literatura cinzenta, recorrendo exclusivamente aos repositórios de informação
nacionais LIZETE - Catálogo de literatura cinzenta técnica e científica na
Biblioteca Nacional de Portugal e repositório científico de acesso aberto de
Portugal, com os termos papel do enfermeiro', equipas de saúde', centro de
saúde' e cuidados de saúde primários'. Posteriormente pesquisou-se nas
plataformas SciELO - Scientific Electronic Library Online,SciELO Portugal, ISI
Web of Knowledge, Biblioteca do Conhecimento Online (b-on) e EBSCOhost,
explorando a literatura e procurando identificar os descritores mais adequados,
nos quatro idiomas definidos. Apenas com descritores em inglês emergiram
estudos relevantes à pesquisa. Elegeu-se a plataforma EBSCOhost e selecionaram-
se as bases bibliográficas electrónicas CINAHL with full text, MEDLINE with
full text, Nursing & Allied Health Collection: Comprehensive, British
Nursing Index, Academic Search Complete. Utilizaram-se como descritores de
pesquisa nurse's role', professional issues', primary care teams' community
health nursing' e healthcare team'. Como estratégia de pesquisa procuraram-se
e cruzaram-se os termos no título (TI), no resumo (AB) e texto integral (TX),
replicando-se e refinando-se as pesquisas.
A identificação, triagem e avaliação da qualidade metodológica dos estudos
relevantes cumpriram o proposto por Sandelowski e Barroso (2007). Do total de
472 artigos que emergiram apuraram-se 42 através do título, e após leitura do
resumo eliminaram-se os que não cumpriam os critérios de inclusão pré-
estabelecidos (inclusive duas revisões sistemáticas da literatura, uma por
incluir estudos relativos ao papel do enfermeiro comunitário de saúde mental e
outra alusiva apenas ao papel do enfermeiro no suporte comunitário em
residências geriátricas), selecionando-se 25. A partir desta etapa, para
aumentar a confiabilidade e transparência do processo de pesquisa, é
recomendada a avaliação por pares pelo que se integrou no processo um
pesquisador independente: submeteram-se os resumos à sua apreciação para
validar e refinar a seleção inicial de artigos a analisar na íntegra, em
conformidade com o teste de relevância preliminar; validada a seleção,
prosseguiu-se com a leitura do texto integral dos 25 artigos e realizou-se um
teste de relevância final tendo como critérios de avaliação da qualidade: a
congruência metodológica do estudo, o nível de profundidade da análise e
compreensão das evidências, a credibilidade e confiabilidade dos resultados
(Sandelowski e Barroso, 2007). Após a avaliação crítica da qualidade dos
estudos a decisão quanto à inclusão na amostra foi concordante e restringiu-se
a 10 artigos que respeitam os critérios: descriminam os objetivos, os
participantes, a metodologia de colheita e análise de dados e permitem a
distinção dos achados, conforme se descreve no quadro 1.
Quadro 1 ' Síntese dos estudos da amostra
Resultados
O processo de síntese baseou-se na análise temática, de acordo com o percurso
sugerido por Sandelowski e Barroso (2007): leitura exploratória de cada artigo
para desenvolver uma compreensão do conteúdo e contexto das evidências; análise
de conteúdo com identificação dos temas recorrentes ou proeminentes nos
diferentes estudos; análise comparativa dos temas recorrentes com integração
interpretativa dos resultados em novas categorizações temáticas que englobam e
transpõem os significados dos estudos constituintes da amostra.
Os estudos analisaram as equipas de saúde sob perspetivas diferentes, mas com
uma comunhão de problemas e determinantes. Seguiu-se a comparação das
evidências encontradas nos artigos procurando temas comuns, frases e conceitos.
