Sinais contrários: Da desertificação
Nota editorial
Sinais contrários
Da desertificação
Todos os dias surgem novos dados a confirmar a suspeita e a justificar o
receio. A desertificação está a aumentar em todo o Mundo. Do céu ou não cai
água suficiente ou então ela não é repartida por igual, desobedecendo assim aos
desígnios e à bondade da divina providência. Em consequência diminui, em muitos
pontos do globo, a verdura dos campos, das florestas e dos rios, das
perspectivas e horizontes; e aumenta o deserto das areias, dos terrenos secos e
calcinados. Com isso crescem também a fome e a pobreza, a desolação e o
desencanto, a indiferença e a falta de motivos para sorrir e cantar. Os olhos
desaprendem de ver, o coração de sentir e a razão de inteligir. Enfim, a beleza
e a harmonia cedem o lugar à estética da aridez e fealdade .
A desertificação aumenta gravosamente em muitos outros sectores. Até há não
muito tempo um dos traços marcantes da pessoa era a vergonha na cara. Pois bem,
a vergonha foi igualmente atacada pela moléstia da seca e esta vai alastrando
de forma vertiginosa. Atingiu já a consciência, que por causa disso caiu num
estado de letargia e dormência, do qual não dá mostras de acordar. Não se pode,
pois, esperar dela que distinga com presteza entre a verdade e a mentira, entre
a rectidão e a justiça, entre a correcção e a falsidade, entre a lisura e a
falcatrua, entre a nobreza e a mesquinhez, entre a probidade e a desfaçatez,
entre a honra e a desonra, entre a dignidade e a baixeza, entre o belo e o
horrendo, entre o bem e o mal, entre a humanidade e a animalidade.
De sonhos e ideais fala-se pouco. O silêncio vai-se abatendo sobre eles,
reduzindo o tamanho do homem e da vida. Ademais aquilo que não tem palavras,
aquilo que não se diz e deixa de ser nomeado deixa forçosamente de existir.
De princípios e valores ainda há resquícios e sinais. Sobretudo em livros que
são cada vez menos alvo de compra e leitura. E quem tem memória grata dessas
coisas, se falar abertamente delas, corre o risco de cair no ridículo e ser
objecto de mangação e troça.
Quando alguém se põe a meditar e reflectir em voz alta e, por ingenuidade,
ilusão, boa-fé ou descuido, deixa escapar pela boca fora algo sobre ética e
moral, um coro de gargalhadas pode ressoar ensurdecedor e implacável aos seus
ouvido. A experiência é amarga e diminui a vontade de ser repetida.
Feliz anda o relativismo nas suas sete quintas! Tudo vale e tem o mesmo valor.
Melhor dizendo, vale menos o que provém do mérito comprovado e do trabalho
sério e abnegado, suado e esforçado e vale muito mais o prémio dado pela
esperteza e safadeza, pelo oportunismo e arranjismo, pela indecência e falta de
escrúpulos. Tanto é música tocar em campainhas de portas como interpretar no
piano uma tocata de Beethoven. Tanto vale o gesto aprimorado e cimeiro como o
incipiente e grosseiro. Tanto dá que as crianças tenham o aconchego de pai e
mãe como a tutela de uniões de facto. Tanto dá uma educação pautada por
exigências, obrigações e deveres como a que prescinde de tudo isso. Tanto dá o
alto e elevado como o baixo e rasteiro. É o mesmo tratar o outro como gente ou
como um cão tinhoso e raivoso.
Deserto de significados tradicionais está também a ficar o dicionário. Por
exemplo, inovar' e modernizar' significam agora coisas antes inimagináveis:
eliminar o direito ao trabalho, pôr de joelhos e poder despedir a bel-prazer
quem trabalha, enxamear de desempregados a sociedade, cortar nos vencimentos e
pensões, encerrar serviços públicos, privatizar a saúde, a educação e qualquer
coisa que ainda reste do estado social. E outros mimos inspirados no mesmo
propósito.
