Do corpo e do activismo na conjuntura de mercado e consumo
O que fazer com este corpo? Onde deve ser enterrado? Ou deverá ser cremado? Que
signo lembrará a sua morte? Quem conhece este corpo? Que nome tinha, como era o
rosto, quais cicatrizes, como sua voz? De onde vem este corpo? Onde morava, com
quem vivia, teria filhos, quem são seus pais? O que fazia este corpo? Com que
lutava, o que comia, a quem amava, com quem dormia? De quem é este corpo? De
algum vizinho, de algum parente, de alguém distante, talvez o meu?
Ronaldo Monte [1]
OBJECTOS DE CONSUMO - REFÉNS DO MEDO
Como se sabe, a sociedade actual tem a marca do consumo incentivado e
generalizado. [2] Todos os seus elementos, animados ou inanimados, são objectos
de consumo. Logo os seres humanos também o são; só têm valor e utilidade
enquanto conservarem a imagem e forma, as bitolas e performances adequadas e
devidamente cotadas, enquanto despertarem atracção e sedução e passarem nas
avaliações e comprovações vigentes. Tornam-se totalmente dispensáveis, gastos,
desqualificados, acabados e ultrapassados e são carimbados de inadaptados, sem
préstimo algum, inúteis, impróprios e mesmo nocivos, à medida que vão perdendo
capacidade para se encaixarem no quadro das exigências, bitolas e
especificidades fixadas e valoradas pelo mercado.
Não se livram desta punição, se deixarem de ser jovens vitalícios, se não
lograrem contrariar e atrasar a obsolescência, esconder os traços, sinais e
rugas do uso e tempo, renegar a idade e a maturidade a ela inerente, conservar
o corpo fiável, apresentar a aparência como essência e ter sucesso no confronto
com o vasto e constantemente alterado leque de critérios de validade
estabelecidos no fluido código do consumo.
Sendo o envelhecimento, com todas as suas sequelas, uma constante e
inevitabilidade da vida humana, na nossa sociedade assiste-se a um fenómeno que
Luc Ferry retrata de forma fidedigna com a lente filosófica: Às vezes tenho a
impressão de só cruzar com indivíduos cuja primeira preocupação, tanto do ponto
de vista físico como moral, é não envelhecer. Para eles ( ) viver bem é
permanecer jovens'. Isso se torna quase um fim em si mesmo. [3]
É para tentar realizar esse sonho de concretização impossível que muita gente
gasta tempo e esforços consideráveis com a elaboração teimosa de um senso
estético flexível, susceptível de acompanhar a evolução dos usos e anelos. Como
que a dar razão à afirmação de Michel Foucault (1926-1984): O homem moderno é
o homem que tenta constantemente inventar-se a si próprio. [4] E concordando
plenamente com Carlos Drummond de Andrade (1902-1987): O problema não é
inventar; é ser inventado hora após hora e nunca ficar pronta nossa convincente
edição.
Portanto é deveras angustiante e tirânica a obsessão de tentar escapar ao
contentor do lixo. Para a acalmar as pessoas submetem-se a cursos, cursinhos e
acções de formação de tudo e nada, assim como a cirurgias estéticas e às mais
diversas operações de cosmética e reciclagem tanto no plano físico e biológico
como no sentimental, comportamental, espiritual e moral. Coleccionam diplomas
por grosso e atacado, para somar ambições, pontos e ilusões no sistema de
avaliação e progressão na carreira e na vida. Sabem que, no dia em que forem
reprovados no exame do consumo, ficarão sem a carta de entrada e circulação na
via existencial; serão, sem dó nem piedade, abatidos no inventário dos activos
válidos, irremediavelmente removidos da esfera profissional e social, atirados
para a lixeira da inaptidão e desqualificação, da desconsideração e rejeição.
Sofrem assim uma tortura horrível; embora vivos fisicamente, morrem aos poucos
e antecipadamente no conceito e apreço de quem os rodeia. [5]
Esta ameaça é terrível e não há maneira de se subtrair a ela, porque na
sociedade de consumidores ninguém fica de fora do catálogo de objectos de
consumo. Toda a gente se move diária e continuamente entre os dois pólos e
papéis: ser, em simultâneo, consumidor e objecto de consumo. A distinção entre
ambos é à condição temporária (obviamente mais para alguns, não atingindo todos
de igual modo!) e a reversão é uma certeza; nenhum é mais poderoso do que o
outro.
Por isso mesmo a mais cruel e inumana consequência da sociedade de consumo, com
as suas regras, prescrições, imposições e tentáculos vigentes em todos os
sectores, é a perspectiva de viver para acabar no caixote do lixo. É este
desígnio fatalista que acarreta a preocupação mais opressora, requer e consome
o maior dispêndio de atenção, energia e trabalho. A vida gasta-se oscilando
entre o prazer do consumo e o prenúncio do horror de ser consumido. As posições
não são fixas ou adquiridas para sempre.
E há ainda que contar com o cinismo, adverte Ronaldo Monte, de um dispositivo
social montado para convencer os indivíduos de que eles são os culpados pela
sua exclusão do processo produtivo. São poucos aqueles que conseguem ver com
clareza os mecanismos socio-econômicos responsáveis pela sua derrocada
existencial. O próprio espírito contemporâneo, com a sobrevalorização do
esforço individual e aproveitamento das oportunidades, transfere para o
indivíduo a responsabilidade pelo seu sucesso ou fracasso em exibir um certo
padrão de consumo que testemunhe a sua pertença à galeria dos descolados que
incorporam tal espírito. [6]
Por outro lado, a humanidade padece, desde sempre, de temores graves e
reverenciais face a fenómenos da natureza que não domina e para os quais
procura amparos da mais diversa índole. A fragilidade vê-se hoje aumentada pelo
facto do mundo estar sujeito a uma globalização [7] com pendor orientado pela
teologia do mercado. Este tipo, deveras negativo, de mundialização' ocasiona a
passagem da vida sólida', assente nos organismos, mecanismos e estruturas de
apoio, protecção e segurança social, para a vida líquida', movediça,
escorregadia e diluída no viveiro de incertezas, medos e infortúnios pessoais e
na destruição da solidariedade. A isso conduz a retirada gradual da
responsabilidade do poder público em definir as políticas de investimento em
áreas como a saúde, a educação, a segurança e a previdência e em entregar à
gula da privatização as acções anteriormente atribuídas ao Estado. Quem o diz e
prova, de modo magistral, é o eminente sociólogo polaco Zygmunt Bauman em
várias das suas obras. [8]
A globalização trouxe, é certo, à tona a unidade da espécie humana, traçada
por Kundera, porém deixando claro, de forma inequívoca e trágica, que o bem-
estar de uns nunca é inocente em relação à miséria de outros. À sedutora ideia
de sociedade aberta, de Karl Popper (1902-1994) [9] , corresponde a realidade
aterrorizante da maioria da população infeliz e vulnerável, submetida a forças
que não entende nem, muito menos, controla. A Caixa de Pandora abriu-se e expôs
a humanidade aos fustigantes ventos de um destino malévolo. A sociedade do
perigo e do risco tornou-se uma sociedade abalada, alarmada, atribulada e
aprisionada pela invenção e exploração do medo. [10]
Ademais os medos contemporâneos são interiores e não mais exteriores,
deslocaram-se para dentro dos muros da cidade e de cada um de nós; é aí a
morada do novo tipo de inimigo: a suspeita em relação aos outros e à diferença,
o ressentimento com estranhos e a exigência de os isolar e banir, a preocupação
histérica e paranóica com a lei e a ordem'. Por via disto a garantia de
segurança assenta na inexistência de vizinhos com pensamentos, atitudes,
comportamentos e aparência diferentes dos nossos; ou seja, implica e instaura a
uniformidade. E esta, por sua vez, alimenta a conformidade e a intolerância. O
regime pós-moderno segue, pois, à risca o propósito do Panóptico de Foucault:
vigiar e combater a diferença, a opção e a variedade, disciplinar e impor ao
comportamento dos cidadãos um padrão uniforme. [11]
Tristes tempos estes, em que não há tempo nem lugar para a tristeza ' constata
Ronaldo Monte. Todos os seus lugares públicos, igrejas e cemitérios inclusive,
foram transformados em templos maníacos. São, portanto, manicómios, lugares
para cuidar da mania, deixá-la expandir-se até certos limites, seguindo padrões
estereotipados de comportamento. (...) E não se trata mais daquele mal-estar
freudiano, necessário à nossa vida coletiva civilizada. É um excesso de mal-
estar que resulta justamente da falência do projeto coletivo e civilizado da
modernidade. O malogro da promessa iluminista de realização dos ideais da
ordem, da limpeza e da beleza resultou num excesso deprimente de desordem, lixo
e feiura que o espírito contemporâneo, na incapacidade de elaborar este
excesso, tenta negá-lo através do gerenciamento público da mania e da
privatização da depressão. [12]
INTERVENCIONISMO E ACTIVISMO FÍSICO
É sobre este duplo plano de fundo que se instituem uma política e uma indústria
que exploram o capital do medo e colocam os cidadãos na respectiva mira. Isso
mesmo acontece no domínio das actividades corporais e no funcionamento da vida
urbana. As cidades são agora o local por excelência das ansiedades;
construídas para fornecer protecção a todos os seus habitantes, as cidades
hoje em dia se associam com mais frequência ao perigo que à segurança,
sustenta Zygmunt Bauman. [13] Não é por acaso que também se multiplicam nelas
as organizações que aproveitam a insegurança, o pânico e a angústia. Há
manifestamente, de alguns anos a esta parte, uma indústria e um comércio
florescentes e em crescendo nesta área.
Neste desenvolvimento de uma série sofisticada e diferenciada de bens de
consumo adquirem particular notoriedade os serviços, as ofertas, actividades e
experiências que se voltam para o corpo e depositam nele frustrações, anseios e
esperanças de salvação e redenção. Através do recurso a uma panóplia de acções
e tecnologias, os corpos podem ser alterados e reparados segundo diferentes
padrões e fins, para melhor assumirem determinadas funções e papeis,
corresponderem a diversas motivações e fintarem os desamparos e vazios
existenciais.
Como é sabido, sempre houve e haverá uma conjuntura corporal, como parte da
conjuntura da forma humana ' a coisa mais digna de que se ocupa o homem, no
dizer de Goethe (1749-1832). Ela reflecte os problemas, anseios, ideais,
princípios e valores da Vida e do Homem, vigentes em cada época
As grutas e gravuras mais antigas não mentem a esse respeito. Desde os tempos
primitivos até aos nossos dias o homem não cessou de manifestar insatisfação
com o seu corpo - com a sua forma, fiabilidade e plasticidade -, de praticar
nele um confronto entre o real e o virtual e de procurar outro corpo. A nossa
vida e a nossa identidade sempre foram corpóreas, o corpo sempre foi uma
anatomia do nosso destino. Desde tempos imemoriais o corpo foi a medida de
todas as coisas (media-se o mundo com o corpo e com os seus produtos e
actividades: pés, punhados, côvados, cestos, acres, jeiras).
De resto não foi a partir do nada que Leonardo Da Vinci (1452-1519) e Vesalius
(1514-1564) desenvolveram o projecto do corpo-máquina, que a ciência moderna e
a sua consequente tecnologia haveriam de apoiar e viabilizar ao possibilitarem
a transformação e recriação da natureza, tanto da extrínseca como da
intrínseca. [14]
Todavia o século XX pode ser visto como um tempo da descoberta e invenção
teóricas do corpo, da sua revalorização e envolvimento material ' e também das
suas debilidades e fragilidades. É neste tempo que Freud (1856-1939) sustenta
que o inconsciente fala através do corpo;Edmund Husserl (1859-1938), nome
insigne da Fenomenologia, apresenta o corpo como berço original de toda a
significação; e Merleau-Ponty (1908-1961) e outras eminentes figuras do
Existencialismo vêem no corpo uma encarnação do espírito, chamam-lhe corpo
cognoscitivo e reflexivo, um pivô do mundo, uma estrutura do viver. [15]
Vêem-no como sede de símbolos e significados, como artefacto cultural e
axiológico, para além do protocorpo biológico e natural, levando a proclamar:
Nós somos o nosso corpo! Ele é medida e expressão do nosso Ser. [16]
Como corolário deste movimento, Marcel-Mauss (1872-1950) assinala o
aparecimento da noção de técnica corporal, da multiplicação e expansão das
formas, métodos e usos do corpo pela sociedade e pelos indivíduos. Não é, pois,
um acaso que se assista a uma renovação das atenções ao corpo e ao seu carácter
instrumental, dando lugar a uma onda de ativismo e intervencionismo, sem
precedentes. O corpo deixa de ser apenas natureza primeira para se tornar um
grande campo experimental das visões, das esperanças e expectativas mais
elevadas e das fantasias mais prodigiosas. De corpo espontâneo, esquivo,
insubmisso, resistente e natural ele evoluiu paulatinamente para corpo
intencional, obediente, conhecido, dócil e artificial, lavrado, colonizado,
transfigurado e edificado pelas mais diversas culturas. Um narciso à medida dos
desejos e aspirações, das metáforas e utopias, da função e necessidade, tanto
na superfície como na profundidade.
Isto é, os exércitos de conquistadores, impulsionados pela ciência, pela
tecnologia e por outros instrumentos e corporações de interesses em moda,
focalizam a sua atenção no corpo e este deixa de ser tolerado como algo
natural, fruto do destino e do acaso. Torna-se um artefacto.
Em suma, a tentativa de manipular o corpo, de o tornar disponível para os fins
e desejos eleitos, faz parte de um projecto, estabelecido sobretudo pela
modernidade, a partir de Rousseau e de Descartes e dos caboucos que eles
abriram à cultura, à ética e à moral, à ciência, visando a liberdade do homem e
o domínio total da natureza.
Sim, o corpo e a ideia de o fazer, melhorar e modelar estão na moda, tal como
escrever e desenhar nele, perfurá-lo e adorná-lo com os mais estranhos adereços
e tatuagens. O corpo transfigura-se - e transfigura o sujeito - através dos
sinais que o atravessam e das formas que reveste. Deste modo os corpos,
desejosos de ser outros, são cada vez mais corpos simbólicos, expressam e
representam outra identidade; neles o ideal passa a ser factual.
A publicidade assume neste quadro o papel de promotora de signos, visando
construir uma hiper-realidade e determinando que o virtual seja mais concreto
do que o real. Consagra-se o triunfo do mundo da representação através de
imagens e simulações de fantasias associadas a beleza e juventude. É imperioso
ser mais moderno do que o moderno, mais jovem do que o jovem, estar mais na
moda do que a própria moda.