Algumas diferenças foram descobertas durante esse processo. Seis estudos
centram-se no aspeto profissional abrangendo desde as expectativas face ao
papel, às competências e à participação na equipa, enquanto os outros quatro
focalizam aspetos inerentes ao trabalho em equipa, abarcando as características
e fatores inibidores ou propiciadores. Finalizou-se com a transformação das
similaridades em construções sintéticas representativas de todo o corpo de
evidências para produzir uma síntese integrada num quadro teórico compreensível
de todos os estudos. As evidências comuns foram reunidas em dois temas
centrais: o trabalho em equipa nos Cuidados de Saúde Primários; o papel do
enfermeiro na abordagem dos cuidados baseada em equipas.
O trabalho em equipa nos Cuidados de Saúde Primários
O conceito de trabalho em equipa revelou uma diversidade de interpretações e
expectativas. Os achados de Ross, Rink e Furne (2000) revelam que não houve um
sentido comum do que os participantes entendiam por equipas',
independentemente do grupo profissional. A fraca apropriação do conceito parece
estar ligada a informações pouco convincentes ou críticas sobre o trabalho em
equipas interdisciplinares no contexto dos Cuidados de Saúde Primários,
existindo também algumas evidências de que possa estar associada ao
desconhecimento das competências necessárias aos cuidados partilhados e
insegurança quanto às suas implicações para a identidade profissional. No mesmo
estudo, ao particularizarem os achados no grupo dos enfermeiros torna-se
evidente que a falta de um conjunto de valores comuns para trabalhar pode
influenciar a perspetiva sobre a equipa (Furne, Ross e Rink, 2001).
Emerge a noção de que o trabalho em equipa neste contexto de cuidados introduz
não só mudanças no ambiente de trabalho como nos papéis profissionais,
refletindo uma mudança radical na cultura. Muitos dos participantes neste
estudo consideraram ser necessário um suporte organizacional para a mudança,
uma vez que a implementação efetiva de equipas interdisciplinares exige
liderança, comprometimento e participação ampla de toda a organização. Foram
expressas preocupações sobre a maneira como as alterações na equipa e no
trabalho foram introduzidas no seu caso (Inglaterra) apesar da existência de um
plano de execução estruturado e supervisionado por um grupo operacional. O
desenvolvimento de um programa de formação foi identificado como um potencial
facilitador para apoiar o trabalho da equipa e desenvolvimento de papéis (Ross,
Rink e Furne, 2000; Furne, Ross e Rink, 2001). As evidências do estudo de
O'Neill e Cowman (2008) apontam também para a importância atribuída a um líder
de equipa que motive o desempenho coletivo, permitindo simultaneamente
crescimento e desenvolvimento pessoal. Além disso, os líderes foram
reconhecidos como elementos chave para remover obstáculos ao trabalho em equipa
eficaz, para facilitar a comunicação e promover processos decisórios. Em todas
as equipas participantes neste estudo, os enfermeiros identificaram a
necessidade de desenvolver competências de gestão, de assertividade e de
confiança como vitais para trabalhar eficazmente em equipas de cuidados
primários.
Os estudos desenvolvidos por Shaw, Lusignan e Rowlands (2005) Delva, Jamieson e
Lemieux (2008) e Sargeant, Loney e Murphy (2008) debruçaram-se sobre as
perceções e expectativas face ao trabalho em equipa nos Cuidados de Saúde
Primários, e os seus achados reforçam os dos estudos anteriores. A perceção de
que ocorreu uma mudança nos valores culturais e que são necessárias novas
parcerias interprofissionais é transversal. Nos achados de Shaw, Lusignan e
Rowlands (2005) é percetível que práticas hierarquizadas, aliadas a falta de
objetivos comuns e a inabilidade em comunicar têm sido os principais obstáculos
ao desenvolvimento eficaz do trabalho em equipa. Os profissionais da equipa têm
diferentes competências e o funcionamento eficaz depende da compreensão das
respetivas funções e responsabilidades. Apesar de reconhecerem que alguns
papéis dentro da equipa mudaram, o que permitiu aos enfermeiros algumas
práticas inovadoras, na sua maioria é limitado o nível de participação no
planeamento e tomada de decisões dos cuidados de saúde, reduzindo assim o
sentimento de partilha no desenvolvimento futuro da equipa que se pretende
interdisciplinar.
