Pedagogia da viagem: Arlequim, Mestiço, Híbrido, uma colcha de retalhos
Pedagogia da viagem.
Arlequim, Mestiço, Híbrido, uma colcha de retalhos*
Adroaldo Gaya
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Porto
Alegre, Brasil.
Parte: saí do ventre de tua mãe,
Levante: do berço esplêndido.
Segue o caminho do sol, do mar, da luz e do céu profundo.
Sai da sombra oferecida pela casa paterna
E as paisagens juvenis.
Vai ao vento e à chuva.
Lá fora, faltam todos os abrigos.
As tuas idéias iniciais não repetem senão palavras antigas.
Jovem: velho tagarela.
(Adaptado de Michel Serres)
A viagem dos filhos, eis o sentido pleno da palavra grega Pedagogia. Pedagogia,
a viagem dos filhos, eis do que trato nesta breve intervenção.
O telemóvel soa e vibra sobre minha mesa de trabalho. Ao observar o painel
luminoso, meu corpo se alegra. É de Portugal! É do Porto! Sendo assim, num
lapso de tempo, revejo as probabilidades de quem está a comunicar-se da outra
margem do Atlântico: 40% Jorge Bento, 30% António Marques, 20% minha filha
Anelise, 8% José Oliveira, 2% alguma agradável surpresa.
Atento e na expectativa. Ouço a voz pausada, grave, sonora, quase sacerdotal. É
o navegador dos sete mares. Jorge Bento. Nosso timoneiro. O maestro da sinfonia
lusófona. Sinfonia que exalta em tom maior a solidariedade entre povos de
cultura portuguesa que aprendemos a cantar.
JB me convida para participar deste evento - trinta anos da nossa FCDEF, hoje
Faculdade de Desporto - e sugere (melhor seria, designa) a tarefa: falar sobre
mobilidade estudantil.
Não dou qualquer chance ao superego. As reações fisiológicas do córtex não dão
espaço à intervenção do neo-córtex. Neste momento, sou como um animal em
perigo. Luta ou foge? Sou emoção e sentimento.
Lembro do poeta que canta com incrível lucidez:
Seja feliz enquanto a razão estiver distraída.
(Toquinho)
O convite me faz muito feliz. Não vou fugir. Vou aceitar tamanha
responsabilidade enquanto a razão estiver distraída.
Aceitei o desafio. Aqui estou e creio ser desnecessário expressar tanta honra,
tanto orgulho e a vaidade que faz meu corpo levitar neste momento ímpar. Muito
obrigado pelo convite. Muito obrigado por esta honraria. Desejo muitos anos de
vida e glória para nossa Faculdade de Desporto.
Mas passado o instante da emoção, após aceitar o honroso convite, seguiu a
ansiedade da criação. A razão assume o comando das ações, evidentemente sem
embaçar o brilho das emoções. E fico a imaginar: O que dizer sobre mobilidade
estudantil? Relacionar os estudantes que do Brasil vieram a Portugal e que de
Portugal foram ao Brasil? Ora! Isto os serviços administrativos de nossas
instituições podem fazer com maior competência. Ressaltar aspectos pitorescos
dessas aventuras? Isto exigiria uma etnografia que o tempo não permitiria.
Contar a história sobre a concepção destes projetos? Isto é uma tarefa coletiva
que deve ser realizada entre todos aqueles que, em algum momento, construíram
estes programas.
Mas algo me incomodava. O que seria? Bem! Logo descobri. Era a expressão
mobilidade estudantil. Ela soava em meus ouvidos como uma expressão fria,
burocrática, sem brilho, sem emoção. Expressão muito longe de representar a
“Caixa de Pandora” onde estão guardadas alegrias, tristezas, medos, desafios,
curiosidades, aprendizagens, amizades fraternas, abraços, lágrimas...
Mobilidade estudantil... não! É muito burocrático e sem brilho. Vamos
transformá-la numa pedagogia. Sim, num discurso pedagógico. A pedagogia dos
viajantes? Quem sabe a pedagogia de encontros e despedidas? Ou, citando Rui
Veloso, a pedagogia dos cavaleiros andantes?