Nesta nova urbe as pessoas rompem com padrões de regulação social que vinculam
os estilos de vida a grupos, a faixas etárias e a outras normatividades. O
estilo de vida nela vigente cumpre uma função de comunicação; os bens materiais
e os hábitos e rotinas do dia-a-dia não são usados como utilidades, mas sim
como comunicadores. Roupas, corpos e caras lembram-nos um mundo do faz de
conta, falam de um outro lado da vida, ou, se preferirmos, configuram um lado
imaginário da mesma. Uma vida que se revê na saúde, na beleza, na inovação, na
eterna juventude, na estética. [17] Na nova cidade ninguém é jovem, porque toda
a gente o é ou procura ser pelos anos fora, através da encenação do modo de
viver. Isto é, as pessoas manifestam um interesse crescente pela estilização e
remodelação da sua vida, procurando enfatizar e modificar a identidade, a
aparência, a apresentação do Eu. Os adultos não querem envelhecer, teimam em
suspender a idade e em rejeitar a maturidade que a devia caracterizar. A
remodelação da identidade é, pois, um objectivo permanente, paradoxalmente
ligado à conservação e exibição de uma amostra de duradoira e desapontante
infantilidade.
Ao encontro desta tendência vem o facto das sociedades ocidentais se terem
tornado progressivamente um campo de intervenções realizadas por peritos
credenciados e apostados em impor o primado do valor da racionalidade
científica e tecnológica em todas as áreas, inclusive no corpo. No caso deste,
os respectivos especialistas crescem em torno de um discurso acerca da
diabolização dos perigos do tipo de vida urbano, causador do aumento da
densidade física e do decréscimo da densidade moral dos indivíduos, apontando
como remédio a mobilização geral contra o sedentarismo e a hipodinamia, através
da promoção do desporto e, particularmente, da indefinida e conceptualmente
aberrante actividade física'. [18] Com isto veicula-se a certeza de formar o
corpo e o carácter, servir a saúde e melhorar a produtividade, a felicidade e a
moralidade. Ou seja, assiste-se, como refere Hugo Lovisolo, a um poderoso
movimento ideológico e económico que leva o activismo físico a ser uma
preferência na vida moderna juntamente com um estilo esportivo no modo de se
vestir, alimentar, construir e operar com o corpo e na organização e prática do
lazer.
Consequentemente os especialistas passaram a formular propostas de intervenção
nesse mundo amplo e diferenciado: regime alimentar e de sono, roupas,
cosméticos, atividades corporais, recreação, sexo e tantas outras esferas de
atividades foram reguladas por suas intervenções geralmente fundamentadas em
conhecimentos ditos científicos. [19]
O frenesim neo-higienista e intervencionista socorre-se da divulgação de listas
alarmantes de factores de risco, convida toda a gente a mexer-se, correr,
caminhar, andar e subir escadas, em vez de utilizar o automóvel e o elevador;
vende a ilusão de que cada um pode ter o corpo que escolher e a saúde que
construir. Para tanto apregoa-se e comercializa-se o exercício' e o treino'
do corpo, se necessário, com recurso ao complemento de regras dietéticas e
operações cirúrgicas; os health centers', spas' e academias' proliferam em
todo o lado, oferecendo fórmulas sagradas de vida feliz e saudável, em
programas feitos à medida dos desejos e da necessidade, da idade, sexo, peso e
altura. [20]
O intervencionismo vai mais longe, assumindo laivos de perseguição e foros de
cruzada, com feições e implicações apontadas por Hugo Lovisolo: Os desvios
corporais de peso, em relação aos padrões considerados normais, e em especial a
obesidade ou gordura, tornaram-se um inimigo combatido por uma forte aliança de
interesses, abrangendo desde o Estado, as companhias seguradoras, a indústria,
os profissionais da área da saúde, (...), as diversas organizações e
profissionais participantes do que poderíamos denominar movimento pela saúde.
(...) A obesidade, a inatividade corporal e o fumo são os grandes inimigos do
movimento que aposta na saúde (...) O valor da saúde (...) expande-se pelo
mundo, associado numa esportivização da cultura e dos estilos de vida. Trata-
se, no seu sentido mais amplo, da construção de eus', de identidades
individuais ou subjectividades nas quais os novos complexos de relações com os
corpos passaram a ser centrais e integrantes, portanto, do nosso cotidiano.
[21]
Esta apreciação não é uma lucubração visionária; ao invés, tem os pés bem
assentes no terreno da conjuntura. De todo o lado surgem ordens e sinais a
mandar exorcizar e expulsar o gordo ou a gorda, potencial ou real, que há em
nós. Para que a beleza da magreza se liberte desse espartilho e o magro possa
nascer e circular sem peias.
CORPO CONSUMIDO E CONSUMIDOR
Primeiro:
Pode parecer, mas não é de agora; é de ontem e de hoje, de todos os tempos e
lugares, de todos os contextos culturais e civilizacionais: o investimento no
corpo, a concepção, projecção e configuração das suas formas e potencialidades,
segundo ideais, ditames e interesses em vigor nas relações e circunstâncias
sociais, sempre estiveram em curso.
É certo que na actualidade estão manifestamente em alta a elaboração e a
prescrição de programas, manuais, cuidados, dietas, medidas e estilos de vida,
com certificado de rigorosa cientificidade e garantia de absoluta
infalibilidade, para produzir corpos belos e esbeltos, activos e ágeis, esguios
e livres das amarras e enfados da gordura. Esta não é mais o antigo sinónimo de
santidade para devotos inflamados, nem de beleza e abundância económica e
material para noivos incautos ou gananciosos. Todavia o corpo nunca foi um
espaço neutro e espontâneo, esquecido ou ignorado pelos inconformados com a
realidade e desejosos de concretizar a concebida virtualidade. Sobretudo a
partir da vinda da modernidade e das respectivas ciência e tecnologia e da
abordagem transformadora da natureza que elas instauraram.
O que desta feita entra pelos olhos dentro - dos que não estão desatentos à
realidade e à sua evolução - é o novo tipo de intervenção no corpo: uma
tentativa de controlo sem precedentes, levado até aos mais ínfimos aspectos.
Também aqui se revela a manifestação particular de uma tendência mais geral,
que é a de serem controlados todos os nossos actos e passos, já não somente os
públicos, mas inclusive os privados. Os sinais, factos e leis de
regulamentação, fiscalização e punição do que podemos e devemos ou não fazer
mostram-se e estendem-se cada vez mais, abarcando aquilo que é do foro íntimo e
pessoal. O espaço de manobra e assunção plena das nossas decisões é
crescentemente condicionado e cerceado. Há em toda a parte fixações e
indicações, meios áudio-visuais de observação e registo e agentes vigilantes,
sempre prontos a impor-nos o que é tido por certo e correcto e a atribuir
penalizações ou admoestações pelos comportamentos considerados inconvenientes,
errados e inadequados. Quem sabe se até os nossos sentimentos não serão
esventrados dentro em breve?!
Para favorecer a adesão a este clima, agitam-se medos e fantasmas, pavores e
inseguranças, ameaças de perigos, riscos e mesmo terrores susceptíveis de nos
forçarem a assumir uma nova maneira de lidar com a corporalidade. Goste-se ou
não desta afirmação, estamos a conviver com um ambiente exagerado de crenças e
promessas de domínio e poder sobre a nossa existência corporal. Isso convém
obviamente aos interesses do mercado neoliberal, tornando o nosso corpo um
lucrativo pólo de investimento, de criação e prestação de serviços e
responsabilizando cada um pela obrigação de tomar a seu cargo o bem-estar e
destino pessoais. Ao cabo e ao resto, o corpo não escapa às marcas,
ajustamentos e conveniências do consumo.
Por outro lado, não se pode esquecer que as crenças são filhas de visões e
ilusões sumamente apetecidas. Por isso é legítimo perguntar se somos tão
capazes e estamos realmente a conseguir controlar e moldar o corpo tão
rigorosamente quanto se acredita e diz. Ou se isto é apenas expressão da ânsia
de segurança que nos assalta em várias frentes. Como quer que seja, é evidente
que alastra e se generaliza o discurso acerca do dever obrigatório, firme e
irrecusável de cuidarmos do corpo e que isto concentra atenções e ocupa um
espaço mais amplo do que em épocas anteriores. Contudo e paradoxalmente este
esforço não nos torna mais seguros, antes expressa uma constância da
preocupação em relação às fintas e rasteiras que o corpo nos pode pregar em
qualquer instante.
Assim sendo, é muito questionável se estamos a alargar o raio da nossa
liberdade individual, se o nosso corpo viu ampliado o leque de escolhas e
possibilidades e reduzido o espartilho dos vínculos e apertos antigos. Ou se,
pelo contrário, tudo não passa de uma impressão de liberdade acrescida e
estamos a substituir os velhos condicionantes por outros ditados por ganâncias,
necessidades e interesses emergentes. Por outras palavras, para o corpo como
para o resto são-nos recomendadas e prescritas escolhas incessantes,
provisórias, precárias, frouxas e fugidias, a toda a hora revogáveis e trocadas
por outras, fazendo com que a liberdade e a restrição das nossas decisões
assumam um equilíbrio instável e aparente. Afinal, como é que se conciliam o
direito e o dever individuais de controlar o corpo? [22]
Segundo:
Uma análise atenta da conjuntura revela, à saciedade, que o corpo (seja na
versão de consumido', seja nas de consumista' ou consumidor') é claramente
um distintivo, objecto e alvo de interesse da sociedade de consumo. Como tal é
um palco preferencial da onda da incessante reformulação da identidade e da
exibição da tão incensada novidade, ambas alimentadas, entre outros factores,
pela agitação, pelo uso e abuso, empolamento e exploração constantes do vasto e
valioso' capital de inseguranças e medos. Consequentemente a insana busca ou
jihad (na expressiva terminologia de Zygmunt Bauman) pela imagem, forma,
condição e aptidão corporais ideais - nunca de todo atingidas e atingíveis -
desperta enorme fervor e encaixa, de maneira perfeita, na lógica do mercado.
É neste ponto que urge separar as águas: uma coisa é a saúde, outra é a doença
da obsessão em modificar a superfície ou a profundidade corporal. O corpo
consumido' tornou-se auto-télico, a imagem um deus, as rugas uma contravenção,
a gordura e a obesidade um pecado mortal, a celulite um descaso, a dieta uma
religião e a exercitação (sobretudo a musculação) um ritual de penitência e
expiação obrigatórias. O bom senso parece ser perdido à medida que cresce a
obstinação dos adultos em fabricar e manter a eterna juventude e em livrar-se
ou evitar o aparecimento dos incontornáveis e tão estigmatizados e infernizados
sinais de velhice. Ora isto não é sensato e natural. Tudo convida a gastar
tempo, esforço e recursos com o artificial e supérfluo; nada sobra para
investir na cultura e sabedoria da vida. [23]
De resto o cultivo hodierno do corpo segue e desvirtua a linha aberta pela
ciência da modernidade. Confirma e expressa o aprofundamento da destruição do
sagrado e do eterno. A entrega total ao aqui e agora e a absolutização e
comunhão da máxima carpe diem não deixam espaço para o transcendente; retalham
os grandes problemas e conduzem à concentração em assuntos de menor escopo, que
podemos abordar, tentar controlar e resolver e não se espraiam aparentemente
para além da nossa existência. Ademais, na voracidade da mudança e no golpe
mortal desferido no valor da durabilidade, a longevidade corporal surge como a
única identidade com expectativa de aumento progressivo. É, pois, mais rentável
investir na vida corpórea do que em causas eternas, actualmente em situação de
declarada falência; tudo o que não seja apostar no prolongamento da existência
física individual parece, portanto, um mau e desaconselhável negócio.
O mesmo é dizer que caiu em desuso o projecto de construção da ponte entre a
brevidade da nossa vida e a eternidade do universo, árdua e laboriosamente
empreendido durante milénios em todos os contextos culturais. Deste jeito é
também abandonada a reflexão filosófica acerca da ideia da verdadeira
felicidade, resultante da associação dos nossos actos e práticas a coisas'
maiores e mais duradoiras do que o trajecto corpóreo ' e que este não contém.
[24]
No corpo (do) consumidor' é semeada e zelosamente cultivada, regada e adubada
uma ansiedade permanentemente insatisfeita com a duração e validade temporais
dos resultados, convidando assim a ambicionar, visar e atingir uma sucessão
ininterrupta de metas parciais, precárias, transitórias e portanto carecidas de
reformulação e renovação infindas. O guião é inequívoco: nada está ganho para
sempre; é preciso exercitar todos os dias, sob pena de regredir. Até porque a
boa forma' é um ideal inatingível, já que ela se vincula a um esforço
persistente, contínuo e inconcluso, porquanto a sua essência reside no
determinismo de que é necessário substituí-la por outra sempre nova, à medida
que a anterior se gasta e caduca. Ou seja, a boa forma' exclui os limites e um
padrão plenamente estipulado, nunca se alcança de todo, uma vez que tem
imanente a noção de que é sempre possível melhorá-la e resvala para a má
forma', quando esse intento é abandonado. Logo a procura da forma' não concede
descanso e não tem fim, implicando uma norma sem tecto, um chão que ninguém
pisa, uma via e escada compulsórias e geradoras de dependência, semelhante à
resultante de uma droga viciante. Cada dose de consumo conduz à seguinte, numa
escalada ininterrupta. Por outras palavras, a luta pela boa forma' e pela
imagem acabada nunca está, nem pode ser ganha de todo, havendo sempre pela
frente uma batalha de desfecho incerto.
EXERCITAÇÃO, RELIGIÃO E ALIENAÇÃO
Correndo o risco de ser excessivo, oferece-se propor que não devíamos descartar
a hipótese de, no movimento do exercício, do activismo ou da aptidão física,
haver indícios de religião, fundamentalismo, fanatismo e alienação. Com efeito
não faltam os viciados' em malhação' muscular, em actividade física' ou
ginástica aeróbica', que se entregam de modo obsessivo e devotado à tarefa de
reforma' ininterrupta do seu corpo. Os especialistas', quais inflamados e
mandatados sacerdotes ou delegados de propaganda médica, abençoam, apregoam e
comercializam esse produto em nome de fins de purificação, enquanto a
gananciosa e nada ingénua sociedade de consumo e consumidores lhes pisca o
olho, esfrega as mãos e bate palmas de contentamento. Também aqui os ventos
sopram a favor dela.
Vem muito a propósito recordar que os taliban, quando tomaram Cabul em 1996,
nomearam um vice-ministro para a Promoção da Virtude e a Prevenção do Vício,
que punia publicamente os desvios' com lapidações, enforcamentos e
decapitações. E igualmente não é de olvidar a célebre chamada de atenção de
Martinho Lutero (1483-1546): A medicina cria pessoas doentes, a matemática
pessoas tristes e a teologia pecadores. Agora tudo parece fundir-se no mesmo
resultado. Mutatis mutandis!..