As diferenças de poder na equipa são bem evidenciadas no estudo de Delva,
Jamieson e Lemieux (2008). A diminuição da dominância médica conduziu as
equipas à reação em vez de planearem a mudança, como relataram os enfermeiros
participantes, sendo por eles percebidas como comprometedoras do processo de
trabalho em equipa, induzindo a considerá-lo como a entreajuda entre grupos
profissionais, quando necessário. A distinção entre equipas interprofissionais
e uniprofissionais foi destacada: o bom relacionamento entre os profissionais
da equipa a entreajuda e o objetivo comum de prestar cuidados de saúde
centrados nas necessidades dos utentes não faz necessariamente que seja
considerada uma equipa interdisciplinar se forem mantidas abordagens
operacionais separadas pelas diferentes identidades profissionais.
Os participantes no estudo de Sargeant, Loney e Murphy (2008) corroboram que o
trabalhar ao lado' não implica construir a equipa, e a mudança de estereótipos
exige aprendizagem interprofissional, muitas vezes ocorrendo informalmente por
meio de interações no contexto da prática. Dos achados deste estudo emergem
algumas características de uma efetiva equipa interprofissional de Cuidados de
Saúde Primários, esquematizada na figura 1.
Figura 1 ' Características da equipa eficaz em Cuidados Saúde Primários
Duas capacidades inter-relacionadas emergiram como centrais às equipas
efetivas: a compreensão do papel dos outros, uma capacidade cognitiva e o
respeito pelas suas funções na equipa, uma capacidade atitudinal. O respeito
pelos diferentes papéis e a capacidade de o demonstrar foram considerados
igualmente importantes e essenciais para um trabalho partilhado requerendo, em
primeiro lugar, reflexão sobre o âmbito da própria prática e respetivo papel na
equipa para uma posterior compreensão do papel dos outros. As equipas de
Cuidados de Saúde Primários são dinâmicas e exigem empenho e trabalho para se
desenvolverem e, em seguida, manter. De acordo com as vozes experientes dos
participantes, são o resultado de um esforço ativo e contínuo que requer tempo,
interação e compromisso. A compreensão comum da finalidade, filosofia e
princípios dos Cuidados de Saúde Primários constituem uma base importante para
a construção interprofissional, possibilitando uma clarificação das
responsabilidades, competências e funções a conjugar e complementar nos
diferentes tipos de cuidados. Os problemas de saúde exigem resposta fora do
âmbito de uma única profissão e muitas vezes impõem colaboração intersetorial
com outras organizações, instituições e organismos comunitários, sendo
indispensável partilhar conhecimentos e compartilhar competências. Considerada
como condição sine qua non' é a comunicação que mantém a equipe coesa e
permite o trabalho colaborativo, desde que regular e eficaz, o que exige
acessibilidade a todos os elementos da equipa e capacidade de usar a
comunicação de forma construtiva.
Na perspetiva dos participantes a comunicação é um desafio crucial para equipas
eficazes, sendo transversal a todas as outras características, é entendida como
estímulo para a cooperação e partilha e estruturante da coesão na equipa.
Também no estudo de Ross, Rink e Furne (2000) a comunicação entre os diferentes
profissionais foi compreendida pelos participantes como essencial para
racionalizar abordagens aos cuidados, reduzir a duplicação de esforços e
rentabilizar competências, assumindo relevo como um instrumento para mudar
práticas de trabalho.