Volto à pedagogia no sentido atribuído pelas palavras do cientista, filósofo e
poeta Michel Serres:
Nenhuma aprendizagem evita a viagem. Sob a orientação de um guia, a educação
empurra para o exterior
Volto ao início:
Parte: sai do ventre de tua mãe, do berço, da sombra oferecida pela casa
paterna e as paisagens juvenis. Ao vento e à chuva: lá fora, faltam todos os
abrigos. As tuas idéias iniciais não repetem senão palavras antigas. Jovem
tagarela. A viagem dos filhos eis o sentido despido da palavra grega pedagogia.
(Michel Serres)
Viagem, pedagogia, pedagogia de encontros e despedidas: eis o mais profundo
significado que neste discurso dou a expressão burocrática mobilidade
estudantil.
Pedagogia na poesia de Vitorino:
Perguntei ao vento
Onde foi encontrar
Mago, sopro encanto
Nau da vela em cruz
Foi nas ondas do mar
Do mundo inteiro
Terras da perdição
Terras da perdição. Pedagogia de encontros e despedidas. Jovens que atravessam
oceanos. São gaúchos, brasileiros, gremistas, que cantam e dançam o samba. Hoje
jovens da cultura lusófona. Também, tripeiros, portugueses, portistas e que
cantam o fado.
Tripeiros de Trás-os Montes, das margens do D’Ouro. Portugueses, enfim, que
cantam nas tunas universitárias. Hoje, também, gaúchos, paulistas, manauaras,
nordestinos que dançam forró e cantam pagodes.
São híbridos. São mestiços. Arlequins com seus mantos furta-cores. Meninos e
meninas que atravessam o oceano, se tornam mestiços. Arlequins com retalhos
multicoloridos. Uma colcha de retalhos.
Já falam em português do Brasil com sotaque lusitano. Falam português de
Portugal com gírias e “ss” do Brasil. Colcha de retalhos. Pele tatuada pela
experiência de uma nova cultura.
Não sou mais o mesmo brasileiro que um dia chegou neste país, nesta cidade,
nesta Faculdade. Tampouco minha filha é a mesma brasileira que, em sua
adolescência, estudou em Espinho e, na sua juventude, mudou-se para Portugal
Não somos da mesma forma portugueses. Quem somos, minha filha? Somos mestiços,
brasileiros que fomos tatuados por hábitos e costumes desta terra. Somos
mestiços, arlequins, híbridos. Uma colcha de retalhos. Como alguns dizem por
estas bandas, para o bem ou para o mal, somos “brasucas”.
Mas quem viaja, quem atravessa o oceano, leva consigo suas raízes. Jamais
abandonaremos nossa cultura de origem. Ela está tatuada, indelével em nossa
pele. Somos e sempre seremos brasileiros em Portugal ou portugueses no Brasil.
Mas:
Depois de ter deixado a margem, permanece-se algum tempo muito mais perto de um
do que do outro lado, mesmo de frente, pelo menos o suficiente para que o corpo
se entregue a esse cálculo e diga silenciosamente que pode sempre regressar.
(Michel Serres)
Mas, feita a travessia, nos tornamos estranhos na outra margem. Costumes,
hábitos diversos. Um outro mundo. E então, paulatinamente, se formos
suficientemente inteligentes, aprendemos e apreendemos traços da nova cultura.
Vamos tecendo sobre nossa pele uma nova tatuagem. Vamos nos transformando num
arlequim de roupa multicolorida. Um ser híbrido. Uma colcha de retalhos. Enfim,
um ser culto. Antes neto de uma índia Kaigang com um português, nascido em
Esteio, criado em Porto Alegre, gaúcho, gremista, brasileiro; hoje também
tripeiro, portista, português. Somos duplos? É claro que não somos duplos.