Há certamente unilateralidades e parcialidades, quiçá algum excesso, nas tintas
desta análise; mas exagerar é uma maneira de alertar, de mostrar contradições,
insuficiências, superficialidades e derivas numa conjuntura corporal que
acentua, enfatiza e concede a primazia ao culto das dimensões biológicas e da
aparência e ignora quase por completo os outros valores.
Importa, sobretudo, que nos interroguemos se não estamos possuídos de uma
mentalidade ' ou a colaborar na sua construção ' que vê em tudo ameaças à
integridade corporal. No sol, na comida, na bebida, nos temperos, no descanso,
no sexo, no tabaco etc, em tudo vemos maus agoiros e prenúncios, coisas hostis
e nocivas ao corpo. Perspectivamos assim a vida como um ambiente cheio de
malefícios assustadores e terrificantes que só podem ser vigiados, contidos a
alguma distância e impedidos de invadir o território corporal, fechando-o ao
convívio com o envolvimento e opondo a tudo quanto deste provém a barreira de
um activismo sem pausa e sem medida. Porventura sem o querer, estamos a afirmar
e evidenciar a grande vulnerabilidade do corpo. Em vez de o celebrar e festejar
como um território de esperança, estamos a desconsiderá-lo e a mortificá-lo, a
desconfiar dele, a chamar a atenção para a sua extrema debilidade e para as
traições e partidas que ele nos pode pregar, sem o mínimo aviso. Enfim, eis a
surpreendente e legítima constatação, os conceitos negativos acerca do corpo
sobrelevam hoje, de longe, os positivos.
Tudo isto prova que a ambiguidade e ambivalência tomaram conta de nós. É assaz
diminuta ou quase nula a capacidade para traçar, com nitidez e razoabilidade, a
ténue linha de separação entre a norma e o excesso, para distinguir e decidir
aquilo que nos convém e aquilo que nos prejudica, o que faz bem e o que faz
mal, o que é natural e bom e o que é artificial e mau. Perdeu-se o sentido da
harmonia, do equilíbrio e das proporções; a vida torna-se inodora, insípida e
monocromática, ao proclamar e colorir tanto o desejo de a regular, fiscalizar
e unifirmizar e ao diminuir o sal que lhe dá tempero e gosto, saber e sabor,
significado e sentido.
O desconcerto e a indefinição, a insegurança e o temor daí advenientes tomaram
posse de nós e comandam os nossos passos. Da dúvida e do medo, como essência e
como uma fonte de alerta, prudência, estímulo, sabedoria e qualificação da
acção, resvalamos para rituais de auto-flagelação e anulação, para jogos de
simulação e engano. Fica claro que não sabemos ainda balizar a liberdade, seja
no geral, seja no caso particular do corpo e dos aspectos a ele concernentes.
Ciclicamente regressamos ao ponto de partida, inventando novos pretextos para
patentearmos a nossa incompetência e frustração.
Enquanto noutros domínios o terrorismo é um pesadelo iminente ou latente, no
corpo e nos acréscimos de peso e centímetros na cintura a gordura representa a
derrota da desatenção ao estilo de vida pessoal e das defesas somáticas, o
fracasso da vigilância, o terror concretizado, a vitória deste, a invasão, a
anexação e usurpação das nossas existências por inimigos traiçoeiros.
Eis assim aberta a frente de uma nova e apelativa batalha, que somos intimados,
pelas mais diversas e respeitáveis organizações, a travar nas próximas décadas.
Como em todas as outras guerras, muitas sem aviões, tanques e bombas à vista,
também nesta há quem acumule ingentes proveitos, quem seja louvado e
santificado e quem seja admoestado, exorcizado e crucificado. E há igualmente
uma linha de fronteira, um novo tipo de insidiosa discriminação ou divisão de
barreiras ou classes sociais: magros/gordos, belos/feios, jovens/idosos etc.
Mais, os magros, secos, mirrados e escanzelados, por cumprirem os preceitos,
bulas e exigências da exercitação e regulação, passarão a ocupar os altares
cimeiros e sagrados do reconhecimento e adoração; os gordos e obesos, por serem
profanos e inferiores, relaxados e indolentes, desnecessários e indesejados,
desleixados e pecaminosos, falhados, sem mérito para superar os seus vícios,
incapazes de agir da forma como se espera que ajam, de todo inúteis e por
driblarem as prescrições e metas da Tora do emagrecimento, serão denunciados e
perseguidos e arderão no inferno da nova e reeditada inquisição. Para estes
infractores da lei e da ordem, tolerância zero; o seu lugar é fora e longe das
nossas vistas!
Quando as noções e considerações éticas são abandonadas, descuradas ou
silenciadas, a empatia em relação aos outros (particularmente os frágeis,
humilhados e marginalizados) extingue-se e as barreiras morais conhecem a
derrocada. Amalgamadas na indiferença moral, as receitas e soluções da
racionalidade técnica e as ambições e motivações da voracidade consumista
formam uma mistura explosiva. À semelhança do que sucede nos outros campos,
igualmente no activismo físico o número dos danos colaterais está notoriamente
em ascensão.
Nisto não há exagero algum. Convém ter presente que o corpo, por ser um
material e terreno de enorme plasticidade e visibilidade, é alvo fácil e
benquisto para implementar a tentação e a estratégia de registo, domesticação e
acompanhamento de todos os nossos passos. Isto é, pode treinar-se bem nele o
controle que hoje a tecnologia possibilita e a ausência de sensatez e de um
pensamento filosaficamente bem fundado ' e por isso néscio e sem escrúpulos -
não põe em causa. Desta sorte a intervenção no corpo é percursora ou reveladora
de novos mecanismos e instâncias de censura e constrangimento sociais que
acabarão por visar destinatários atinentes ao que podemos ver, ouvir, ler e a
outras necessidades vitais e existenciais.
Ou será que o ânimo controlista se dá por satisfeito exclusivamente com o
corpo? Não parece. Até onde isto nos levará, quer na normatização e conformação
do corpo, quer na de tudo quanto perfaz a nossa vida? Será que a norma da saúde
passará a habitar paredes meias, quando não em comunhão de bens, com a
demência, insanidade e loucura?
Há razões para admitir que já não é a saúde', na amplitude do seu conceito, a
presidir às apostas de aplicação no corpo; ela é o motivo invocado, certamente
válido, mas não é a causa genuína, nem tampouco a finalidade principal que
determina a onda expansionista em curso. Dir-se-á, com algum e bastante
fundamento, que é a estética. Mas... qual estética': a do gesto belus e bonus,
a da beleza e bondade, da promessa de felicidade?
Isto requer reflexão conexa e profunda e não formulações aligeiradas. Até
porque em assuntos de tamanha complexidade não há respostas simples e fechadas.
É preciso lançar ideias formadas à luz de conhecimentos tão científicos quanto
possível. Mas sem esquecer que os cientistas têm crenças e são sacerdotes
delas; isto é, os conhecimentos, por maior que seja a sua cientificidade, não
conseguem alijar aquela circunstância. Assim há que ser mais humilde e menos
convencido e peremptório no receituário e apologia de propostas de acção. A
questão do sentido da vida deve orientar a elaboração de fórmulas para a sua
concretização em todos os campos.
Seja como for, aquilo que se passa no tocante ao corpo, ao seu design e
modelação, ao combate à inactividade e ao ambiente obesogénico, à formulação,
apresentação, recomendação e consumo de dietas, de cuidados, serviços e medidas
afins serve de paradigma para ilustrar, de maneira nítida, a dualidade dos
critérios que balizam o esboço da condição humana na sociedade de mercado
neoliberal e do respectivo consumo. O relativismo de princípios e valores é
assaz patente.
IRRACIONALIDADE E SERVIDÃO
Como se referiu atrás, o presente clima de desamparo existencial, de
debilidade, instabilidade, exclusão e desintegração social constitui um habitat
favorável à instauração e progressão de uma política, de uma indústria e de um
comércio de utilização da insegurança e do medo. [25]
Zygmunt Bauman caracteriza a sociedade pós-moderna e líquida' de consumidores
como uma sociedade incerta acerca da sobrevivência de seu modo de ser; o que
a leva a desenvolver uma mentalidade de fortaleza sitiada e a ver como
inimigos que cercam suas muralhas os seus próprios demónios interiores, ou
seja, os medos reprimidos e ambientes que permeiam a vida diária, a
normalidade', mas que, para tornar suportável a realidade diária, devem ser
esmagados e empurrados para fora da cotidianidade vivida e fundidos a um corpo
estranho ' um inimigo tangível dotado de um nome, um inimigo que se possa
enfrentar, e enfrentar novamente, e até esperar vencer. [26]
Paradoxalmente ou talvez não, em vez de tentarmos delimitar e erradicar as
causas dos problemas, injustiças e angústias, somos preparados' e
instrumentalizados para dar o aval a soluções que prometem reduzir' a
probabilidade de sermos vítimas dos incontáveis perigos que ameaçam a nossa
segurança e a dos que nos são próximos ou familiares. À conta de protecção e em
nome do pretenso ataque ao terrorismo real ou imaginário, aceitamos a
limitação, a redução e a revisão dos direitos individuais e sociais, a
imposição de restrições, as medidas de repressão etc. Fingimos ignorar ou
ignoramos mesmo que isto aumenta a insegurança e serve os interesses de quem
medra nela; esquecemos que a perversa abertura e entrega dos países ao apetite
insaciável do mercado, imposta por esta globalização negativa, é por si só a
causa principal da injustiça e, por via disso, do terror, da violência e
conflitos pendentes. [27]
Mais, o demónio sinistro do medo e do vazio existencial é agitado para atrair a
nossa atenção para aspectos da vida cujos riscos ' assim nos leva a acreditar a
razão ou a manipulação - podemos influenciar ou minimizar. Deste modo somos
dirigidos para alvos substitutos sobre os quais descarregamos os medos
excedentes e sobrantes do definhamento dos vínculos laborais, da previdência e
segurança sociais, da protecção de roubos e assaltos etc. Povoados de
ansiedades, somos intimados a reconhecer e vigiar sintomas de doenças
aterradoras, a tomar cuidados e precauções e a adoptar regras e comportamentos
para combater o stress, a pressão alta, as taxas elevadas de colesterol e
diabetes, a evitar comidas gordurosas e a ingestão de calorias em demasia, o
sexo sem preservativo, a inalação de fumo, a encurtar a exposição ao sol, a
beber muita água e ser moderado no consumo de outras bebidas, sobretudo das
alcoólicas - e não sei quantas coisas mais.
Ou seja, o progresso científico e tecnológico e a melhoria das condições de
vida tornaram-se uma ameaça para esta, ocasionando fantasmas, desconfianças e
reservas e a necessidade de a submeter a nova ordem. É como se, para vermos e
nos mantermos vivos, tivéssemos que prescindir da visão das cores, amputar a
própria vida ou sacrificar uma dimensão essencial dela. Obviamente para nosso
bem, conforto e conveniência!
Contra isto insurge-se Vasco Pulido Valente num texto intitulado Por bondade, a
propósito da proibição de fumar em restaurantes. Atente-se nestes excertos:
Isto não anuncia nada de bom. Por um lado, porque fatalmente à campanha contra
quem fuma se vai seguir a campanha contra quem bebe e a campanha contra quem
come o que não deve ou come demais. E talvez, mais tarde, a campanha contra o
sedentarismo' e a falta de exercício. Não custa nada argumentar com as doenças
que o álcool e a gordura provocam (tantas como o tabaco), ou retirar do mercado
produtos de risco', ou vigiar o que os restaurantes servem. Por outro lado, já
se viu que o poder do Estado para converter a populaça ao objectivo tenebroso
de melhorar o homem' é hoje ilimitado. A metamorfose das democracias do
Ocidente em totalitarismos de uma nova espécie não incomoda ninguém. Não uso a
palavra descuidadamente (não uso, de resto, nenhuma palavra descuidadamente):
para Hitler (que não fumava, nem bebia), o alemão perfeito não andava muito
longe do perfeito espécime do Ocidente contemporâneo.
Imagino muitas vezes quem, de facto, quererá este mundo sufocante easséptico,
obcecado com a saúde'? Gente, como e óbvio, com pouca imaginação. Por mais
forte que sejao culto e a idolatria do corpo, a velhice chega. E, com ela, a
irrelevãncia, a obsolescência, a solidão. Esta sociedade de velhos trata muito
mal os velhos. A ideia (e apropaganda) de uma adaptação contínua euma grande
ecruel mentira. Os velhos são um embaraço. Um peso que se atura, que se arruma
num canto, que semete num lar'. Setenta anos de esforço para durar acabam num
limbo à margem da verdadeira vida, quando não acabam no sofrimento e na
miséria.O Ocidente está a criar um inferno. Por bondade, claro. [28]
(Em jeito de parêntesis, vale a pena introduzir aqui um alerta. Os sistemas
autoritários lançam desta arte os seus alicerces: sendo maus no geral, apoiam-
se na aceitação e agrado, no populismo e demagogia de algumas medidas isoladas,
tidas por boas; ou seja, começam por atacar grupos sociais menos populares e
hábitos mais questionáveis, concitando assim o aplauso da maioria, para depois
irem estendendo, passo a passo, as suas ramificações e tentáculos).
Vasco Pulido Valente retoma o assunto num texto com o não menos pertinente
título Uma questão política. [29] Após insistir na questão das campanhas contra
o tabaco e o álcool, volta-se para o tema da comida, da obesidade e exercício
físico. Dão muito que pensar estas elaborações: A obesidade também é uma
questão política. Política, reparem. E é bom parar para uma pergunta: por que
razão diz respeito aos Estados a obesidade do sr. A ou da sra. B ou mesmo de
uma parte considerável da plebe democrática? Porque há tese, aliás controversa,
de que morrem mais cedo (doenças cardiovasculares, renais, diabetes, vários
tipos de cancro)? Porque gastam mais dinheiro ao sistema de saúde (embora com
certeza poupando à segurança social)? Ou porque os governos, levados por um
irresistível sentimento estético e um novo zelo pelo seu prestígio
internacional, não querem a paisagem desfeada por gordos, nem a presença
comprometedora de gordos na televisão?