O papel do enfermeiro na abordagem dos cuidados baseada em equipas
A procura crescente de cuidados ao nível dos Cuidados de Saúde Primários foi
associada às mudanças demográficas e nas estruturas familiares, o que coloca a
comunidade como um ambiente emergente para prestação de cuidados, justificando
o investimento e desenvolvimento das equipas de cuidados primários para uma
prestação de serviços abrangente e adequada ao perfil da população local. Sem
esta condição as equipas não serão capazes de responder às necessidades das
pessoas e da comunidade, contudo a interdisciplinaridade foi percebida como uma
melhoria nos cuidados de saúde prestados ao utente e à população. O acesso
precoce aos cuidados de saúde foi identificado como essencial para maximizar as
intervenções preventivas e gerir adequadamente as situações de cronicidade,
sendo estes os âmbitos de intervenção em que a Enfermagem deve ser
capitalizada. Apesar dos processos colaborativos serem valorizados na equipa
interdisciplinar e de ser respeitado o contributo de todos os membros da
equipa, o desenvolvimento interdisciplinar deve proporcionar oportunidades para
que o enfermeiro (e outros profissionais) possam maximizar o seu contributo na
equipa, expandindo o seu papel (O'Neill e Cowman, 2008).
No estudo realizado por Perry et al.(2005) o papel do enfermeiro foi percebido
como facilitador no acesso aos cuidados. Entre os achados sobressai a perceção
dos utentes e administrativos, com valorização da disponibilidade demonstrada
pelos enfermeiros, percebida como melhoria no acesso aos cuidados tanto no
aumento de contactos/consultas, disponíveis em diferentes momentos do dia, com
redução do tempo de espera por cuidados de saúde. Para os utentes o papel do
enfermeiro não era claro, mas o seu desempenho superou as expectativas tanto
nas competências técnicas como nas relacionais, comunicacionais e culturais. A
proximidade, a capacidade de escutar, de orientar, de explicar e fornecer
informações mais detalhadas e enquadradas no ambiente social dos utentes, foram
percebidas como intervenções que satisfizeram as suas necessidades de uma forma
mais adequada.
A dúvida sobre o papel do enfermeiro é transversal a vários estudos (Furne,
Ross e Rink, 2001; McKenna e Keeney, 2004; Martin et al., 2005; Perry et
al.,2005) mas começam a emergir algumas expectativas sobre o papel profissional
no seio das equipas em desenvolvimento (Markham e Carney, 2008; O'Neill e
Cowman, 2008).
Os achados indiciam que os outros profissionais na equipa de saúde nem sempre
possuem conhecimento sobre as funções e âmbito dprática dos enfermeiros, ou
esse conhecimento é superficial, o que contribui para uma perceção do seu papel
baseada em estereótipos descontextualizados que influenciam a dinâmica da
equipa. No entanto parece existir consciência de que a compreensão do seu
próprio papel e do dos outros dentro da equipa surge como fundamental para um
processo de cuidados compartilhado.
Como emerge do estudo de Ross, Rink e Furne (2000), trabalhar em equipa multi e
interdisciplinar implica esbater limites e ampliar papéis, o que parece
necessitar de formação conjunta e identificação de facilitadores de apoio e
reforço da equipa para o desenvolvimento de novas formas de trabalho e papéis.
Entre os achados do estudo de Markham e Carney (2008) surge a compreensão de
que o atendimento de qualidade envolve cuidados culturalmente aceitáveis na
comunidade, o que não se coaduna com os papéis tradicionais e uma prática
estagnada', mas antes envolve uma alteração de função relacionada com mudanças
nas necessidades de saúde da comunidade. Os enfermeiros participantes
identificam como fatores facilitadores da qualidade o desenvolvimento de
práticas cada vez mais baseadas na evidência e na padronização, para
uniformizar e dar consistência aos cuidados mas também para avaliar e melhorar
continuamente o serviço, e a participação efetiva na equipa interdisciplinar no
que se refere à coordenação e planificação das respostas às necessidades dos
utentes. Se assim não for, consideram que pode ocorrer fragmentação dos
cuidados que comprometem a filosofia de continuidade da assistência vinculada
ao compromisso que os enfermeiros deverão assumir, o que compromete a
qualidade.