Diz-se à boca cheia que a democracia está atacada pela epidemia da obesidade;
as banhas, enxúndias e gorduras à sua volta são tantas e tamanhas que não
permitem mais lobrigar a sua forma genuína e original, mesmo a quem usa lentes
potentes. Não se sabe se ainda está realmente viva ou se sobrevive apenas da
ligação a artifícios. Parece que se travestiu e atingiu uma deformação que não
é fácil de definir com precisão e rigor; mas há quem sustente, com fundamento
nos factos, que ela é mais ou menos um negócio celebrado entre lobies e
corporações, de modo que os políticos são eleitos pelos cidadãos crentes e
exercem o poder em nome dos interesses vigentes. A falta de pudor impõe-lhe a
continuidade do cultivo de rotinas e encenações, para melhor encobrir, iludir e
manipular. É que as aparências são hoje mais importantes do que antes - ou não
vivêssemos na sociedade da imagem e do virtual. Por isso os media estão em
alta; de braço dado com os políticos ' é um namoro pegado! - servem o mesmo amo
e senhor.
Ah, já me esquecia de dizer! Um novo e fulgurante deus reina sobre toda a
terra. A Economia (com letra maiúscula, evidentemente) vive na glória do máximo
esplendor! Os papeis inverteram-se. Tudo lhe presta vassalagem: os direitos
humanos, a educação, a saúde, o desporto, a vida e até o próprio homem. Afinal
é aos pés e a mando dela que o deserto se adensa e alastra. Tudo quanto é
verdadeiramente humano mingua, estiola e desaparece gradualmente do alcance da
nossa vista. Mas não desaparece da nossa imaginação e conta com a nossa
esperança, lucidez e determinação para um dia regressar em força, cantante e
triunfante!
Nova designação
A partir do próximo número, a indicação da propriedade da Revista vai registar
uma alteração significativa. Isto deve-se ao facto de, no dia 6 de Julho, a
Assembleia da Universidade do Porto ter acolhido favoravelmente uma proposta de
modificação da designação desta Faculdade, formulada pelos seus órgãos
dirigentes. Assim a nova designação é a seguinte: Faculdade de Desporto. Uma
designação encurtada pelas razões que, de forma sucinta, em seguida se
apresentam.
Prescindiu-se da palavra Ciências', porquanto ela constituía uma espécie de
pleonasmo, uma redundância escusada. Com efeito uma Faculdade tem como matriz
justificativa o facto de ser uma instituição científica. Por certo dá disto
sobejo testemunho o labor que temos desenvolvido, nomeadamente nesta
publicação.
A renúncia à expressão Educação Física' traduz igualmente uma atitude de
inteira coerência e também de conseguida maturidade. Como se sabe, a Faculdade
sempre afirmou, inclusive nos seus estatutos, como objecto de estudo o
Desporto' enquanto fenómeno polissémico e realidade polimórfica. Para nós o
Desporto alicerça-se num entendimento plural e é o conceito mais representativo
e congregador de dimensões biológicas, físicas, filosóficas, culturais,
psicológicas e afectivas inerentes às práticas de aprendizagem, exercitação,
recriação, reabilitação, treino e competição no âmbito motor. O acto desportivo
encerra tudo isso sem o esgotar. A Educação Física' é tão somente uma parcela
do Desporto: a disciplina escolar que se ocupa de instruir, introduzir e educar
nessa área.
Quando a Faculdade se constituiu optou, conscientemente, por manter na sua
designação a expressão Educação Física'. A decisão filiou-se na preocupação de
não forçar o corte radical com o passado, mas sim de contribuir para uma
evolução natural e de acertar o passo por ela. Hoje o Desporto' encontra-se
publicamente consagrado como o conceito superior e abrangente do domínio sócio-
cultural voltado para as actividades desportivo-lúdico-corporais. É deste modo
que surge plasmado em textos legais como, por exemplo, os da União Europeia e
do Conselho da Europa. Há, portanto, que corresponder às novas circunstâncias.
Nesta conformidade, ao aproximar-se da data de completar trinta anos como
escola universitária, a Faculdade sente-se satisfeita por ter assumido a sua
quota-parte de responsabilidade na tarefa de esclarecer e enaltecer o valor do
Desporto e de lhe conferir um estatuto de maioridade intelectual, cultural e
académica.
Em suma, com a nova designação a Faculdade homenageia o Desporto, homenageia-se
a si própria e renova a sua missão com a convicção de que o passado serviu para
construir o presente e este para edificar o futuro.
Jorge Olímpio Bento
Faculdade de Desporto da Universidade do Porto
Rua Dr. Plácido Costa, 91
4200-450 Porto
Portugal
rpcd@fade.up.pt