Não me parece que a verdadeira explicação esteja principalmente aí. Beber bem'
(mas não muito), comer pouco e só o que a medicina indica, ser magro (e, por
consequência, bonito') e fazer exercício com regularidade acabou por se tornar
uma distinção de classe'. Uma distinção que separa os ricos' dos pobres'
(que não frequentam um nutricionista) e os poderosos dos metecos (não por acaso
o primeiro-ministro insiste em correr meio nu pelo mundo inteiro). Como
antigamente o ouro, a prata e as rendas separavam a opulência da miséria, o
corpo e a saúde são hoje um sinal e um símbolo de superioridade. E, pior ainda,
um meio de promoção social. ( ) A obesidade é uma questão política. Para nossa
desgraça. [30]
Contra estas considerações poderá argumentar-se que contêm exageros manifestos
e também alguns e não desprezíveis enviesamentos na análise e na enunciação das
causas e implicações. Que o autor se serve de um álibi para ignorar ou
contornar a ética do cuidado' de si e dos outros, proclamada por Martin
Heidegger (1889-1976), libertando assim cada um e, tão ou mais grave, o Estado
de cumprir a sua parte, no geral e no particular. E que, por esta via,
desculpa, branqueia e favorece, premeditadamente ou não, comportamentos de
incúria, laxismo, desleixo, abandono e descuido, de imoderação, incontinência e
desobrigação, desbragamento e abestalhamento, de irresponsabilidade, frouxidão
e moleza, propícios à progressão da vileza, do grotesco, do imundo e
desproporcionado e contrários ao dever de perseguir, com brio e coragem, a
busca da melhoria, da virtude, da perfeição, da estética, da excelência e
areté.
Não é de ignorar que na proclamação de cuidados e cautelas - em relação aos
seus contrários - conflui igualmente o princípioe imperativo da
responsabilidade, enunciado por Hans Jonas (1903-1993). Na falta de virtude e
sabedoria, este filósofo recomenda o uso do medo como método heurístico para
conhecer e apreciar o bem, com o intuito de sair das bandas da ignorância e da
imprudência, de prever e evitar o pior; e assim converte aquele postulado numa
espécie de ética. Do mesmo teor é a posição de Jacques Rancière, pensador pós-
marxista, que vê o medo como aliado e cúmplice da razão, como meio de tomar
consciência dos desequilíbrios, desordens, desregulações e ameaças e como
princípio natural das sociedades, coadjuvando na substituição da brutalidade e
do caos dos factos negativos e reprováveis pela estética das ficções positivas
e desejáveis.
Ou seja, o medo é um sentimento vital, uma fonte de conhecimento e
esclarecimento, um estímulo enérgico, predisponente e produtivo e um motor da
vontade e da acção para prevenir e proteger de riscos, para originar efeitos
bons e diminuir e corrigir males. Nesta conformidade constitui um dever
antecipar e apontar ao máximo os perigos imersos nos mais distintos
comportamentos, assim como provocar um temor adequado a essa representação.
Adequado, justo e equilibrado, note-se bem!
Mas isto não se compagina com posições e maquinações tendentes a perverter e
transformar os receios em terror e pânico, a romper com toda a possível
mediação entre medo e razão, a criar um florescente mercado de
medicamentalização, amedrontamento e policiamento das vidas, a aumentar a
incerteza, angústia e fobia, a sensação de vulnerabilidade e dependência dos
sujeitos, ao invés da pretensão iluminista da sua emancipação. Porque este
clima gera a ausência de um sentido para a civilização e a impossibilidade de
imaginar o futuro. Acima de tudo joga o homem para fora do ser sem o saber,
diminui-lhe a capacidade de autonomia. Ao subtrair-lhe a condição e vocação de
ser-para-a-liberdade induz a sua sujeição à desnaturação, humilha-o e
rebaixa-o para o estado de decadência e obediência que engendram nele a adesão
à servidão voluntária, isto é, a uma deprimente e estranha síntese, impensável
conjuntura, inominável realidade. [31]
Esta situação convida-nos a desconfiar do recurso grosseiro ao alvoroço do
veneno do medo e a recusar o seu aproveitamento como estratégia e ferramenta da
actuação política ou outra. Porque, diz Luc Ferry, para viver bem, para viver
livremente, com alegria, generosidade e amor, precisamos, antes de tudo, vencer
o medo ' ou, melhor dizendo, os' medos, tão diversas são as formas do
Irreversível. [32] E Bento (Baruch) de Espinosa (1632-1677) alinhava por igual
diapasão, com a alusão de que o sábio morre menos que o tolo e com esta
certeira advertência: governada pelo medo e pela alienação a sociedade torna-se
solidão e barbárie, cidade de escravos, onde os cidadãos são bons e honestos à
medida do temor e da tristeza que sentem. Com isto coincide, na perfeição, a
célebre proposição de Montesquieu (1689-1755), vulto cimeiro do Iluminismo
francês: Como o princípio do despotismo é o medo, o objectivo é a
tranquilidade; mas isto não é absolutamente uma paz: é o silêncio das cidades
que o inimigo está prestes a ocupar.
Entendamo-nos, sem equívocos: o medo não é negativo, nem tampouco vergonhoso;
a vergonha está em construir uma política que usa o medo para dominar.
Ninguém de sã consciência, de esclarecida razão e recta intenção pode aceitar e
conformar-se a um estado de manipulação e terrorismo psicológico. Pelo que,
como lembra Adauto Novaes, temos que retomar o sonho da filosofia para penetrar
nas causas do medo, com o intuito de o fazer desaparecer e desmistificar os
ganhos ilusórios que dele decorrem. O desafio não é pequeno, porquanto o
primeiro passo consiste em desfazer-nos do próprio tipo de sociedade que
cultiva o medo e o terror. [33]
Por conseguinte temos que evitar maniqueísmos, cultivar a serenidade, situar-
nos no meio-termo e encontrar um justo equilíbrio, na esteira da sábia
advertência de Erasmo de Roterdão (1466 ou 1467-1536): Não navega mal quem
passa a igual distância entre dois males extremos. Contudo, na sua essência,
os textos atrás citados (de Vasco Pulido Valente) põem a nu os paradoxos desta
hora, como sejam, por exemplo, os de, por um lado, se advogar a longevidade e,
por outro, se tratar tão mal a velhice, retirando-lhe a segurança social e a
assistência na doença. Ao mesmo tempo as referidas análises convergem para
elucidar, de modo nítido e insofismável, que o ardil de recorrer ao medo e a
formas de assustar e condicionar representa um fracasso da razão argumentativa
no convencimento dos indivíduos a autolimitar os seus desejos e é um péssimo
método para influenciar e modificar as atitudes e condutas das pessoas. Mais,
aqueles textos expõem o engrossamento do caudal de instrumentalização e
exploração do medo e evidenciam o refinamento e a multiplicação dos mecanismos
de controle das pessoas, do seu corpo, dos estilos, estereótipos, conceitos,
referências, padrões, projectos e anseios de comportamento e vida. [34]
Eis os traços de um totalitarismo de cariz securitário e sanitário, assaz
semelhante à ideologia fascista ou à hitlerista que via nas imperfeições um
motivo suficiente para varrer os seus portadores da face da Terra! E que parece
estar assimilado por muita gente, por força da profusão publicitária ao seu
serviço, sem que ninguém mais se incomode com sua origem, motivação,
justificação e as drásticas consequências. [35]
Estamos, pois, perante uma irracionalidade igual ou quiçá maior do que a da
indiferença face a estilos de vida indutores de risco. É à volta disto que
cresce um exército de regeneradores e zeladores da saúde e das suas rotinas,
regras e virtudes, uma onda de iluminados especialistas em tecnologias,
serviços e coisas quejandas. Tais peritos, em nome de determinadas crenças',
conveniências e promessas de aumento da vida e de obtenção e manutenção da sua
qualidade, limitam o seu usufruto, estabelecem inibições, decretam aquilo que
deve ser feito, consentido e enaltecido, proibido e censurado e esfalfam-se a
tentar convencer-nos e a incitar-nos a viver num nível inferior, comedido e
contido de possibilidades. [36] Para tanto publicitam, exageram e tiram
partido, de maneira deliberada e assustadora, de pânicos, depressões e
angústias. Atarantam as criaturas, estimulam a adesão a acções defensivas,
favoráveis à auto-propagação do medo - sem tocar, nem sequer ao de leve, nas
suas origens! - e introduzem uma desordem que aproveita ao seu mister. Enfim o
capital do medo e da insegurança é usado para obter lucro e vantagem, a roçar a
ilicitude, no plano político e comercial e até no académico e científico'.
Os arautos do activismo físico também se revêem e bebem nestas águas. Os seus
discursos, escritos, simpósios e recomendações têm duas faces: numa faz-se a
radiografia e o diagnóstico de causas e perigos da morte; na outra tecem-se
promessas e esperanças de saúde e longevidade e tabela-se o preço a pagar pela
salvação. Tal e qual como nas liturgias das seitas religiosas! O círculo
vicioso do medo e das acções nele inspiradas segue em frente, sem sofrer o
mínimo abalo e sem tocar no objectivo invocado. Para que a fonte não seque e a
mina não esgote.
Devemos ainda dizer e reconhecer que não são raros os congressos e publicações
acerca das relações entre actividade física' e saúde que se assemelham a um
desfile e ritual lúgubres e sistemáticos de palestras e intervenções alarmistas
e intimidadoras, destinadas a fazer cair sobre a vida um manto negro de sustos,
alarmes e proibições. Depois segue-se uma ementa generosa de receitas e bulas
infalíveis que visam exorcizar e esconjurar os demónios da morte e prometem
vida abundante.
Estamos manifestamente a cair em exageros, tanto no geral como no particular. O
capital do medo virou manancial de exploração e negócio rentável em todos os
sectores, em nome da preservação da saúde e do prolongamento da vida. A
alienação e a manipulação alastram!
DO MAL-ESTAR PÓS-MODERNO
A situação afigura-se, já foi dito, como paradoxal. Por um lado, no plano
ético, estamos a viver um período de relativismo, de elitismo invertido, de
desclassificação ou dificuldade e mesmo impossibilidade de estabelecer
hierarquias de princípios e valores, de afrouxamento dos vínculos a obrigações
e deveres, a normas e regras. Por outro lado, os interesses políticos,
económicos e comerciais impõem um progressivo policiamento e sancionamento dos
nossos hábitos e rotinas, bem como um pesado adormecimento das consciências e
vontades, com o fito de promover comportamentos propícios aos apetites e ganhos
do mercado e consumo. Daqui decorre que o grande produto da dita pós-
modernidade seja, sem tirar nem pôr, a desorientação.
Curiosamente alguns autores contemporâneos carregam nas tintas do paradoxo, ao
definirem e saudarem a pós-modernidade como o tempo de consagração da
autonomia, da emancipação, da liberdade e individualização, a era do sujeito e
da subjetividade plena etc. Todavia, à sombra de uma pretensa liberdade de
opção, vivemos reféns de um poderoso sistema arbitrário e totalitário. Um GPS
nos localiza, um telemóvel nos denuncia, um computador nos incrimina. Aonde
vamos somos filmados e convidados a sorrir para a câmara. Os nossos corpos são
amarrados informaticamente, diz Mark Poster, fisgados dentro das redes, dos
bancos de dados, nas auto-estradas da informação, em locais que não mais
oferecem refúgio à observação ou uma barreira em torno da qual se possa traçar
uma linha de resistênca. [37]
Afinal no palco pós-moderno não é somente encenada a liberdade; do cenário
também fazem parte a feiura, a servidão e escravidão. Qual das duas versões é a
mais representativa? O que é a liberdade hoje? Alguém está cego ou míope!
Precisamos urgentemente de um ensaio sobre esse conceito no mundo pós-moderno.
A modernidade e as respectivas filosofia e ciência, de teor iluminista e
humanista, erigiram e legitimaram a esperança e a idéia de progresso de uma
humanidade adulta, emancipada e livre das diversas formas de idolatria,
hemiplegia e obscurantismo pelo acendimento da luz da razão. Como diz Adroaldo
Gaya, a modernidade trouxe-nos a confiança na capacidade criadora e
construtora do homem. Graças a essa chama a humanidade deveria progredir,
aperfeiçoar-se, caminhar triunfalmente para o seu apogeu. Neste cenário se
constituíram as utopias políticas que prometeram tempos de fraternidade,
felicidade. A ciência moderna constituiu-se e prometeu aos humanos a
compreensão racional do universo; a tecnologia, por sua vez, prometeu a
emancipação do homem frente às agruras dos determinismos biológicos e da
natureza. [38]
Mas... o que resta dessa extraordinária e desmedida visão? Não pouca
frustração, devida a um dos grandes equívocos e erros das ilusórias
expectativas do mundo moderno, nomeadamente o de acreditar que as funestas e
trágicas coisas do passado não se repetiriam. A medida da desilusão é, pois, a
mesma da esperança que a precede.
Vivemos hoje num contexto distante do paraíso prometido. A ciência tornou-se
realmente um forte poder, como vaticinou Augusto Comte (1798-1857), porém nem
sempre ao serviço de fins nobres e causas superiores. O nosso tempo ostenta o
selo do desencanto com a irrealização das promessas do passado e da
desconfiança no futuro oferecido na bandeja da inconsistência e volatilidade do
presente. Estamos na pós-modernidade, uma era de destruição e desesperança nuas
e cruas. Não acreditamos nas tradições (desacreditadas pela modernidade) e
tampouco confiamos no futuro associado a esta época desconcertante. Gastas as
referências e desfeitas as utopias, o tempo é o agora e o espaço é o aqui. O
aqui e o agora são os paradigmas vigentes, acusa Adroaldo Gaya. Isto significa
que só o presente vale.(...) O ontem já era', não mais existe; o futuro, por
sua vez, ainda não existe... Portanto, tudo é o agora, o presente. É a cultura
da velocidade e do efémero, da fatuidade e vacuidade, de um reformismo sem
perspectiva, de um caminhar sem rumo, de uma passada sem amplitude e firmeza.
Pior ainda, continua Adroaldo Gaya: Na pós-modernidade a verdade é relativa, o
mesmo é dizer que não mais nos preocupamos em tratar a verdade como real
sentido de nossas vidas, como valor moral e ético. A verdade se apresenta como
valor pragmático; serve para solucionar nossos problemas imediatos. Na pós-
modernidade tudo vale; o que significa que nada vale. ( ) A sociedade é
líquida, o amor é líquido, o tempo é líquido, tudo é líquido, o sólido se
desfaz. Nada mais é sequer viscoso, tudo escorre pelos dedos das mãos.
Em síntese, o mal-estar da pós-modernidade e das suas linhas axiais
(relativismo, ética indolor, crepúsculo do dever, vazio e
irracionalidade,individualismo e egoísmo, inconsistência e insatisfação,
confusão, fragilidade e desconforto interiores), do mercado neoliberal, da
insegurança objectiva ou subjectiva, real ou virtual atazana, comprime, deprime
e asfixia o nosso quotidiano. A percepção e o sentimento - ambos exagerados -
do medo, da incerteza, da desconfiança e do desconcerto vieram e estão aí para
ficar e durar. A pós-modernidade e a contemporaneidade são um hiato preenchido
por uma inesgotável mania de folia, hedonismo e carpe diem, a lembrar um
manicómio e um reino da paranóia e da infantilidade demencial, tornando justo o
apontamento do filósofo alemão Artur Schopenhauer (1788-1860): A dor e o tédio
são os maiores inimigos da felicidade.