Para os enfermeiros participantes no estudo de O'Neill e Cowman (2008) os
Cuidados de Saúde Primários representam um desafio às competências dos
enfermeiros, para desenvolverem programas integrados e parcerias como recursos
para a saúde, e a equipa interdisciplinar uma oportunidade para reforçar a
contribuição da enfermagem enquanto grupo profissional capaz de influenciar e
adequar cuidados de saúde. O cenário da comunidade é percebido como um
potencial para a intervenção inovadora dos enfermeiros devido à diversidade de
grupos de clientes e necessidades em saúde da população. O ambiente de trabalho
nas equipas de saúde comunitárias é compreendido como menos hierárquico que o
ambiente hospitalar, no qual muitos enfermeiros perceberam ter uma maior
autonomia e oportunidades para utilizar a sua iniciativa no desenvolvimento dos
cuidados. As expectativas relativamente ao seu papel profissional baseiam-se na
perceção de que as respostas dos serviços de saúde estão subdesenvolvidas em
relação à procura e que os enfermeiros se encontram em posição de gerir algumas
das necessidades da comunidade, nomeadamente as relacionadas com as pessoas
idosas e com o apoio para manter em casa as pessoas que necessitam de cuidados
de saúde básicos. Além destas oportunidades ligadas às condições crónicas,
consideram também que podem assumir um papel de liderança nas intervenções
preventivas em saúde. Relativamente às principais competências que mobilizam
nas equipas, os enfermeiros identificam-se como coordenadores do atendimento e
elementos chave na comunicação interdisciplinar pelo seu conhecimento local da
comunidade. Muitos dos participantes sugeriram que o papel da enfermagem
precisa ser redefinido em consonância com a evolução dos Cuidados de Saúde
Primários, identificando a necessidade de desenvolverem a sua própria
identidade na comunidade.
Conclusão
Das evidências dos estudos que constituíram a amostra ressalta que é necessário
trabalhar' para o trabalho em equipa. A abordagem de cuidados baseada em
equipas multidisciplinares exige clareza de objetivos, liderança,
comprometimento e participação ampla de todos os grupos profissionais.
O papel profissional do enfermeiro na equipa multidisciplinar dos Cuidados de
Saúde Primários surge pouco explícito, com tendência a uma perceção
estereotipada pelos outros profissionais, mas começando a emergir algumas
expectativas por parte dos utentes que o percebem como facilitador no acesso
aos cuidados, valorizando as suas competências relacionais e culturais. Os
enfermeiros reconhecem que o seu papel pode expandir-se, nomeadamente na área
preventiva e nos cuidados no contexto domiciliário e aos idosos, considerando
que podem contribuir significativamente para a reorientação e desenvolvimento
de abordagens interdisciplinares nos Cuidados de Saúde Primários, melhorando a
assistência aos indivíduos e satisfazendo a diversidade de necessidades de
saúde da população. Embora identificando que há desafios a superar para uma
participação mais efetiva dos enfermeiros na decisão, planeamento e coordenação
de cuidados, há reconhecimento de que a mudança vai ocorrendo à medida que o
papel do enfermeiro vai sendo melhor compreendido no seio da equipa e entre os
utentes. Surgem como estratégias a seguir as oportunidades formais e informais
de aprendizagem conjunta com os outros profissionais, a investigação e a
prática baseada na evidência, o trabalho em proximidade e em parceria com os
utentes e a comunidade.
Estes resultados colocam em perspetiva o potencial de desenvolvimento do papel
profissional do enfermeiro, emergindo a oportunidade para uma maior
responsabilização dos enfermeiros na liderança e coordenação de cuidados de
proximidade, numa perspetiva de continuidade, integradora e longitudinal.
Assume-se necessária a clarificação do papel profissional junto dos utentes e
de outros parceiros prestadores de cuidados de saúde, aproveitando o facto de
serem próximos do utente e das famílias' no acesso aos cuidados e evidenciando
não só a oferta de cuidados terapêuticos mas também de cuidados de bem-estar,
de aconselhamento e de capacitação para a tomada de decisões e para o
autocuidado, ao longo de todo o ciclo de vida. Perante o exposto evidencia-se
oportuno desenvolver estudos no contexto português, face à recente
reorganização das equipas multidisciplinares no âmbito da reforma dos Cuidados
de Saúde Primários.