Somos, isso sim, um ser por inteiro, mais humano, mais solidário, mais
comunitário. Sou, sim, um gaúcho mais português, um sujeito mais universal, um
ser mais humano.
Senhores e senhoras: Pedagogia. A viagem dos filhos, legítima aprendizagem.
Partir. Sair. Deixar-se um dia seduzir. Tornar-se em vários, enfrentar o
exterior, bifurcar em qualquer direção. Não existe aprendizagem sem exposição,
muitas vezes perigosa. Não existe aprendizagem sem errância.
(Michel Serres)
Lua, espada nua
Banha no céu imensa e amarela
Tão redonda a lua
Como flutua
Vem navegando o azul do firmamento
E num silêncio lento
Um trovador cheio de estrelas
(Tom Jobim)
Sim, navegando num silêncio lento. Um trovador cheio de estrelas. Um estudante
cheio de sonhos e expectativas. Em sua bagagem muito é o que contar. Seu
conhecimento científico, sua história, sua vida, sua cultura. Mas, no retorno,
sua bagagem é muito mais pesada. Traz consigo suas aprendizagens da nova terra.
Novos conhecimentos científicos, novas histórias, uma vida que, submetida ao
desafio de uma nova cultura, adapta-se. É uma nova vida. Bifurcou. Aquele que
foi não é o mesmo que volta. É um mestiço, arlequim, um híbrido, uma colcha de
retalhos.
Assim como os estudantes portugueses colam em suas capas negras os escudos que
representam locais, instituições ou algo que lhes é significativo, os viajantes
tatuam em sua pele as experiências e histórias vividas nos diversos destinos.
Enfim, somos arlequins, mestiços, híbridos. Viajantes. Uma colcha de retalhos.
Somos, na partida, como cera, madeira, bronze, mármore bruto, onde se moldam as
mais sofisticadas obras de arte. Carregamos, em nosso ser, um infindável
caderno de folhas em branco sempre prontas a receber novos contos, poesias,
histórias reais ou de ficção. Somos uma tela onde pintamos imagens e
recordações. Somos uma pauta onde a canção da existência faz eterno o fado de
nossas vidas
Pedagogia de encontros e despedidas.
Meu caro Jorge Bento
Mobilidade estudantil é uma expressão muito pobre para representar todo o
significado da verdadeira pedagogia que nossas instituições subscrevem neste
legado de amizade, solidariedade, companheirismo. Nesta aprendizagem sobre os
valores culturais mais significativos de nossa existência. Repito. Somos
arlequins, mestiços, híbridos. Uma colcha de retalhos. Pois, em cada regresso
ao Porto cantamos:
Quem vem e atravessa o rio
Junto à Serra do Pilar
Vê um velho casario
Que se estende até ao mar
(Rui Veloso)
E quando retornamos, ainda no avião, ao avistar o Cristo Redentor, cantamos com
Tom Jobim:
Minha alma canta
Vejo o Rio de Janeiro
Estou morrendo de saudades.
Mobilidade estudantil uma verdadeira pedagogia.
Uma pedagogia de encontros e despedidas.
Meu caro Jorge Bento
Peço-lhe desculpas se minha fala, de algum modo, frustrou suas expectativas. E,
enfim, aos estudantes que já foram e voltaram, aos que ainda irão e aqui
chegarão, dedico os versos de Milton Nascimento:
Tem gente que chega pra ficar
Tem gente que vai pra nunca mais
Tem gente que vem e quer voltar
Tem gente que vai e quer ficar
Tem gente que veio só olhar
Tem gente a sorrir e a chorar
E assim chegar e partir.
Mobilidade estudantil. A pedagogia dos encontros e despedidas.
Enfim, com versos de Pessoa e na música de Caetano Veloso, cantemos nossa
pedagogia.
Navegar é preciso
Viver não é preciso
Navegar é preciso
Viver não preciso.
* Intervenção nas cerimónias comemorativas dos 30 anos da Faculdade de Desporto
da Universidade do Porto, 6 e 7 de Março de 2006.
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