Este mal-estar excessivo é, no dizer de Ronaldo Monte, a expressão de uma
profunda mutação histórica sofrida nos últimos anos que deixa cada um de nós
despojado de um projeto que nos permita vislumbrar uma situação futura de bem-
estar. Os seus sintomas são visíveis nas crianças, nos adultos e idosos.
As crianças deixaram de ser os depositários dos sonhos inacabados dos adultos.
Não vemos mais nossos filhos como aqueles que encontrarão no futuro um modo de
remediar os males que afligem nossa geração. O que propomos agora para nossos
filhos ' pelo menos àqueles que ainda fazem parte de uma proposta [39] ' está
reduzido (à preocupação de que) consigam as ferramentas futuras para sobreviver
em um mundo que se apresenta com uma crueldade maior que o presente. Perdendo o
seu caráter lúdico, a infância entra em moratória, transformando-se apenas em
uma etapa de trabalho. E não só as crianças excluídas são entregues ao trabalho
das ruas. Os filhos da classe média se submetem a jornadas com mais de dez
horas de trabalho em ambientes de aperfeiçoamento altamente competitivos,
chegando prematuramente ao stress. Isto apenas para não irem fazer companhia às
outras, do lado de fora do cinturão cada vez mais apertado dos beneficiários da
sociedade do espetáculo e do consumo.
No outro extremo da cadeia geracional, vemos uma velhice degradada, condenada
à indignidade das aposentadorias aviltadas ou à má vontade da caridade pública,
sofrendo o desdém de toda uma sabedoria que perde a razão de ser pela
substituição de valores e quebra de continuidade dos saberes.
Entre a infância e a velhice, vagueiam os adultos, uma geração perdida e à
procura de um rumo. A aceleração do processo de globalização, a ruptura do
precário equilíbrio que dividia ideologicamente o mundo, o descolamento da
ordem econômica da política, fizeram com que as pessoas perdessem os pontos de
apoio para sua organização subjetiva. Tudo o que vinha sendo pensado, entrou em
crise. ( ) Vivemos a perplexidade de não saber o que conservar e o que
descartar. Perdemos, enfim, o fio da meada.
Ronaldo Monte conclui, com traços sombrios, o retrato do mal-estar
contemporâneo: Perplexo frente a esta massa aterrorizante de ataques ao seu
equilíbrio social e psíquico, restam, a meu ver, duas saídas defensivas ao
indivíduo. A primeira, de ordem paranóica, faz com que escolha um grupo cujas
características étnicas, religiosas, de género, ou simplesmente comportamentais
sirvam para projetar toda a culpa pelo mal de que se sente vitimado. A segunda,
de ordem depressiva, faz com que tome para si toda a responsabilidade sobre o
seu fracasso. Seja qual for a saída defensiva, o que se observa é a êxtase do
desejo pelo não reconhecimento de um objeto de atração que o coloque em
movimento. [40]
Martin Heidegger, eminente pensador do Ser, acertou em cheio, quando declarou:
O seguro não é seguro, é terrível. Estava a fazer uma premonição. Com efeito
foram-se os parâmetros, as bóias e âncoras, os alicerces e pilares legados pelo
humanismo e modernidade. E, no seu lugar, ficou um vazio onde se instala toda a
sorte de inquietudes, descrenças, descorçoamentos e nevoeiros que invadem
paulatinamente a vida. O mundo natural é cada vez mais incerto e menos fiável;
e o social ' das instituições credoras de apreço e respeitabilidade, que
aprendemos a ver como guardiãs do apoio, segurança e tranquilidade, em caso de
problemas ' desmorona-se com fragor e a olhos vistos. Somos crianças perdidas,
confusas e errantes, inundadas e possuídas pela sensação de impotência,
carentes de orientação e protecção.
Como diz Kundera, o ambiente é de cerração, embora não de escuridão total,
impeditiva de qualquer olhar ou movimento. Somos livres, porém só temos a
liberdade de uma pessoa na neblina: vemos coisas e gente à nossa volta e
reagimos aos seus actos e efeitos, mas não enxergamos para além de um raio
diminuto. Viver no lusco-fusco obriga-nos a focalizar a atenção na proximidade,
nos problemas e perigos visíveis, imediatos e prováveis. Vemos e vivemos no
perto, no superficial e transitório, no curto prazo e alcance; não divisamos ao
longe, na obscuridade e profundidade. [41]
A luz brilha nalgumas casas, mas em muitas ' e são cada vez mais! ' a claridade
esvai-se e cresce o desespero do negrume. A estreiteza e a farsa da vida na
neblina assemelham-nos aos passageiros da primeira e última viagem do Titanic.
[42]
Sabemos que há um iceberg à nossa espera e que ele nos afundará fatalmente.
Contudo, despojados dos meios e da vontade de o localizar e contornar, damo-nos
à cegueira e à fatalidade e avançamos para o choque, bebendo e dançando ao som
da orquestra da leviandade e irresponsabilidade, indiferentes a advertências e
sussurros de maus presságios. As tábuas de navegar são postas de lado. Na
neblina vale tudo. Por isso brutal e preocupante não é o iceberg, mas a falta
de um plano sensato e viável para evacuar e salvar os passageiros do navio que
segue para o abismo, sem botes e coletes de salva-vidas. É este logro ilusório
que apanha as vítimas desprevenidas e incapazes de reagir. Aquilo que não se
afunda é quase nada; o que resta é um papel fino, encharcado e enregelado.
Tapado pela neblina o sol da humanidade, o sonho esfuma-se e toma a deformação
de um pesadelo.
Como se percebe bem, o progresso' dos nossos dias tem uma matriz estranha:
aproveita-se da falta de difusão da luz; nutre-se e cresce do cinzentismo e do
oportunismo, da miopia e da anestesia, da irreflexão e alienação, da trapaça e
do embuste que nos envolvem. E conduz inevitavelmente ao colapso; porque este
clima cerceia o espaço vital e fecha o horizonte, como se não houvesse amanhã.
A profecia está a ser cumprida: o apocalipse acontece aqui e agora, no coração
do orbe civilizado, euforicamente aclamado pelo seu esplendor e pelo deleite da
ilimitada diversão e indiferença. Confirmando que a casca da civilização tem a
espessura de uma hóstia. Que somos frágeis, náufragos, transitórios e
passageiros, errantes e fracassados; andamos à procura de um ombro para
reclinar o rosto do desassossego. E que lutamos nova e rijamente pela
sobrevivência como cães esfaimados e selvagens, num contexto de regressão e
descivilização, convidativo à peleja de todos contra todos.
O maior problema que enfrentamos, acusa Zygmunt Bauman, é o de nos demitirmos
de questionar a condição contemporânea, de não sabermos ou querermos distinguir
entre a cobardia e a coragem. O preço do silêncio é pago na dura moeda
corrente do sofrimento humano. Fazer as perguntas certas constitui, afinal,
toda a diferença entre sina e destino, entre andar à deriva e viajar.
Questionar as premissas supostamente inquestionáveis do nosso modo de vida é
provavelmente o serviço mais urgente que devemos prestar aos nossos
companheiros humanos e a nós mesmos. [43]
Em que regime vivemos? Liberdade ou escravidão? Que transcendência e sentido
alumiam os nossos dias? A que nível de cidadania, civilidade, civilização,
cultura e sabedoria estamos chegando? É isto que queremos e procuramos e nos
realiza e exalta? Somos seres de fuga e deriva. Donde fugimos e para onde
vamos? Que sociedade estamos a desfazer e que humanidade estamos a construir?
Que respublica, democracia [44] e vida são estas?
Yves de la Taille é conciso e conclusivo: Vivemos no eterno presente (...),
pulamos de pequenas urgências para outras pequenas urgências, de eventos para
outros eventos, de fragmentos para outros fragmentos. Verificamos também que,
desde o século XVIII, negamos ao passado poderes fertilizadores para o presente
e que, desde o final do século XX, negamos esses mesmos poderes ao futuro, que
passa a ser antes ameaçador do que promissor. E, finalmente, verificamos que,
hoje em dia, é preciso antes esquecer do que aprender, antes descartar do que
conservar, antes consumir do que poupar.
Em resumo, cortamos o tempo e, assim sendo, penamos em atribuir um sentido à
vida. Para que tal sentido tenha chances de voltar a fluir, precisamos resgatar
o passado e retomar em nossas mãos as rédeas do futuro. [45] Precisamos, nota
Barack Obama, de entender a crise deste tempo como nova oportunidade para
forjar uma humanidade comum, como um indicador de que acabou a era da
satisfação imediata e começou a era da responsabilidade e de que a luta contra
o medo e a necessidade é um dever moral, no interesse vital da democracia.
[46]
NECESSIDADE DE EQUILÍBRIO E SENSATEZ
Perante os desvarios atrás expostos, reveladores de uma manifesta crise de
identidade e periclitante condição, não se defende nem intenta regressar ao
passado ou carpir saudades e lamentos por ele; porém é necessário aprofundar e
construir outro presente. Ora isto manda recriar ideias e ideais que balizem o
desenvolvimento e permitam obviar e abater os cúmulos do desconcerto. Essa
obrigação não a podemos alijar, como me lembrou Ronaldo Monte, muito a
preceito, quando em tempos lhe dei conta do estado de alma expresso nas páginas
anteriores; ele reagiu assim: Esta neblina nos envolve a todos, em todos os
continentes. Mas ainda não estamos cegos. E mesmo vendo muito pouco, podemos
nos apalpar e acharmos as mãos. E trôpegos, mas lúcidos, ainda podemos fazer um
caminho que nos leve além da neblina, à clareira da solidariedade. Aí nos
reencontraremos novamente.
Para tanto devemos confrontar-nos com a desmesurada percepção de medos, em tudo
e em toda a parte, porquanto ela está a lavrar o terreno para novas formas de
totalitarismo, nomeadamente o securitário e higienista. Está a enterrar valores
axiais do Humanismo e Iluminismo - liberdade, autonomia, emancipação,
maioridade e florescimento da razão ' e a ceder o lugar a um regime de vida
próximo da escravidão.
Mais ainda, sem tomarmos a devida nota, deixamo-ns envolver na construção de um
gigantesco condomínio de barreiras existenciais, edificado com os tijolos da
absurdidade e policiado por uma legião de proibições, restrições e coações, de
penas e coimas sempre aquém da necessidade. Reclamamos cada vez mais lei,
ordem e disciplina', mais prisões e polícias de todos os gestos e gostos, dos
nossos e dos outros, instaurando em cada pessoa um bloqueio e sufoco infernais
e olhares paralisantes. Tudo é controlado, modelado e prescrito, desde o
tamanho das frutas, passando pela obrigatoriedade de indicação de calorias dos
alimentos e bebidas etc. e do fabrico e embalagem dos mais diversos e
tradicionais produtos alimentícios, até às regras e hábitos da conduta
individual. [47]
Em toda a rua e esquina, em toda a estrada e encruzilhada queremos ter quem nos
defenda e proteja e nos aconselhe e indique o caminho a tomar. O equilíbrio
entre a rigidez e dureza das virtudes, valores e hábitos espartanos e a
abertura e flexibilidade dos atenienses é muito difícil de alcançar. Mais,
parece até que, na actual e paradoxal deriva, nos inclinamos mais para Esparta
do que para Atenas.
Isto demonstra, de modo sobejo e eloquente, que padecemos da falta de
conhecimento de orientação. Para ser mais preciso, pagamos e sofremos o preço
da sua desvalorização. A ciência, seja no silêncio e anonimato dos
laboratórios, seja nos conhecidos e badalados centros de investigação e
reflexão, não é paga para isso, vê-se despida dos grandes ideais e fins, em
proveito dos meios; e é convertida em mera técnica. Simultaneamente altera-se
total e radicalmente a noção de progresso que anteriormente a animava. Não se
orienta tanto por referências e finalidades transcendentes; está sujeitaao
predomínio e ditadura do paradigma produtivista, visa sobretudo competir,
medir-se, igualar-se e, tanto quanto possível, superar a concorrência em
números e citações, apresentar a toda a hora dados novos, segundo os normativos
de consumo em moda e face à realidade constantemente mutante. Ajuda assim a
impor esta e serve os fins e a voracidade de um mercado volátil e caótico, em
permanente e febril ebulição. Ela é o fim em si mesmo, segue um imperativo de
produção consumista absolutamente vital, em obediência a ditames semelhantes
aos da selecção natural de Charles Darwin (1809-1882). Não espanta, por isso,
que a ciência se funda com a técnica e tecnologia e evolua (?!) para
tecnociência' e as três se enlacem com o contexto económico e vejam o seu
avanço requerido, incensado e financiado por ele.
Desta forma parecem ficar suficientemente delineados os contornos do mundo da
técnica, traçados por Heidegger, tal como se percebem as razões que o animavam
e levavam a denunciá-lo: não se trata mais de dominar a natureza ou aconselhar
a sociedade em função da liberdade e felicidade, mas apenas em função da
necessidade de competir, uma necessidade de proveniência exógena, isto é,
imposta de fora pela obrigação absoluta de progredir ou perecer'.
O aparato científico da modernidade estabelecia o objecto, os métodos, os
resultados e a sua aplicação, com base na autonomia da razão, segundo critérios
de independência imanentes ao conhecimento. A nova situação, decretada e
aplaudida pelos papagaios do pós-modernismo', subordina o saber a imperativos
exteriores. Deste modo a ciência, uma das mais belas e exaltantes criações do
génio humano, fica à mercê dos interesses económicos e empresariais; são eles e
o mercado que determinam a utilidade e inutilidade, a validade e caducidade dos
saberes; são eles que concedem orçamentos e financiamentos.
Consequentemente a tradicional autonomia da ciência, dos centros de saber e
investigação deriva para heteronomia; cai na dependência dos poderes
neoliberais. Também assim se perde a liberdade que era condição tanto da
qualidade do saber como da autoridade moral dos intelectuais - e das suas
instituições - envolvidos com as causas da sociedade. Por isso é legítimo
perguntar se as organizações académicas ainda são genuínos foros de
conhecimento e de reflexão sobre o devir social ou se resvalaram para
instrumentos de conformação e imposição do pensamento' único e dominante.
Concretizando, a tecnização do mundo e da competição técnica globalizada, que
nos envolvem, surgem a partir da desconstrução e demolição de marcos e alvos
transcendentes e superiores; deixaram de parte a racionalidade instrumental da
técnica, afundaram o reino dos fins e consagraram a lógica independentista e
absolutista dos meios. É esta a larga, amarga e dura linha que demarca e afasta
o Iluminismo, o Humanismo e a Modernidade do mundo contemporâneo: as febris e
instáveis evoluções e circunstâncias, decorrentes aqui e agora e a toda a hora,
não se ligam a nenhum projecto comum e não almejam um mundo melhor, antes se
demitem de equacionar e chamar a si intenções dessa envergadura e empresas
desse teor.
Ao fim e ao cabo, o vazio e a pobreza de espírito, as inseguranças, temores e
depressões, a insatisfação e a crise da identidade povoam cada vez mais esta
hora. As tão cantadas promessas esboroam-se como um castelo de areia e não vão
além de um logro impingido aos incautos. A ética prevalecente tem a matriz de
indolor'; mas, ao invés, a vida e a sociedade do presente são uma fonte e um
mar de mortificação e dor, de iniquidade e injustiça, de abandono e frustração,
de esquecimento e solidão, de tantas esperanças e promessas destruídas e vidas
desperdiçadas. Chamam a isto civilização e evolução, um avanço da democracia e
cidadania, um acréscimo da qualidade de vida!
É certo que nada nos impede de manter o optimismo. Mas essa atitude provém mais
da necessidade e aspiração, do desejo e da boa-vontade do que de convicções
fundadas nos factos em que a realidade é sobeja. Basta olhar em redor e
reflectir um pouco para cair no pessimismo e para notar que o receio e a
angústia tendem a tornar-se, como assinala Luc Ferry, a paixão democrática por
excelência. [48]
Como corolário, remata - e bem! - Frei Bento Domingues, se a crise financeira
e económica de consequências globais não for aproveitada para questionar e
alterar a orientação absurda da nossa civilização, se não fizer surgir um novo
olhar sobre o mundo e o ser humano, se não levar a um novo caminho, só resta
continuar de alienação em alienação, na rota da autodestruição. [49]
Continua, pois, por edificar uma residência estável para o homem, nesta terra
donde os deuses debandaram ou foram retirados. Talvez porque ele, lembra Michel
Foucault, não é o mais velho problema nem o mais constante que se tem posto ao
ser humano. E apesar do homem ser uma invenção, e uma invenção recente, os
rumos deste tempo, se não forrem corrigidos, indicam o seu próximo fim. [50]
CONCLUSÃO: MANUTENÇÃO DO MISTÉRIO
Primeiro:
Esta nossa sociedade de consumo nutre-se do ambiente de medos e preocupações
existenciais em que ela assente e ajuda a multiplicá-lo. É uma sociedade da
reinvenção do medo e de novas modalidades da sua exploração, para finalidades
de negócio e lucro nos mais diversos campos. O poeta António Gedeão disse que
uns se organizam no medo; outros na esperança. [51] Quanto à primeira parte
da afirmação, ela está amplamente comprovada; quanto à segunda, tudo aponta
para o facto de a esperança viver em letargia ou num notório definhamento.
Parece que as pessoas precisam de entrar no jogo, não tanto por esperança, mas
sobretudo pela necessidade de se submeterem a uma constante remodelação, para
que não lhes suceda o que acontece às roupas e não ficarem obsoletas. O mesmo é
dizer que têm de orientar a sua vida para o consumo, sendo elas mesmo
transformadas em mercadorias, como regista Zygmunt Bauman. [52]
A transformação das pessoas em mercadorias é o objectivo último - não
declarado, porém não tão oculto e sub-reptício que não deixe à mostra sinais
que o tornam perfeitamente claro e visível - da actual sociedade de consumo. A
sua aparência e forma de apresentação estão sujeitas a um desgaste contínuo,
carecidas portanto de constante reciclagem, até ao ponto em que já não
conseguem corresponder ao figurino da moda; aí também vêem ultrapassado o prazo
de validade e são deitadas fora. A modificação é obrigatória e compulsiva, está
para os consumidores como o metabolismo está para os organismos vivos; se
deixarem de consumir e de seguir os continuamente mudados padrões em vigor, os
indivíduos põem-se à margem da existência, por desrespeitarem uma nova e
cimeira máxima: Consumo, logo existo!
Consequentemente o activismo físico, para além de respeitar os alertas de ordem
funcional, é parte do empreendimento mais lato, destinado a promover e
permanecer uma mercadoria apreciada e atraente, bem cotada e desejável. A
manutenção e a remodelação da boa' condição corporal são um imperativo
decorrente da necessidade de captar as boas graças das atenções e olhares, de
vigiar e conter à distância os perigos e ameaças da marginalização, de se
subtrair ao esquecimento e à eliminação. Ou seja, os diversos tipos de cuidados
e intervenções no corpo não são propriamente um luxo ou extravagância
dispensável; ao invés, têm perfeita justificação existencial.
Ademais, o normativo vigente ordena que o privado (seja ele de ordem física ou
psíquica ou social) se torne público, que nada fique escondido ou invisível. À
mulher de César não basta sê-lo; tem mesmo que parecê-lo, tem que cuidar da
aparência, desenvolver um considerável esforço para recompor a toda a hora a
sua subjectividade com as qualidades inerentes a um produto estimulador de
apetência e consumo; tem que se exibir e comprovar na praça pública e receber
desta a consequente aprovação ou reprovação. É assim que o consumidor se
transforma e dilui no mar das mercadorias. Zygmunt Bauman remata de modo cru,
mas pleno e certeiro: Numa sociedade de consumidores, tornar-se uma mercadoria
desejável e desejada é a matéria de que são feitos os sonhos e contos de
fadas. [53]
Segundo:
No concernente à gigantesca onda do activismo físico, propagandeado e
aconselhado por ser saudável e positivo face a um desporto difamado como
maléfico e negativo, subscrevem-se e sublinham-se os reparos feitos por
Adroaldo Gaya: convenhamos que assumir o paradigma da atividade física
facilita muito a professores e alunos. Por quê? Ora! Por uma simples razão. No
esporte é necessário deter muitos conhecimentos científicos e filosóficos para
planejar programas de aprendizagem e treino esportivo com o rigor pedagógico
necessário. Na atividade física, basta um exame médico que libere' o cidadão e
ele poderá exercitar-se' lavando seu carro, cortando a grama do jardim, indo
trabalhar a pé e usando escada ao invés de elevadores ( ) Entrega-se
exclusivamente à medicina a propriedade de assumir a responsabilidade com a
prática da atividade física e, dessa forma, excluindo a necessidade de
programas de treino, de exercícios físicos que, como sabemos, devem ser
planejados por profissionais competentes e que apontem objetivos claros. Por
outro lado, e aqui vai uma acusação frontal, as bases científicas que sustentam
os programas de atividade física são parcialmente escamoteadas pelos defensores
do higienismo pós-moderno. O que a ciência nos informa, com elevados níveis de
confiança, é de que na comparação entre indivíduos sedentários e aqueles que
realizam algumas atividades físicas sistemáticas o risco de doenças
hipocinéticas diminui significativamente entre os ativos. Todavia, isto não
significa que estas atividades físicas são mais eficientes que as práticas
esportivas ou os programas de treino no combate aos fatores de risco. Os dados
mostram com clareza, embora alguns importantes pesquisadores insistam em
esconder, que há uma relação forte entre níveis de aptidão física, prática
esportiva e prevenção de fatores de risco para doenças do sedentarismo ( )
Mesmo que o esporte como expressão da cultura corporal tenha história e
objetivos que vão muito além das questões higienistas. Mesmo assim, é evidente
que reduzi-lo, substituí-lo ou compará-lo à atividade física é um non
senseinjustificável, principalmente em se tratando de idéias de cientistas
renomados. De políticos não trato, pois já há muito tempo percebi que seu
pragmatismo, como um tsunami,leva de roldão toda a razão. Em política o que
vale é estar em evidência e aí o relativismo moral, filosófico, ideológico,
conceitual, ético é o que interessa. Mas, o oportunismo, oriundo da ingenuidade
de alguns e da evidente intenção de outros, sem dúvidas tem sido o motivo
principal em desconstituir o esporte em nome de qualquer coisa que se mova um
pouco'. É a vontade de aparecer como cientista de ponta, como representante da
elite científica das áreas biológicas, de publicar artigos em revistas
internacionais da área médica que tem sido uma das principais fontes deste
desalentador discurso higienista que desconstitui o esporte de suas mais
evidentes qualidades como fenômeno cultural. Enfim, medicalizou-se o esporte.
Ser cientista para o grupo dos higienistas pós-modernos é fazer ciência
médica, epidemiológica, biológica e, como o esporte não se encerra
exclusivamente nessas categorias, o melhor realmente é desqualificá-lo para que
caiba no espaço de interesses corporativos. Mas, o esporte é mais forte e a
cada evento importante ele supera na prática as teorias que o querem reduzir a
uma especialização da medicina. [54]
No fundo, as dimensões biológicas do conceito de saúde são mais fáceis de
mensurar e controlar do que as sociais e psicológicas; nelas exerce-se melhor o
mandato intervencionista do paradigma produtivista da ciência e tecnologia. Por
isso mesmo, são também elas e a respectiva investigação que detêm o predomínio,
levam a palma e implicam, por arrasto, modificações e desvirtuamentos no vasto
complexo das práticas lúdicas e corporais. Porém a obtenção da saúde continua
dependente das possibilidades, da capacidade e lucidez disponíveis para traçar
o rumo existencial. Ou seja, para além das condições e pressupostos materiais,
imprescindíveis ao bem-estar social e psíquico, é igualmente indispensável o
conhecimento de orientação ' e este é hoje muito escasso, por não ser defendido
e fomentado, desejado e estimulado, sendo mesmo ostracizado, subvalorizado,
combatido e olhado com desdém, nomeadamente pelas agências fomentadoras e
financiadoras de bolsas e projectos e acreditadoras e avaliadoras das
instituições e centros de formação investigação - e dos seus professores,
pensadores e pesquisadores.
Há, no entanto, um grande e iniludível problema e uma dura frustração que não
podem ser escamoteados. Apesar de toda a inegável panóplia de ganhos em termos
de conhecimentos biológicos, de cuidados e intervenções, não se registam
rupturas nos estilos de vida e nos comportamentos de risco. Pelo contrário, as
evidências provam que o risco e a atracção por ele persistem e que as medidas
de controle não passam de paliativos para o conservar e poder suportar. Ou
seja, o alvo da procura não é tanto o equilíbrio justo, correcto e harmonioso,
mas, sim, a preocupação de evitar o pior.
Como assinala John Adams, a mega-estrutura do negócio e da indústria de redução
do risco ' a maior do mundo ' não impede a persistência e teimosia de muitas
pessoas em assumirem atitudes, condutas e actos arriscados. O mesmo é dizer que
o Homo Prudens - da cautela, da prudência e do controlo - não está a
consolidar-se, a progredir e impor-se, a levar a melhor, a predominar. É antes
o Homo Aleatorius, pouco abordado, reflectido e conhecido, aquele que sente um
forte apelo do perigo, que se entrega cada vez mais ao risco; é ele que está em
alta e na moda e que toma muitas vezes o comando da vida. Ambos pertencem à
nossa natureza e estão dentro de nós; é com os dois que temos de conviver. [55]
Enfim, o clima de medo instala na paranóia do estado de alerta permanente,
turva o olhar, subjuga as mentes e atrapalha o trânsito da razão e do
discernimento. Perde-se a visão do conjunto e a compreensão dos valores que
conferem ligação e unidade a todos os elementos do empreendimento. Na esteira
de Agostinho da Silva (1906-1994), [56] o transcendente, isto é, a procura da
felicidade, da ética e virtude da vida, deve guiar a reflexão e os
conhecimentos e mediar a relação destes com os aconselhamentos e propostas de
acção. Isto vale no caso do corpo e em tudo o resto. [57]
Terceiro:
Há outro e fundamental reparo que deve ser feito aos propagandistas da
actividade física'. Nós, os humanos, somos seres simbólicos e artísticos;
vivemos num universo simbólico e não num mero contexto físico. Consumimos arte;
alimentamos e afirmamos a nossa condição através da arte - a areté dos gregos,
agregadora da técnica, da estética, da virtude e excelência ' dos nossos gestos
e movimentos, das nossas palavras e atitudes, dos nossos sentimentos e
expressões. Somos seres interpretativos e instituidores de sentidos.
Confrontamo-nos com a natureza e a realidade material, social etc tendo
símbolos por intermediários, significativos' tanto para os praticantes de um
acto como para os que o observam, significando, codificando, organizando e
regulando a conduta de uns em relação aos outros. Isto é, somos criadores e
consumidores de símbolos, conferindo ritual à vida e associando as acções e
objectos a um significado que transcende os seus efeitos palpáveis.
As preocupações e intencionalidades em relação à saúde, imanentes ao activismo
físico (made in USA), são louváveis e originaram um meritório movimento de
programas de investigação e intervenção. Mas correm o risco de não irem além de
um neo-higienismo, ao ignorarem e não trazerem a plano cimeiro um compromisso
essencial com as traves-mestras da condição humana: a beleza das emoções e
intenções, dos actos e comportamentos, das configurações e relações. Dito de
outro modo, no conceito de saúde humana' não é curial separar o biológico e
motor do cultural e social, ético e estético.
É nisto que se funda o desporto; nele também nos mexemos, activamos' e
cultivamos o corpo, mas vamos mais além do imediato e tangível. Do mesmo modo
que não criamos a culinária e preparamos a comida só para nos alimentarmos, mas
para desenvolvermos o gosto e o paladar, também não praticamos desporto só para
nos movimentarmos, para visar ou conservar a saúde corpórea, para melhorar a
condição física'. Sem o desporto e as formas afins, a nossa motricidade e
civilidade culturais' regrediriam, ficariam prisioneiras da rudeza e
bestialidade naturais'. Em suma, são a incorporação de arte e o nosso teor
artístico' que nos conferem o estatuto humano. [58]
Quarto:
No império pós-moderno assemelhamo-nos a crianças de um mundo novo, ignorando
ou desdenhando os mitos do passado, fascinados e angustiados com a pergunta
acerca dos mitos do futuro. Fatiguemos ' incita Vergílio Ferreira ' o nosso
espanto, a nossa interrogação, até que ela nos canse de a enfrentarmos. Como
solução (será uma solução?) não temos outra. Porque Deus não é solução, como um
regresso à infância é impossível.
O regresso ao corpo é, afinal, o termo da viagem que nos coube. Nesse regresso
se implica pois somente a certeza, que até certo ponto é nova, de que tudo o
que é para o homem foi do homem que nasceu, que todo o mistério, todo o
indizível, toda a transfiguração e beleza são uma criação do homem com que a si
próprio se cria, que os valores objectivados são valores subjectivos, que toda
a ordem de vida é uma ordem humana, sem transcendência que a disfarce numa
ordem divina, que o homem, pelo espírito encarnado, ou seja, pelo seu corpo
humano, é definitivamente o seu verdadeiro Deus. À sucessão dos mitos que nele
germinaram responde agora o anúncio do mito de si próprio com a total ausência
de outros mitos, ou seja de verdades-aparição ou de verdades sem justificação e
que nos orientam. Falo, porém, do mito do homem, princípio e fim de si mesmo,
não do ídolo que segregue e com ele os seus carrascos ( ) Todo o mito acaba
onde o ídolo começa Sem esquecer que o ser-se homem e o ser-se livre ' são
dois valores mutuamente convertíveis. Eis porque o último confronto da nossa
liberdade é com a nossa condição. E se não está em nós emendá-la, está em nós o
reconhecê-la na sua irredutível e inexorável realidade. [59]
Impõe-se, pois, reflector acerca daquilo que andamos a fazer e do caminho aonde
isso nos leva.
Quinto:
O corpo é a anatomia do nosso destino, o santuário e altar da nossa
transcendência e sublimação. Com ele queremos e podemos manter uma relação
óptima com a vida, merecendo por isso um cuidado especial. Não se pode viver em
permanência nos excessos que ele permite, mas também eles não devem ser
inteiramente dispensados. Como afirmou o sociólogo francês Henri Lefebre (1901-
1991), a arte tanto pode morrer do excesso de rigor quanto da extrema
liberdade.
Ademais, disse Fernando Pessoa, viver não é preciso, não é assunto que possa
ser definido com o rigor e a exactidão da régua e do compasso. Isto mesmo se
aplica ao corpo e aos rituais de o exercitar. O bom senso e o equilíbrio são
requeridos, mas para tanto não bastam as prescrições de especialistas.
É estultícia supor que será possível criar uma forma de vida sensata e
racional, guiada exclusivamente por critérios científicos, definidores do que é
certo ou errado. Para dar sentido último à complexidade da condição e da
aventura humanas precisamos de colocar e laborar em questões e mistérios que
ultrapassam a racionalidade científica e esta não consegue controlar.
Precisamos de pensar no transcendente. Nada é substituto de outra coisa.
Conhecimento científico e sabedoria de orientação não se substituem ou excluem;
antes se complementam.
Mais, os esforços investidos na transformação e metamorfose, na conservação e
ganho da fiabilidade do corpo são a face visível do desejo e da possibilidade
de nos tornarmos outra pessoa, de nos despirmos de uma gasta e cansada
identidade, de a reciclarmos e substituirmos por outra. Infelizes e desiludidos
com o antigo gerente divino do mundo, procedemos à Sua demissão, mudamos de
crença e estratégia e somos nós agora os gestores do projecto, empreendimento e
negócio de procurar melhorar a vida. Para tanto as ambições se concentram em
nossos próprios Egos e se reduzem a consertar nossos corpos e almas , fazendo
o ego crescer ainda mais e recusando a imposição e aceitação dos limites. [60]
A nova e paradoxal utopia' convida-nos a inventar constantemente a vida e
administrá-la a nosso bel-prazer, a deixar de lado as promessas longínquas e a
procurar aqui e agora as curas, soluções e gratificações. Julgamos que, com a
mudança de Ego, tornamos a incerteza menos assustadora e a felicidade mais
palpável e presente. E que, mediante a cosmética do corpo, isto é, a troca
incessante do formato e design do figurino, mudamos para melhor o nosso Ego.
Aprendemos, com Sartre, que a existência precede a essência; logo, intervindo
nas modalidades da primeira, queremos determinar, modificar e melhorar a
segunda.
Esta pretensa utopia, obsessiva em eliminar a ansiedade e o desamparo
existenciais, parece consumir as nossas atenções e energias, aliviando-nos do
fardo de pensar nas incuráveis insuficiências da nossa condição e adiando e
dispensando até a reflexão acerca do sentido da vida e da impossibilidade de um
dia atingirmos na plenitude aquilo que nos agita e anima. É neste ponto que o
dilema e a contradição se introduzem: em vez de censurar, devemos incentivar a
continuidade da procura das nossas verdadeiras' identidade e essência, no
pressuposto de que elas nunca sejam encontradas. Sob pena de a graça e o
encanto acabarem e o mistério e a felicidade se perderem para sempre. [61]
[1] Ronaldo Monte é Professor do Departamento de Psicologia da Universidade
Federal da Paraíba, João Pessoa, Brasil. Tem dois blogues (blog-do-
rona.blogspot.com e memoriadofogo.blogspot.com) na Internet, onde publica
textos deveras interessantes.
[2] Quando se diz que vivemos numa sociedade de consumo, não se olvida que
todos os seres humanos, desde tempos imemoriais, são consumidores. O que se
pretende é, sim, enfatizar a diferença de prioridades entre a sociedade de
produtores ' a da era moderna e industrial que nos precedeu, orientada pela
norma de formar a vontade e a capacidade de produzir ' e a sociedade actual,
cuja norma é a de moldar os seus membros para, acima de tudo, desempenharem o
papel de consumidores seduzidos pela busca compulsiva e incessante de atracções
e desejos sempre novos, por nunca estarem satisfeitos de todo. Mais, vivemos
num mundo que avalia qualquer pessoa e qualquer coisa por seu valor como
mercadoria; assim são consideradas pessoas sem valor de mercado,
consumidores falhos e de todo inúteis os não consumidores, ou seja, os
indivíduos incapazes de atingir os padrões de normalidade, de cumprir o dever
crucial de ser compradores activos e efectivos de bens e serviços, de reagir
pronta e eficientemente às tentações do mercado de consumo, de contribuir com
regularidade para a demanda que esvazia a oferta, de alcançar o estatuto de
membro pleno, correto e adequado da sociedade. Ora de nada disto são capazes
os cidadãos pobres, sem casa decente, sem cartão de crédito e perspectivas de
melhoria de vida. Logo os pobres de hoje não o são tanto pelo desemprego, mas
sim por quebrarem a norma da competência ou aptidão de consumo; é isto que os
rotula de anormais', os coloca à parte, na coluna dos débeis e na sub-classe
dos intencionais e previsíveis danos colaterais'. (Zygmunt Bauman, Vida para
consumo: a transformação das pessoas em mercadorias, p. 157-160. Jorge Zahar
Editor, Rio de Janeiro, 2008.
[3] Luc Ferry: Para que serve a filosofia contemporânea? Pensar o
insubstituível de nossas vidas. In: André Comte-Sponville e Luc Ferry, A
sabedoria dos modernos, p. 522. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
[4] Michel Foucault: As palavras e as coisas, Edições 70, Lisboa, 1991.
[5] Atente-se nesta passagem da autoria de Ronaldo Monte:
Como exemplo, a pura e simples exclusão do mercado de trabalho, pela
obsolescência de função ou redução de contingente, é suficiente para
transformar um indivíduo de qualquer classe social num excedente sobre o qual
não incidirá qualquer esforço de preservação de sua integridade existencial.
Aos que acusarem qualquer manifestação de defesa contra esta exclusão, restará
sempre o recurso aos psicofármacos ou a inclusão em um dos comitês de ética em
voga.
(...) Como resultado final do processo de privatização da loucura, cada
indivíduo torna-se culpabilizado por se sentir como único responsável pelo seu
fracasso. Reduzido à sua solidão, ele próprio é transformado em um não-lugar de
uma tópica só reconhecida em sua negatividade. Não há um outro com que fazer
fronteira e estabelecer trocas. Há apenas a barreira marcando a
intransicionalidade, constituindo uma alteridade absoluta na qual se deposita
tanto a origem do mal quanto a fonte de um poder de vida e de morte sobre este
ser de falência.
... O que somamos, enfim, são faltas. Somos seres de falta. (Ronaldo Monte: Os
novos manicómios e a privatização da loucura, in Loucura, ética e política:
escritos militantes , Conselho Federal de Psicologia, São Paulo, Casa do
Psicólogo, 2003).
[6] Ronaldo Monte: Os novos manicómios e a privatização da loucura, in Loucura,
ética e política: escritos militantes , Conselho Federal de Psicologia, São
Paulo, Casa do Psicólogo, 2003.
[7] O conceito globalização é o oposto de universalização, próprio da
modernidade. O último - em consonância com a sua inspiração humanista e
iluminista - tinha por fito o estabelecimento de uma ordem à escala universal,
visando tornar semelhantes e até mesmo igualar as condições de vida em toda a
parte; era esta a intenção de iniciativas, medidas e empreendimentos globais. A
globalização remete para a inexistência de controlo, para uma desordem mundial
imposta por forças, nebulosas e sem rosto, actuando numa terra aparentemente de
ninguém, sem rei nem roque, com efeitos para todos nós. Sob o seu império o
mundo transformou-se numa selva lamacenta, manufacturada ao sabor dos escuros e
ignominiosos interesses da desregulação do mercado neoliberal, dos seus
negócios e proveitos.
[8] Zygmunt Bauman: TEMPOS LÍQUIDOS. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2007.
[9] Karl Popper, filósofo do racionalismo crítico e defensor da sociedade
aberta, ocupou-se de questões da epistemologia, da teoria e lógica da ciência.
[10] Gilles Lipovetsky é particularmente incisivo neste capítulo: Abandonado a
si próprio, numa sociedade hiper-individualista, o indivíduo hiper-moderno é
frágil. ( ) Apesar de vivermos mais anos, com mais saúde e com melhores
condições materiais ' com uma liberdade sexual quase total, podendo escolher se
casamos ou não, se vamos ter filhos ou não ' nunca houve tantos casos de
depressão (aumentaram sete vezes em 20 anos), tantas perturbações do
comportamento, tantas tentativas de suicídio, tantos divórcios, tanta solidão.
[11] Zygmunt Bauman: Globalização: as consequências humanas, p. 54-58, Jorge
Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1999.
[12] Ibidem.
[13] Zygmunt Bauman: TEMPOS LÍQUIDOS. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2007.
[14] Leonardo Da Vinci foi expoente de um ecletismo florescente, desenvolveu
estudos em várias áreas e representa bem o esplendor do génio humano. Por isso
mesmo ele pode ser apontado como modelo oposto ao que inspira hoje o dito
Processo de Bolonha
[15] Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) exclama assim:
Salve, meu corpo, minha estrutura de viver /e de cumprir os ritos de existir!
[16] Nos nossos dias Michel Serres celebra a unidade da aparência e da
essência; as duas saem da mesma fonte. Pelo que a fachada corporal e
comportamental é reveladora da identidade. Ou seja, as intervenções na primeira
têm implicações na segunda, tal como postulou Sartre (1905-1980), ao afirmar
que a existência precede e determina a essência. Antes deste, Goethe tinha
proposto que no visível e na superfície é que está tudo e que há uma relação
íntima entre a obscuridade das nossas entranhas e a visibilidade. Fernando
Pessoa disse mais ou menos o mesmo: O corpo é a pessoa de fora que dá a imagem
da pessoa de dentro.
A esta luz o actual ambiente obesogénico revela um estado de relaxamento,
indolência e desídia no corpo e na alma, nos sentimentos, atitudes e
comportamentos, na observância de normas e ideais, de princípios e valores.
Para o combater é preciso intervir nos terrenos da vontade, deitando mãos a uma
actividade corporal (desporto) que prefigura uma pedagogia da vontade, é uma
arte performativa de decisões, esforços e gestos da vontade.
[17] Hoje parece ter atingido maior observância a máxima de Oscar Wilde (1854-
1900): É melhor ser bonito do que ser bom, mas é melhor ser bom do que ser
feio.
[18] A expressão actividade física' é deveras estapafúrdia, imprecisa e
inadequada, vaga e difusa, imprópria e equivocada. É tudo e nada, porquanto,
conforme a definição dada pelos especialistas, engloba tudo o que ocasiona
dispêndio de energia. Nisto cabem tanto atividades laborais (cavar, lavrar,
jardinar, podar, assentar tijolos, pintar muros etc.), como movimentos do
quotidiano e actos desportivos (andar, correr, saltar, nadar, jogar etc.), como
ainda acções destinadas à satisfação de elementares necessidades sexuais e
biológicas (fornicar, urinar, defecar e outros termos cuja inclusão nesta lista
a educação não consente) etc. Ora não parece, nem é crível que os arautos e
utentes daquela expressão pretendam envolver-se, elaborar e impor normativos,
prescrições e sentenças em toda esta vasta panóplia de actividades.
Ademais uma actividade (escrever, lavrar, pintar, correr etc.), sendo física na
forma da sua execução, não se define e designa em função desta, mas sim da
intencionalidade que a preside, do efeito e performance que visa e alcança. É
aqui que reside a sua fonte matricial. É isto que faz toda a diferença e reduz
a fanicos a falta de pensamento lógico e coerente que subjaz à tentativa de
querer impor como referência cimeira, sólida, credível e aceitável a pretensa
actividade física'.
[19] Hugo Lovisolo: Estética, Esporte e Educação Física, Editorial Sprint, Rio
de Janeiro, 1997.
[20] A onda do activismo físico desvirtua e afronta o modelo e a tradicional
ênfase educativa do desporto. Em conformidade com o relativismo característico
desta era, tudo o que mexe é movimento positivo e louvável, como tudo o que
emite som é música e todo o rabisco é uma obra de arte. O lato sector do
desporto, que sempre afirmou o valor da saúde, vê-se pervertido e avaliado por
bitolas sanitárias, caindo no menoscabo os seus valores matriciais e
essenciais, culturais, éticos e estéticos. De categoria pedagógica resvala para
categoria médica.
[21] Ibidem.
[22] Zygmunt Bauman: VIDA LÍQUIDA, p. 119-134, Jorge Zahar Editor, Rio de
Janeiro, 2005.
[23] O cantor e compositor brasileiro Herbert Viana é particularmente duro no
convite à reflexão: Cirurgia de lipoaspiração? Pelo amor de Deus, eu não quero
usar nada nem ninguém, nem falar do que não sei, nem procurar culpados, nem
acusar ou apontar pessoas, mas ninguém está percebendo que toda essa busca
insana pela estética ideal é muito menos lipo-as e muito mais piração?
Uma coisa é saúde e outra é obsessão. O mundo pirou, enlouqueceu. Hoje Deus é a
auto-imagem. Religião é dieta. Fé, só na estética. Ritual é malhação. (...)
Gordura é pecado motal. Ruga é contravenção. Roubar pode, envelhecer não.
Estria é caso de polícia. Celulite é falta de educação. (...)
A sociedade consumidora, a que tem dinheiro, a que produz, não pensa em mais
nada além da imagem, imagem, imagem, imagem, estética, medidas, beleza. Nada
mais importa. Não importam os sentimentos, não importa a cultura, a sabedoria,
o relacionamento, a amizade, a ajuda, nada mais importa.
Não importa o outro, o coletivo. Jovens não têm mais fé, nem idealismo, nem
posição política. Adultos perdem o senso em busca da juventude fabricada.
OK, eu também quero me sentir bem, quero caber nas roupas, quero ficar legal,
quero caminhar, correr, viver muito, ter uma aparência legal, mas...
Uma sociedade de adolescentes anoréxicas e bulímicas, de jovens lipoaspirados,
turbinados, aos vinte anos, não é natural. Não é, não pode ser. Que as pessoas
discutam o assunto. Que alguém acorde. Que o mundo mude.
[24] Zygmunt Bauman: IDENTIDADE ' Entrevista a Benedetto Vecchi, p. 80-82,
Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2005.
[25] Obviamente os mais afectados por este clima são os idosos e aqueles que
caem nas garras do desemprego. Contudo todos os grupos da população são, de
maneira mais directa ou indirecta, atingidos pelo ambiente de vulnerabilidade
reinante.
[26] Zygmunt Bauman: Vida para consumo: a transformação das pessoas em
mercadorias, p. 163, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2008.
[27] A jornalista São José Almeida, num artigo (A imagem da Cimeira de Lisboa
tem como contraponto a da manifestação de 18 de Outubro) inserido no jornal
Público, de 22 de Dezembro de 2007, vê nas reformas efectuadas na educação e na
saúde apenas uma política propagandística de terrorismo psicológico' para
colocar os cidadãos perante a verdade única e absoluta da nova revolução em
marcha: a de que as pessoas e os seus direitos custam caro ao Estado e à
sociedade. Como se as pessoas fossem parasitas. ( ) Logo, a alternativa é o
mercado privado. Onde se compram e pagam os serviços, não se usufruindo de
direitos, como o de ter educação e de ter saúde. A partir do facto de os
cidadãos estarem a ser espoliados nos seus direitos, a articulista conclui
que os líderes europeus estão a ganhar esta nova forma de luta de classes.
Resta saber se os cidadãos nas ruas e nas lutas pela manutenção dos seus
direitos os vão fazer perder o sorriso e estragar-lhes a festa.
[28] In: Público, 9 de Novembro de 2007, p. 48.
[29] Texto publicado no dia 10.11.2007 no mesmo jornal.
[30] Vasco Pulido Valente volta à carga num texto intitulado Fora o gordo (ou a
gorda), publicado também no Jornal Público (Porto, 4 de Abril de 2009, p. 40):
O Governo, como bom pai, mãe, tia, vigilante e polícia anda preocupado com o
nosso peso. (Por isso) resolveu congeminar um plano' contra a gordura. Dizem
que dentro de um homem gordo há sempre um homem magro que sonha nascer. Pois
respondendo a esse justo sonho, o Estado vai finalmente ajudar o parto da
magreza indígena. Já este ano, cada um dos 68 agrupamentos de Centros de Saúde
poderá contar com o seu nutricionista privado e próprio. Há hoje apenas 75 em
exercício, não tardará, esperemos, que haja mais 500.
Se até agora o senhor, ou a senhora, por ignorância ou vício, passeava por aí a
sua repugnante corpulência (ou, pior ainda, a mostrava na praia), daqui em
diante assim que penetrar num Centro de Saúde será imediatamente conduzido a um
nutricionista, que o porá numa dieta rigorosa e, em menos de nada, lhe
arrancará a casca da adiposidade que preocupa a Pátria e o seu chefe. Pense
que, depois de uma vida de erro e masoquismo, irá para o futuro comer e beber
bem ( ) Pense e rejubile. Imagine a sua pessoa elegante e bela e sobretudo
esqueça que a mesa é um prazer. A mesa não é um prazer, é, como oportunamente
lhe explicarão, um puro suicídio.
Claro que o Estado não se dá a tanto trabalho só por altruísmo. O excesso de
peso e a obesidade estão na origem de várias doenças, com o Estado não deseja
gastar dinheiro consigo. Por isso o Estado desejaria que o senhor, ou a
senhora, não fumasse (e o persegue quando fuma) e não ingerisse muito sal (e
lhe tirou o sal do pão) e se prepara pouco a pouco para o reduzir a um perfeito
exemplar da espécie, destinado a morrer impecável e robusto numa extrema e
acéfala velhice. Onde fica no meio disto a sua liberdade é melhor não
perguntar. O Estado, que o trata e o educa, não se interessa pela sua
liberdade. Uma liberdade que o senhor, ou a senhora, se o deixarem à solta, usa
com certeza mal. É preferível que o eng. Sócrates, que de resto o conhece bem,
o meta na ordem. Ou julgava que a beneficência do Governo era de graça?
[31] Adauto Novaes: ENSAIOS SOBRE O MEDO, Editora Senac, São Paulo, 2007.
[32] Luc Ferry: APRENDER A VIVER, Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.
[33] Adauto Novaes, ibidem.
[34] O cúmulo do extremismo é atingido e demonstrado pela campanha movida pelas
autoridades da Holanda, na quadra natalícia de 2007, contra o surgimento de
figuras de Pai-Natal com porte indiciador de obesidade!
[35] O sociólogo António Barreto, num artigo intitulado Eles estão doidos!,
igualmente publicado no jornal Público, após abordar toda uma série de regras
que estão a ser impostas na comercialização, venda e transporte de alimentos e
na configuração e condições climáticas dos estabelecimentos de restauração, bem
como na tipologia das facas, colheres e garfos, conclui: Tudo isto, como é
evidente, para nosso bem. Para proteger a nossa saúde. Para modernizar a
economia. Para apostar no futuro. Para estarmos na linha da frente. E não
tenhamos dúvidas: um dia destes, as brigadas vêm, com estas regras, fiscalizar
e ordenar as nossas casas. Para nosso bem, pois claro.
[36] Desde Aristóteles até aos nossos dias os pensadores, que se dedicam a
reflectir acerca da felicidade e das vias que a ela conduzem, colocam-na na
dependência do modo como usamos as possibilidades. Quanto mais elevado é o uso
que fazemos das nossas potencialidades, tanto maiores são as probabilidades de
nos abeirarmos da felicidade. E o inverso vale igualmente como lei. O lema
olímpico do desporto ' Citius, Altius, Fortius!' tem subjacente esta noção; é
uma exortação a que façamos um uso sempre superior e renovado das nossas
capacidades. É um apelo para que não nos contentemos com o pequeno, o mediano e
o relativo; para que ousemos ir cada dia mais além, porquanto o absoluto e o
infinito são a medida do Homem e não há felicidade mais genuína do que a
resultante dos actos e feitos que nos transcendem e configuram na superação. No
fundo a felicidade é uma performance da vida.
Albert Schweizer, médico e filósofo francês (1875-1965), acrescenta que a
felicidade não é mais do que boa saúde e má memória. Má memória para esquecer
o que nos perturba, penaliza, atormenta, diminui e apouca.
[37] Zygmunt Bauman: Globalização: as consequências humanas, p. 57-58, Jorge
Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1999.
[38] Adroaldo Gaya: texto de um discurso proferido no dia 8 de Janeiro de 2009,
na Escola de Educação Física da UFRGS, Porto Alegre, Brasil, por ocasião da
cessação da função de Diretor do LAPEX.
[39] As recentes revoltas e manifestações de rua dos jovens na Grécia traduzem
esta dura realidade: no Maio de 1968 os contestatários pertenciam à sociedade,
faziam parte dela, reivindicavam a sua transformação; ao passo que muitos
jovens estão hoje excluídos da sociedade, lutam pela inclusão nela. A diferença
é abissal: em 1968 os jovens eram movidos por utopias e perspectivas sociais;
aos jovens de agora a sociedade não oferece qualquer perspectiva.
[40] Ronaldo Monte, ibidem.
[41] Ver Zygmunt Bauman: TEMPOS LÍQUIDOS. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro,
2007.
[42] O Titanic foi um navio transatlântico, considerado inafundável. Na noite
de14 de Abril de1912, pelas 23h40, chocou com um iceberg, na Latitude 41º 46´N
e Longitude 50º 14´W. Passados 20 minutos afundou-se, tendo perdido a vida 1517
pessoas.
[43] Zygmunt Bauman: GLOBALIZAÇÃO: As consequências humanas, p. 11, Jorge Zahar
Editor, Rio de Janeiro, 1999.
[44] Democracia significa etimologicamente o poder outorgado pelo povo. A
separação introduzida aqui na palavra é para traduzir a inquietação em relação
à sua perversão como poder do demo.
[45] Yves de la Taille: Formação Ética: do Tédio ao Respeito de si, p. 115,
Porto Alegre, ARTMED, 2009.
[46] Encontro de Barack Obama com jovens em Estrasburgo, em 03.04.2009. In:
Jornal Público, p. 5, Porto, 4 de Abril de 2009.
[47] Atente-se neste texto (Cruzamento de dados em 2019), entrado no meu e-mail
em 12.02.2009. É ficção, mas não tanto como parece à primeira vista:
- Telefonista: Pizza Hut, boa noite!
- Cliente: Boa noite, quero encomendar Pizzas...
- Telefonista: Pode dar-me o seu NIN?
- Cliente: Sim, o meu Número de Identificação Nacional é o 6102 1993 8456 5463
2107.
- Telefonista: Obrigada, Sr. Lacerda. O seu endereço é na Avenida Paes de
Barros, 19, Apartamento 11, e o número do seu telefone é o 21549 4236, certo? O
telefone do seu escritório na Liberty Seguros, é o 21 574 52 30 e o seu
telemóvel é o 96 266 25 66, correcto?
- Cliente: Como é que conseguiu todas essas informações?
- Telefonista: Porque estamos ligados em rede ao Grande Sistema Central.
- Cliente: Ah, sim, é verdade! Quero encomendar duas Pizzas: uma Quatro Queijos
e outra Calabresa...
- Telefonista: Talvez não seja boa ideia...
- Cliente: O quê...?
- Telefonista: Consta na sua ficha médica que o senhor sofre de hipertensão e
tem a taxa de colesterol muito alta. Além disso, o seu seguro de vida proíbe
categoricamente escolhas perigosas para a saúde.
- Cliente: Claro! Tem razão! O que é que sugere?
- Telefonista: Por que é que não experimenta a nossa Pizza Superlight, com Tofu
e Rabanetes? O senhor vai adorar!
- Cliente: Como é que sabe que vou adorar?
- Telefonista: O senhor consultou a página "Receitas Gulosas com Soja" da
Biblioteca Municipal, no dia 15 de Janeiro, às 14:27 e permaneceu ligado à rede
durante 39 minutos. Daí a minha sugestão...
- Cliente: Ok, está bem! Mande-me então duas Pizzas tamanho familiar!
- Telefonista: É a escolha certa para o senhor, a sua esposa e os vossos quatro
filhos, pode ter a certeza
- Cliente: Quanto é?
- Telefonista: São 49,99.
- Cliente: Quer o número do meu Cartão de Crédito?
- Telefonista: Lamento, mas o senhor vai ter que pagar em dinheiro. O limite do
seu Cartão de Crédito foi ultrapassado
- Cliente: Tudo bem. Posso ir ao Multibanco levantar dinheiro antes que chegue
a Pizza.
- Telefonista: Duvido que consiga. A sua Conta de Depósito à Ordem está com o
saldo negativo.
- Cliente: Meta-se na sua vida! Mande-me as Pizzas que eu arranjo o dinheiro.
Quando é que entregam?
- Telefonista: Estamos um pouco atrasados. Serão entregues em 45 minutos. Se
estiver com muita pressa pode vir buscá-las, se bem que transportar duas Pizzas
na moto, não é lá muito aconselhável. Além de ser perigoso...
- Cliente: Mas que história é essa? Como é que sabe que eu vou de moto?
- Telefonista: Peço desculpa, mas reparei aqui que não pagou as últimas
prestações do carro e ele foi penhorado. Mas a sua moto está paga e então,
pensei que fosse utilizá-la.
- Cliente: Chiça!...
- Telefonista: Gostaria de pedir-lhe para não ser mal educado... Não se esqueça
de que já foi condenado em Julho de 2006 por desacato em público a um Agente da
Autoridade.
- Cliente: (Silêncio).
- Telefonista: Mais alguma coisa?
- Cliente: Não. É só isso... Não. Espere... Não se esqueça dos 2 litros de
Coca-Cola que constam na promoção.
- Telefonista: O regulamento da nossa promoção, conforme citado no artigo
095423/12, proíbe a venda de bebidas com açúcar a pessoas diabéticas...
- Cliente: Aaaaaaaahhhhhhhh! Vou atirar-me pela janela!
- Telefonista:E torcer um pé? O senhor mora no rés-do-chão!...
[48] Luc Ferry, ibidem.
[49] Frei Bento Domingues, Público, Domingo 11 de Janeiro 2009.
[50] Michel Foucault, ibidem.
[51] António Gedeão é o pseudónimo literário de Rómulo Vasco da Gama de
Carvalho (1906-1997), ilustre professor e cientista na área de Físico-Química.
[52] Zygmunt Bauman: Vida para consumo: a transformação das pessoas em
mercadorias. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2008.
[53] Ibidem,p. 22.
[54] Estas afirmações de Adroaldo Gaya constituem um comentário corroborativo
do teor essencial de um texto assaz pertinente (Metamorfoses do desporto e os
novos delegados de propaganda médica), publicado por José Manuel Constantino no
blogue Colectividade Desportiva, em 8 de Janeiro de 2009.
[55] Entre a cautela e o forte apelo do perigo. Entrevista com John Adams, in:
O Estado de S. Paulo, J4/ALIÁS, 4 de Maio de 2009.
[56] Filósofo, poeta e ensaísta português; passou largo tempo da sua vida no
Brasil.
[57] E vale também a convicção de Aristóteles (384-322 a. C): É lícito afirmar
que são prósperos os povos cuja legislação se deve aos filósofos. Tendo em
consideração que da filosofia emana um conhecimento orientado essencialmente
pela transcendência.
[58] Num capítulo intitulado Felicidade contra necessidade Hugo Lovisolo
apoia-se em vários autores e aforismos para afirmar: Os animais se alimentam,
o homem come; só o homem refinado sabe comer. E acrescenta: a identidade do
homem está no que come. ( ) Comer deixa de ser uma mera necessidade biológica e
desenvolve-se ( ) como gosto, como ato estético e civilizador. (Ibidem).
[59] Vergílio Ferreira: Invocação ao meu corpo. Livraria Bertrand, Lisboa, p.
324-329, 1978.
[60] Ver Zygmunt Bauman: TEMPOS LÍQUIDOS. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro,
2007.
[61] Precisamos de mitos para tornar suportáveis os nossos dilemas
irresolúveis. ( ) Se fôssemos demolidores irresponsáveis de mitos, rasgaríamos
os nossos direitos humanos e começaríamos de novo: repensando o que queremos
dizer com vida humana e dignidade humana. Por enquanto, se quisermos continuar
a acreditar que somos humanos, e justificar o status especial que nos
atribuímos ' se, na verdade, quisermos permanecer humanos através das mudanças
que enfrentamos -, é melhor não descartar o mito, mas começar tentando viver à
sua altura. (Felipe Fernández-Armesto, in: Então você pensa que é humano? Uma
breve história da humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2004).
CORRESPONDÊNCIA
Jorge Olímpio Bento
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